terça-feira, 22 de novembro de 2022

Maria Clara R. M. do Prado - A distopia do mercado

Valor Econômico

É como se o mercado transferisse para o próximo presidente a irresponsabilidade fiscal do atual

Ao contrário do que os economistas e analistas vinculados a fundos de investimento fazem crer, o chamado mercado financeiro não é um oásis de virtude. Sempre que haja brechas por descuido das autoridades reguladoras, ocorrem ganhos de uns em detrimento de outros. O exemplo mais notório é o da crise de 2008/2009 que redundou no escândalo dos “subprimes” com perdas imensas para os investidores nos Estados Unidos e altos custos para a economia como um todo. Surgiu de um esquema tipo pirâmide montado por bancos e fundos com o objetivo de alavancar ganhos sobre ativos de altíssimo risco.

No dia a dia, as instituições que administram o dinheiro dos poupadores e ou investidores não deixam de tirar proveito em benefício próprio e podem gerar lucro adicional a partir de boatos e suposições que afetam os preços dos ativos para o bem ou para o mal. Ao imaginar situações ruins e causar sofrimento antecipado, o mercado espalha a distopia na forma de manada, todos juntos para o mesmo lado.

Desde o final do segundo turno das eleições, o mercado financeiro vive em sobressaltos com a demora da nova regra fiscal e da indicação dos nomes pelo próximo presidente da República. Oscila para cima e para baixo, como uma espécie de gangorra que não consegue encontrar um equilíbrio e não há nada de anormal nisso. Afinal, a incerteza se reflete no risco e este é inerente às operações financeiras, em especial aquelas que lidam com ativos de renda variável como as ações e o câmbio.

Mas há um exagero no “frisson” provocado pelas dúvidas relacionadas ao comportamento fiscal do próximo governo que, mesmo sem ter tomado posse, é acusado de perdulário. Vale lembrar que só se saberá o valor inscrito na emenda constitucional destinada aos programas sociais a partir de 2023 quando for votada pelo Congresso Nacional. Portanto, é precipitado e errado antecipar eventuais efeitos fiscais considerando as propostas que ainda não se transformaram em peças constitucionais definitivas.

Também é exagerada a impaciência com a falta de definição da nova regra fiscal para substituir um teto de gastos roto e há muito tempo desacreditado. O fato de o governo estar acéfalo torna o cenário confuso, sem dúvida. Faz com que ao presidente eleito seja imputada uma culpa que não lhe pertence. É como se o mercado estivesse transferindo para o próximo presidente a irresponsabilidade fiscal que é do atual mandatário. Afinal, um orçamento com rubricas sem verba é como um cheque falso. Ainda que dentro do teto, não tem valor algum.

A tarefa de colocar nos eixos a desorganização promovida pelo governo Bolsonaro nas contas públicas não é nada trivial. Vai demandar trabalho, bom senso e conhecimento da intrincada teia de condicionantes que configura o orçamento federal e os desvios que o afetam, em especial as verbas secretas que saem do bolso dos contribuintes sem que estes tenham noção do destino que tomam.

Para além disso, os prognósticos para o comportamento da economia são reféns das incertezas do mundo pós pandemia, afetadas pelas dúvidas com a oferta de gás, petróleo e grãos, e pelo impacto inflacionário nos países mais desenvolvidos. A atividade econômica dos próximos anos no Brasil deverá passar por situações que nenhum governo (com exceção da Rússia, talvez) tem hoje condições de desenhar com certo grau de previsibilidade.

Isso leva às diferenças de prognóstico. A Instituição Fiscal Independente (IFI), vinculada ao Senado Federal, prevê no relatório deste mês três cenários para o PIB. Variam do crescimento de 1,4% a 0,3% em 2023 e de expansão média entre 3% e 1% no período entre 2024 e 2031. A arrecadação, sabe-se, é uma variável dependente do comportamento do PIB.

Não se conhece o efeito sobre o PIB do consumo das famílias brasileiras com a continuidade do auxílio de R$ 600 por mês, com o bônus de R$ 150 por crianças até seis anos e o aumento do salário mínimo. Para além do caráter de ajuda emergencial, há ali um volume nada desprezível de recursos que ajudará a puxar a economia.

Obviamente, há um custo fiscal a ser considerado do ponto de vista da contabilidade do orçamento e esse é um encargo que a sociedade concordou em assumir ao eleger o novo presidente da República. Causa espanto o argumento de que o aumento daquele gasto acabaria por prejudicar os mais pobres pela via da inflação, como se houvesse opção em deixar morrer de fome agora para garantir o acesso à comida mais barata no futuro.

Espanta, também, o grau de importância assumido nas discussões sobre a questão fiscal. O economista Armínio Fraga, na entrevista que concedeu ao Globo no sábado, chamou a equipe econômica da transição de “seleção nacional da heterodoxia e do fracasso” salvaguardando uma exceção que tudo indica ser a de Pérsio Arida, em nome de quem disse falar ao criticar as declarações do presidente eleito. Os demais integrantes são André Lara Resende, Nelson Barbosa e Guilherme Mello.

Com todo o respeito a Armínio, não se pode desconsiderar a relevância de André na história econômica do país. Nenhum outro economista tem se dedicado a desenvolver estudos teóricos na busca de novas alternativas que permitam enfrentar a realidade nacional, arriscando até o prestígio pessoal. Junto com Pérsio, André Lara Resende criou a tese da moeda indexada que anos mais tarde resultou no Plano Real e acabou com a hiperinflação. Nenhum outro, além deles, pode igualar-se em tamanha envergadura intelectual.

 

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