O Globo
Derrota foi mensagem divina, caro cristão
Não é necessário enxergar Jesus na
goiabeira para concordar com a turma da Regina Duarte: a eleição foi roubada.
Mesmo alguém da altura do general Heleno
consegue ver os círios à distância — se na Terra nada acontece sem a vontade de
Deus, a derrota foi mensagem divina, caro cristão.
Aleluia, irmão.
Aqueles dois Fábios (mesmo o genro
arrependido), mais o balila da PRF e as patifarias do posto Ipiranga (sem
gasolina por causa do bloqueio de seus companheiros) acabaram punidos ao
desrespeitar o sétimo mandamento.
Os 7 milhões de votos a mais, depositados no segundo turno na equipe enfim derrotada, resultam do uso descarado da máquina. Somando com Ciro Nogueira, que é bom de conta: sem a caneta e as roubadas de mão, boa parte sob o silêncio da Justiça, jamais chegariam aos 58 milhões de votos.
De fato, a eleição foi roubada. Sem a reza
estatal, o último círculo do inferno de Dante seria a morada de Bolsonaro já no
primeiro turno.
Outros métodos de conseguir votos também
não surtiram efeito. A estratégia Carla
Zambelli, por exemplo: evitar à bala voto de eleitor lulista.
Impressionante. Eu que apanhei da polícia
da ditadura e do coronel Erasmo Dias jamais vira algo tão grotesco. Estava
naquela tarde a cem metros da pistoleira. Comprava o lindíssimo livro de Geraldo
Carneiro “Folias de aprendiz” e a reedição de “O eleito”, de Thomas Mann, na
nova Livraria da Vila, na Alameda Lorena. Cercada de seguranças, a deputada
bolsonarista, com um andar de quem cerca galinha no terreiro, empunhava
revólver contra um adversário. Em pleno Jardim Paulista, no final de sábado, ao
lado de crianças, pais e avós que passeavam sob a preguiçosa nesga de sol, a
celerada assustou a todos. Não só pela arma, mas principalmente por cair feito
goiaba ao trocar a perna direita pela esquerda (me lembrou cenas de “O Gordo e
o Magro”). Com o jeans bem acima do umbigo, em estilo consagrado por Mazzaropi,
aproveitou a cobertura de seus imensos seguranças para mostrar valentia.
Assim como uma eleição limpa jamais daria
58 milhões de votos a Bolsonaro, a dublê de Charles Bronson não teria sido um
risco aos populares caso estivesse sem os seguranças e não panfletasse no
tranquilo bairro dos Jardins. Duvido ela fazer isso perto de algum endereço da
Gaviões ou da Galoucura. É um desafio.
A cena autoritária antecipava o módulo
Venezuela produzido pelos bolsonaristas na madrugada de segunda. Os bloqueios
trouxeram desabastecimento (principalmente em Santa Catarina, bem feito),
causaram prejuízo de milhões e provocaram várias mortes. Felizmente foram poucas
e não seguiram o padrão cloroquina da turma.
Ao bloquear as estradas e avenidas, vale
lembrar, os bolsonaristas deixaram de cumprir a promessa de não dilapidar
patrimônio público e de não invadir propriedade alheia. Os pneus queimados
(curiosamente novos) por certo foram doados por almas caridosas, como
antecipação de dízimo.
Chovia fino e fazia frio nas barricadas
golpistas, mas a essa altura, como nem os fascistas são de ferro, Zambelli já
se encontrava no confortável calor dos Estados Unidos, e Bolsonaro, birrento,
teimava em esconder a bola no quentinho do Alvorada.
Ato contínuo, os tiozinhos do WhatsApp
correram para a porta dos quartéis. Não pediam intervenção psiquiátrica, mas um
golpe militar. Afinal, propagavam, tinham sido roubados em 19 milhões de votos,
Deus não atendera suas preces, e não seria justo suas empregadas voltarem a
frequentar a Disneylândia.
Ali estavam as netas de quem protestou na
Marcha de Deus pela Família, em 1964, pedindo um golpe militar. Suas avós
inventaram a ameaça do comunismo porque temiam reformas que dariam direitos
básicos aos trabalhadores. As descendentes se mostram revoltadas com a maioria
dos votos em Lula saídos do Nordeste. De novo retorna o pobre fantasma roto do
comunismo, assoprado pela mesma turma que no carnaval compra abadá para seguir
o trio elétrico de Daniela Mercury —e então escande preconceitos contra a
cantora e os nordestinos. Sem Salvador, estariam na lama.
Aproveitei que Bolsonaro se encontrava
debaixo da cama para não entregar a faixa presidencial e mergulhei em “Folias
de aprendiz”, invejáveis memórias do doce poeta Geraldo Carneiro.
Para quem vive nos bloqueios das estradas e
no WhatsApp: Geraldo é também autor de canções em parceria com Astor Piazzola,
Egberto Gismonti e Francis Hime. Três gênios. Teve ainda sorte de viver ao lado
de deuses como Paulo Mendes Campos e Tom Jobim e de compartilhar vários
segredos de Vinícius de Moraes.
Seu livro traz de volta o Brasil
civilizado, carinhoso e tolerante que se busca no pós-goiabeira. E com o
retorno do humor, porque, afinal, a missa de sétimo dia merece ser oficiada
pelo Padre Kelmon.
Muito bom o artigo.
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