sexta-feira, 11 de novembro de 2022

Nelson Motta - Gal Costa, música e lágrimas

O Globo

Cantora usou seus dons divinos — voz e musicalidade — para dedicar a vida a construir uma obra monumental

 “Minha cantora”, era como eu atendia aquela voz maravilhosa no telefone ou quando a encontrava, e isso diz quase tudo sobre nós. Que privilégio ouvir sua voz e ser seu amigo desde que ela chegou ao Rio, com 20 anos, como a baianinha “João Gilberto de saias”, e acompanhar sua trajetória gloriosa, seus momentos de sex-symbol rebelde em 1968, mixando bossa nova e Carmen Miranda com Hendrix e Joplin, “Fa-tal” com as pernas morenas entreabertas, “Índia” com os seios de fora, ela era ousada e doce, até gritando era melodiosa, com sua voz de veludo, cristal e labaredas que saía daquela bocona vermelha.

Gal usou seus dons divinos — sua voz e sua musicalidade — para dedicar a vida a construir uma obra monumental, coautoral, com um repertório rigoroso e diversificado, sempre de qualidade à altura da intérprete. Gal não só escolhia com bom gosto e ousadia entre novas versões de clássicos e novidades de alto nível, como o repertório vinha até ela. Que compositor brasileiro não adoraria ser gravado por Gal Costa? E foram muitos que, apaixonados pela voz daquela mulher, lhe dedicaram músicas, como Roberto e Erasmo explícitos com “Meu nome é Gal”, Jorge Benjor com “Que pena”, Tom Jobim, Chico Buarque, Gilberto Gil e muitos outros fãs, mas ninguém fez mais que Caetano para sua voz, sua vida, seus segredos e suas revelações: foi o grande intérprete dos desejos da intérprete.

Em 1988 ela me convidou para dirigi-la em uma turnê internacional que ia de Buenos Aires a 20 cidades do Japão e ao Lincoln Center de Nova York, acompanhada por uma banda espetacular de seis músicos. Nos ensaios, descobri que não havia nada a dirigir: só algumas conversas sobre a playlist, escolhas fáceis em seu repertório vasto e impecável, um ou outro palpite sobre um arranjo, mas sobre canto e interpretação, era só ouvir e aplaudir. Achei que ela estava me levando só como um amigo para fazer companhia rsrs. Sabia tudo a baianinha.

Tive a graça de ouvir Gal cantar divinamente e receber uma consagração no Olympia de Paris em 1977, apaixonante em Montreux, no Carnegie Hall, em Roma, no verão de 1983, diante de dez mil pessoas no Circo Massimo, seminua num vestido transparente dourado colado na pele morena que enlouqueceu o público.

Algumas vezes ela me confidenciou algumas coisas, como a sua admiração pela musicalidade de Elis Regina, tomando uma sopa de misô no café da manhã, em Osaka.

Gal e Elis, durante algum tempo, foi uma questão de escolha, de gosto pessoal, de apaixonadas discussões tolas, tipo Chico-Caetano, Rio-São Paulo, Pelé-Garrincha, mas nunca para Elis e Gal, que protagonizaram dois duetos antológicos no programa de Elis na série “Grandes nomes”, pouco antes da sua morte, em 1981.

É muito triste e doloroso viver sem minha amiga, seria impossível viver sem a sua voz, minha cantora.

 

2 comentários:

  1. Linda crônica, parabéns ao autor e ao blog que nos disponibiliza esta pérola!

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  2. É quase impossível falar de Gal sem citar Elis,duas Deusas da nossa música.

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