domingo, 13 de novembro de 2022

Vinicius Torres Freire - Você pode ser o 'mercado'

Folha de S. Paulo

Dinheiro grosso faz lobby político, mas mercados financeiros tratam de outra coisa

Havia na França um programa de sátira chamado "Les Guignols de l’Info" (Marionetes da Notícia), uma paródia de jornal de TV que avacalhava políticos e "famosos", jornalistas inclusive. Eram bonecos de borracha, caricaturas realistas, lembrança distante de Honoré Daumier (1808-1879).

Nos anos 1990, marionetes falavam de economia e perguntavam, sussurrando: "e o mercado?". Então aparecia "O Mercado": um boneco de Rambo, Sylvester Stallone de peito nu e uma metralhadora em cada mão, ameaçando dar tiro em todo mundo (era também a caricatura do capitalista americano malvado).

No Brasil, "O Mercado" é um abantesma, aparição terrível, ou uma fantasmagoria, uma imagem do mal, que tem realidade própria, mas informe. Nesta semana, o fantasma foi xingado pela esquerda por atirar em Lula, que deu precedência à "dívida social" sobre a dívida do governo (que está, claro, na mão de muito participante dos mercados, talvez da leitora inclusive).

"O Mercado" tornou-se uma entidade também por causa de nós, jornalistas. É assunto para outro dia, importante, mas não o mais.

A melhor "opinião" dos mercados financeiros está nos seus preços. "Mercados" aqui significa os "lugares" (ora virtuais) em que se vendem e compram direitos de receber fluxos de dinheiro ou a moeda em que se deseja manter tais ativos.

Dos mais importantes são os mercados de títulos de dívida pública e de câmbio ("dólar"). Títulos de dívida pública: o direito de receber um fluxo de rendimentos (juros) do governo. Emprestar ao governo é, quase sempre, comprar um título. Quem são os credores?

Em setembro, cerca de 29,4% do valor desses títulos (empréstimos) estava nas instituições financeiras (nem todo dinheiro "nos bancos" é "dos bancos", é de depositantes e outros credores). Fundos de investimento tinham 24,2%. Previdência: 22,7%. Não-residentes: 9,2%. Seguradoras: 4%. O próprio governo (por meio de FAT, FGTS): 4,3%. Outros: 6,2%.

Não há mais detalhe sobre os credores. Mas um estudo de Marcelo Medeiros e Fábio de Castro estimou que, em 2012, o 1% mais rico ficou com cerca de três quartos dos rendimentos financeiros (não apenas de dívida pública).

Se a leitora tem "fundo de banco", é bem provável que uns 70% do seu dinheiro esteja emprestado ao governo (é daí que vem seu rendimento básico). O fundo é uma associação privada, que junta dinheiros para aplicar, da qual o investidor tem uma fatia, "cotas". O banco cobra uma taxa para administrar o fundo.

O gestor do banco, do fundo, da previdência privada ou da seguradora negocia, sem parar, títulos de dívida e outros ativos de modo a manter um rendimento esperado para o seu negócio e não ter perdas abruptas de capital. Se há perspectiva de alta de taxa de juros (queda do preço de títulos e ativos em geral, ações inclusive), há pressão para vender, assim como é pressão o risco de calote, tumulto ou, em geral, o fato de haver alternativa mais rentável ou segura.

Na prática, o mercado é isso aí. O lobby político da finança é outra coisa.

Cobra-se mais caro para emprestar a um governo com dívida crescente (com déficits), em país de crescimento baixo e/ou instável, de política econômica imprevisível, de inflação recorrente. São motivos também para preferir manter o dinheiro em outra moeda, em vez do real.

Essa é uma descrição limitada de motivos. Há também pânicos e manias. Há estupidez planetária, fraude e política criminosa, como no mercado de títulos de dívida imobiliária (hipotecas) nos EUA que deu no desastre de 2008.

No que nos interessa agora, o governo não vai tomar dinheiro emprestado a preço (juros) bom se não tiver um plano crível para conter a dívida e facilitar o crescimento. Sem isso, os donos do dinheiro vendem, "o mercado fica nervoso".

O dinheiro fica mais caro também para expandir negócios privados, para o crédito. O país e a receita de impostos crescem menos, a dívida sobe. Um círculo vicioso.

Há maneiras de enfrentar o dinheiro grosso. Dizer que ele é malvado ou ignorá-lo, ainda mais quando você precisa muito dele, não é uma delas.

 

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