Folha de S. Paulo
Com ignorância e delinquência política, o
corpo da democracia no país permanece vulnerável
Confirmada a vitória do rito democrático,
ressoam frases aliviadas de "retorno à normalidade". Mas pode ser
muito enganoso um terreno social minado pela "hungranização"
incubada, estilo Viktor Orbán, ou seja, a modalidade de golpe de Estado sem
tanques, com aparências normais. Sobre isso, aliás, a ornitologia tem algo a
dizer.
Em pauta, um exótico falcão, conhecido como picanço ou pássaro-açougueiro, que não possui garras e, ainda por cima, canta. Igual aos demais, caça aves de menor porte. Só que em vez de matar na hora, espeta-as em espinheiros, arames farpados ou objetos pontiagudos, voltando depois para dilacerar e comer. A natureza autorregula-se: essa rapineira dispensa unhas afiadas porque mata de modo indireto, ecologicamente, por capilaridade de meios.
Assim também é possível figurar o tipo de
golpe que, no silêncio comprometido das guardas pretorianas, lança mão de um
meio ambiente favorável ao fluxo veloz de estímulos corrosivos do caráter e à
anemia da civilidade. Tudo que troque a substância política pela aparência pode
servir de ferramenta para prostrar a vitalidade da cidadania. Substanciais são
as instituições educativas (escola, família, associações civis, imprensa
livre), onde a democracia é concreta. Senão, o que se tem é o sepulcro caiado
da história viva.
As redes sociais têm sido a pá de cal com
que a ultradireita mascara a realidade. Moderno certamente é o fenômeno da capilaridade
digital, base para que o ecossistema de algoritmos se imponha como solo real na
sociedade da informação. O problema é que, por manipulação, as redes vistam
aparências de realidade última, distorçam modos de apreensão do mundo e
empacotem fatos.
Isso já ocorria na velha mídia, em outra
escala. Agora, porém, cada um é manipulador de si mesmo, como efeito da
individualização digitalizada dos estímulos. No vaivém das aparências, uma
coisa é ela mesma e seu contrário, assim como o falcão que canta para matar.
O socioambiente está posto em risco. Como
um campo minado pelo veneno da antidemocracia, o golpe se faz autoaplicado e
permanente. Corre perigo a coexistência civil em meio a instituições
fragilizadas e à mentira capilarizada em rede como certeza paranoica de que o
inimigo é a diversidade.
Mas a atmosfera tóxica deprime espíritos,
exaure o ânimo da nação. Por isso, votos contados, é um alívio respirar, como
canta uma voz nordestina, "na bruma leve das paixões que vêm de
dentro". É hora de reconstrução pessoal, obrigatoriamente a mesma de uma
vigilância institucional continuada: espetado na ignorância dos fatos e na
delinquência política, o corpo da democracia permanece vulnerável à dilaceração
por aprendizes vorazes dos pássaros-açougueiros.
Olho vivo na prestação de contas desse governo, só assim para perceber as malandragens aplicadas pelo Paulo Jegue. Todo cuidado e pouco na prestação de contas do I.R. A justiça começará a ser feita por aí.
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