domingo, 20 de novembro de 2022

Míriam Leitão - Na terra do meio da transição de poder

O Globo

É preciso ver tanto as demandas sociais do país quanto os alertas dos economistas para reduzir o risco de errar em um governo que nem começou

Para chegar aos gabinetes do escritório de transição, no segundo andar, é preciso subir quatro lances de escada. Parece detalhe. É sinal. O CCBB, tradicional local das transições de governo, não estava preparado. Dois elevadores estão em reforma. Há um único elevador na área de segurança, reservado para o presidente e o vice-presidente eleitos e suas equipes. Teriam pensado que não haveria alternância? Nos corredores da área reservada, para a qual só se passa de crachás amarelos, cartazes improvisados na porta indicam os novos donos do poder. Mas antes da área de segurança é possível encontrar alegres grupos da sociedade civil.

Do lado de fora, jornalistas cercam fontes que passam, cruzando com famílias indo visitar exposições. Há em tudo um ambiente de mudança e recomeço. O tempo em Brasília nessa época do ano tem mais volatilidade que o mercado financeiro. O sol forte pode dar lugar a tempestades com raios e trovoadas em minutos.

Na quinta-feira, o tempo havia fechado no mercado. A bolsa caía, dólar e juros futuros subiam, quando cheguei para entrevistar o vice-presidente eleito Geraldo Alckmin. A moeda americana bateu em R$ 5,53, mas depois cedeu e acabou fechando em R$ 5,40. Alckmin me disse que na economia o novo governo irá por etapas. Primeiro, acudir a emergência. “Estamos diante de um fato que, se não se resolver em 30 dias, 20 milhões de pessoas passarão fome”. Para depois, há um plano sendo desenhado que inclui mudança de âncora fiscal, revisão de contratos e corte de gastos. Mas ele lembrou o óbvio que a gente até esquece. O governo não assumiu.

O país está ansioso. Palavras desnecessárias do presidente eleito passaram sinais errados, e que na sexta ele tentou corrigir. Um erro também de comunicação, porque Lula empanou seu próprio brilho. Ele acertou nos discursos e nos encontros em Sharm El-Sheikh. Na quinta de manhã, ele tinha ido ao Brazil HUB, ponto no qual a sociedade civil resistiu na travessia do deserto de quatro anos. À tarde teve um encontro feliz com povos indígenas. O governo Bolsonaro representava para eles um risco real de sobrevivência. Como representa perigo para a floresta.

O Prodes deve registrar cerca de 15 mil quilômetros quadrados de destruição, entre agosto de 2021 e julho de 2022. O dado está sendo sonegado. Na sexta-feira, o Imazon soltou um alerta de que está sendo invadida a Floresta Estadual do Paru, no Pará, onde recente expedição encontrou a maior árvore já vista, um angelim de 85 metros. É um santuário de árvores gigantes. Ameaçado.

No Brasil, existe uma terra do meio onde é possível ver as imensas e justas demandas sociais, e reconhecer como corretas as preocupações com as fragilidades da economia. Os economistas parecem às vezes insensíveis, mas o que eles estão dizendo é que o Brasil está com déficit público desde 2014 e continuará nos próximos quatro anos. A dívida está em 80% do PIB. E essa dívida pública estrutura toda a poupança das famílias, das empresas, dos fundos de pensão e do sistema financeiro.

Portanto, esse ser incorpóreo e mal- afamado, o mercado, reflete na realidade a soma de todas as milhões de decisões de investimento e proteção do patrimônio. Se houver uma crise de confiança, haverá perdas generalizadas e alta da inflação. Alckmin, na entrevista que me deu, disse assim: “a inflação não é neutra, ela tira mais dos pobres”. Exatamente. Uma crise de confiança é inflacionária e, em um país de equilíbrio tão delicado, pode danificar o projeto social antes de começar.

Olhando para o outro lado dessa terra do meio, é possível ver o agravamento que houve em quatro anos de bombardeio. Milhões de brasileiros expostos à mais cruel privação. O aparelho de estado demolido em inúmeras áreas. Carências de recursos para os mais básicos programas sociais. Tudo isso exigirá mais gastos. É inevitável. E os números já foram postos na mesa.

Muitos repetem que não há conflito entre responsabilidade fiscal e social, que são complementares. Poucos estão dispostos a ouvir sinceramente o que o outro lado está dizendo. Ou há conciliação ou corremos risco grave. Muitos anos de jornalismo econômico me ensinaram como o desequilíbrio econômico é destruidor. Se o governo Lula fracassar, o país pode ter um reencontro fatal com a extrema-direita. A democracia convive com contrários e com alternância de poder, mas não sobrevive à vitória de quem quer destruí-la.

 

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