sexta-feira, 25 de novembro de 2022

José de Souza Martins* - Novos sujeitos políticos

Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

As nações indígenas emergiram como personagens da história do presente. Houve aqui uma revolução social e quase ninguém percebeu

O regime resultante do golpe militar de 1964, em nome da democracia supostamente ameaçada pelo comunismo, não favoreceu a emergência das populações excluídas dos direitos sociais e políticos próprios das sociedades democráticas, igualitárias e pluralistas. Os “diferentes” foram mantidos na prisão imaginária e excludente, a de sua diferença, como seres menores, aquém do propriamente humano. Ou, em desdobramento atual do regime ditatorial, considerados e tratados como iguais para que se virem com sua igualdade, que os fragiliza em face dos poderes descomunais do Estado e da economia. Na reunião do governo de 22 de abril de 2020, isso ficou claro.

A política repressiva da ditadura de 1964 atingiu a classe trabalhadora, diferente no entendimento anormal dos normais, os que têm poder. Mas atingiu também os grupos sociais residuais que haviam ficado à margem da história. E atingiria também os novos sujeitos que ganhariam corpo e visibilidade em decorrência da política econômica e da intolerância própria da ditadura.

O regime calava uma boca e, em consequências, novas e diferentes bocas se abriam. O regime reprimia necessidades sociais e políticas, mas novas e alternativas, compensatórias, ganhavam voz e visibilidade. A política econômica multiplicava lucros extraordinários e suas consequências antissociais. Em suas contradições, dava vida a novos sujeitos de demandas sociais, de horizontes e de possibilidades de transformação social na direção de uma modernidade não só econômica, mas também social e política.

O regime militar repressivo não foi vencido por uma revolução política, mas pelas suas muitas brechas e fraturas que deram voz e vida a sujeitos sociais que historicamente haviam sido mantidos na fragilidade do silêncio e da falta de conexões políticas próprias para expressar suas carências.

Foi o caso das populações rurais historicamente mantidas à margem da sociedade que sucedera à sociedade escravista com a abolição da escravatura. O medo político dos militares pôs a reforma agrária na agenda do Estado.

Foi e ainda é o caso das populações indígenas, aqui tratadas como populações aquém da condição humana, tratamento que também se dera ao escravo.

O regime militar foi marcado por verdadeiros episódios de guerra civil no confronto entre grileiros de terra, armados e tolerados, contra nações indígenas desarmadas. Alguns casos notáveis não entraram em nossa narrativa histórica, patrioteira.

Um caso significativo foi o da revolta das tribos Kaingang, em 1976, que nos três estados do Sul se ergueram contra a invasão de suas terras pelos brancos, expulsando-os. Apossaram-se do conhecimento agrícola dos brancos e revitalizaram suas tradições.

Outro caso foi o da coalizão dos povos Waimiri e Atruahi, reduzidos a 20% do que eram. Resistiram à genocida invasão dos brancos com a abertura da rodovia Manaus-Caracaraí. Ou a coalizão dos Txukahamãe com seus inimigos, os Kreenakarore. Quando os primeiros tomaram consciência do genocídio em andamento, contra os segundos, uniram-se a estes para protegê-los e ampará-los.

Os anos 1970 foram os da guerra do Brasil atrasado e predatório contra os índios, que redundou no seu contrário: a guerra cultural e política dos índios contra a barbárie de uma concepção destrutiva de crescimento econômico sem desenvolvimento social, de um modelo de capitalismo sem seres humanos.

Os diferentes povos indígenas inverteram o modelo dos brancos. Desenvolveram uma estratégia de incorporação, em suas táticas de sobrevivência, do conhecimento dos brancos, especialmente o conhecimento científico. Valeram-se dos antropólogos que iam estudá-los e decifraram os brancos como objeto raro, como cobaias. Desenvolveram estratégias autodefensivas. Receberam o apoio de missionários católicos e luteranos, da nova pastoral dos povos indígenas, redefinida como reação à ordem política repressiva e genocida. Antropólogos de diferentes universidades definiram uma nova concepção de etnologia, em que o observador é observado e a sociedade que por meio dele pesquisa tem sua maldade decifrada e suas virtudes aprendidas.

As nações indígenas emergiram como personagens da história do presente. Já na ditadura, a praça dos Três Poderes foi delas. Nas negociações atuais para definição dos rumos e do projeto de nação do novo governo pós-autoritário, os indígenas estão lá. Vários fizeram cursos nas universidades. Já estão presentes no Parlamento. Há algum tempo, Joênia Wapixana, advogada, apresentou ao STF a causa territorial de seu povo com um discurso em sua própria língua. Uma das cerca de 200 línguas indígenas do Brasil. Houve aqui uma revolução social e quase ninguém percebeu.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia A Semana de Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022).

 

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