domingo, 13 de novembro de 2022

Muniz Sodré* - Surtar em línguas

Folha de S. Paulo

Atual movimentação extremista torna limites entre energia viva e inorgânica imprecisos

Patéticos ou penosos: incerta é a escolha da caracterização para os eventos tabajaras posteriores à eleição presidencial. Haverá outros adjetivos, como grave ou equivalentes, pensando-se nos bloqueios, na súcia empresarial ou no motim rodoviário. Inequívoco é o diagnóstico de um golpismo bronco, por mais que tramado e financiado. Tecnicamente, teleguiado por plataformas digitais.

Até agora se supunha que o livre arbítrio qualificasse o relacionamento com a internet. Isso é até possível, quando se consideram a amplitude e a heterogeneidade das possibilidades oferecidas pela comunicação eletrônica. Mas os eventos pós-eleitorais parecem dar margem à estranha hipótese de que as redes digitais organizadas em plataformas e aplicativos tenham adquirido autonomia suficiente para movimentar automaticamente uma enorme parcela dos usuários. Heterodireção é um nome adequado para esse fenômeno: sem o comando direto de um centro, o indivíduo é teledirigido por um sistema de comunicação autonomizado.

Vem à memória "A Máquina Parou" (1909), de E.M. Forster, a distopia de um mundo subterrâneo regido por uma supermáquina, onde o elemento humano não conta. Toda dissonância é corrigida por um dispositivo reparador denominado "verme esbranquiçado". Forster antecede de muito o computador, mas sua fantasia maquinal é parente dos algoritmos de Facebook, YouTube, TikTok, Kwai ou dos disparos em massa do Zap e Telegram.

Na atual movimentação extremista de rua, intrigante é a imprecisão dos limites entre energia viva e inorgânica, ou seja, não saber se os fluxos partem de pessoas ou robôs. Ainda que haja um óbvio centro financiador, o sistema de desinformação é subterrâneo e impermeável à lógica dos fatos. O efeito imediato é o apagamento de percepção da realidade histórica em função do artifício paralelo. Daí a dissonância entre o foco algorítmico e o desfoque sociopolítico dos manifestantes.

A consequente ambiguidade tornou sinônimos patriotismo e arruaça. Mas, sendo apenas programação de baderna, o golpismo tabajara também confundiu a diretiva de "intervenção federal", desnorteando os fanáticos. De evidente apenas a maquinação anticívica: aliás, colar-se à frente de uma carreta em velocidade é a alegoria do desejo absurdo de fusão com uma máquina. O apoio ao derrotado virou pedido tresloucado de retorno do mecanismo militar. Algoritmos não falam em línguas. Na sua falta, uma histriônica histeria de conversão coletiva: crentes falando embolado na frente de quartéis, saudações nazistas, gente entoando o hino nacional para pneu de caminhão, marcha alucinada em passo de ganso. A máquina parou, os surtados ficarão à espera de um verme esbranquiçado.

*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de "A Sociedade Incivil" e "Pensar Nagô".

5 comentários:

  1. https://www.escritas.org/pt/t/48387/a-espera-dos-barbaros

    ResponderExcluir
  2. Ah! Sodré. Não são 'eventos tabajaras' ( que fazem parte dos povos originários)
    são eventos arruaceiros e. Valem os livros: O Conflito de Georg Simmel e
    As funções do conflito social de Lewis A. Coser. Em PDF na internet

    ResponderExcluir
  3. Com relação aos livros: O Conflito, de Georg Simmel e
    As funções do conflito social, de Lewis A. Coser. Em PDF na internet

    «O grupo como um todo pode entrar em uma relação antagonista com
    um poder exterior a ele, e devido a isso se dá o fortalecimento das
    relações entre seu membros e a consolidação de sua unidade, em
    consciência e em ação».
    Georg Simmel, «Conflict», p. 191

    «Esta "busca do inimigo exterior" (o exagero do perigo que
    representa um inimigo real) serve não só para manter a estrutura do
    grupo, senão também para fortalecer sua coesão quando se veja
    ameaçado pela redução de energias ou por dissensão interna. A intensidade
    do conflito externo aviva a vigilância dos membros e, ou reconcilia
    as tendências divergentes, ou leva à ação do grupo contra o dissidente».
    Lewis A. Coser, The Functions of Social Conflict, p. 106

    ResponderExcluir