quarta-feira, 23 de novembro de 2022

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

PECs do Senado têm de substituir PEC da Transição

O Globo

Propostas dos senadores Tasso Jereissati e Alessandro Vieira recobram sanidade no debate fiscal

Faltando menos de um mês para a definição do Orçamento de 2023, o Senado começou um debate que merece atenção. Em jogo, não está apenas o programa de transferência de renda que voltará a se chamar Bolsa Família. A questão central é a sustentabilidade da dívida pública. Se o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva receber do Congresso uma licença para começar gastando bem mais do que o governo arrecada, sem um plano de controle do endividamento, a economia sofrerá com inflação alta e crescimento baixo.

Duas sugestões apresentadas no Senado são melhores do que a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição elaborada pelo governo eleito. A primeira,do senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), propõe expansão de R$80 bilhões no valor sujeito ao teto de gastos, que seria preservado por ora. Seria o suficiente para manter os R$ 600 pagos aos beneficiários do Bolsa Família, dar mais R$ 150 a cada criança e ainda sobrariam R$ 10 bilhões para outras rubricas orçamentárias. O redesenho do Bolsa Família com mais foco abriria ainda mais espaço sob o teto.

A proposta do senador Alessandro Vieira (PSDB-SE) — conhecida tecnicamente como waiver — autoriza gastos excepcionais fora do teto de R$70 bilhões apenas no próximo ano. Bastaria para manter o Bolsa Família em R$ 600 e para criar o novo benefício infantil. Também obriga o novo governo a apresentar já no próximo semestre uma nova regra fiscal capaz de garantir a sustentabilidade da dívida pública.

Ambas as propostas autorizam gastos adicionais inferiores aos pleiteados na PEC da Transição (R$ 198 bilhões em 2023 e R$ 175 bilhões anuais daí para frente). Não é a única vantagem. De maneiras diferentes, as duas mostram como atender a demandas sociais urgentes sem acabar com qualquer âncora fiscal. Em comum com a PEC da Transição, ambas determinam que doações a projetos ambientais ou gastos com recursos próprios de universidades federais fiquem fora do teto.

Com R$ 80 bilhões a mais sob o teto, o novo governo começaria 2023 cumprindo promessas de campanha, como bancar o programa de transferência de renda no patamar atual, dar dinheiro a famílias pobres com crianças, elevar o salário mínimo, recompor os programas Farmácia Popular e Merenda Escolar, reduzir a fila do SUS, investir em Cultura, Ciência e Tecnologia.

As duas alternativas mostram que o interesse do PT não se limita às demandas prementes dos vulneráveis. A PEC da Transição autoriza uma expansão do gasto equivalente a 2% do PIB, sem receita correspondente e sem garantia de que o aumento da dívida será controlado depois. Em sua defesa, Lula repete que, quando presidente, foi responsável no trato das contas públicas.

Representantes da equipe de transição têm dito que o novo governo fará uma reforma nas regras fiscais e também na área tributária, dois planos positivos. O porém é que o PT quer permissão para gastar antes de entregá-los. A sociedade não pode confiar apenas em intenções. Em vez da PEC de Transição petista, o Congresso deveria aproveitar ideias das duas propostas do Senado. Na de Jereissati, a manutenção dos gastos sob o teto, até que o Congresso aprove uma nova regra fiscal. Na de Vieira, a obrigatoriedade de apresentá-la num prazo factível. Dessa forma, Lula começaria seu governo tranquilo, com um voto de confiança dos mercados e da sociedade.

Governo precisa passar a oferecer as novas vacinas contra Covid

O Globo

A aprovação tardia da Anvisa torna urgente incorporá-las ao Programa Nacional de Imunizações

O Ministério da Saúde precisa incorporar quanto antes ao Programa Nacional de Imunizações (PNI) as vacinas de segunda geração que protegem não só contra a cepa original do coronavírus, mas especialmente contra as subvariantes da Ômicron BA.1, BA.4 e BA.5. Os pedidos para uso emergencial dessas vacinas chegaram em agosto para análise da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e só ontem foram autorizados pela agência. A demora é inexplicável.

Desta vez, o governo não pode nem alegar dificuldades para compra. O contrato em vigor entre o Ministério da Saúde e a Pfizer prevê substituição de parte das doses encomendadas por versões mais atualizadas. O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, tem dito que não podia adquiri-las antes que a vacina fosse aprovada pela Anvisa, mas a letargia na tomada de decisões, de um lado ou de outro, não pode punir o cidadão que precisa com urgência dos novos imunizantes para combater a escalada recente do vírus.

As vacinas de nova geração contra a Covid-19, produzidas pela Pfizer e pela Moderna, já são aplicadas como doses de reforço nos Estados Unidos, no Canadá, em países da União Europeia, no Reino Unido, no Japão, na Argentina e no Chile.

Nas últimas semanas, o Brasil tem registrado crescimento nos casos por Covid-19 em pelo menos 12 dos 27 estados, entre eles São Paulo e Rio de Janeiro. Os dados revelam que isso ocorre especialmente na população adulta. Apesar do avanço da vacinação, já se percebe o impacto da nova onda no aumento de hospitalizações, tanto na rede pública quanto na particular.

As vacinas contra a Covid-19 existentes são eficazes para prevenir hospitalizações e mortes. A vantagem das novas vacinas bivalentes é conferirem maior proteção contra as subvariantes da Ômicron responsáveis pelos novos surtos. A atualização de vacinas é procedimento corriqueiro. A da gripe é constantemente reformulada.

O Ministério da Saúde não pode repetir os erros demonstrados ao longo da pandemia, quando demorou a comprar as vacinas, desprezando ofertas de farmacêuticas idôneas e privilegiando negociações escusas. Espera-se do governo agilidade para oferecer aos brasileiros o que há de mais avançado no combate à Covid-19, incorporando rapidamente as novas vacinas ao PNI. O reforço será importante principalmente para os grupos mais vulneráveis, como idosos e imunossuprimidos.

Ao mesmo tempo, o Ministério da Saúde precisa promover campanhas para incentivar os cidadãos a se vacinar. De acordo com dados oficiais, mais de 69 milhões de brasileiros não voltaram aos postos para tomar a primeira dose de reforço. Ela é fundamental para enfrentar as variantes. Sabe-se que a maior parte dos pacientes hospitalizados não se vacinou ou não completou o esquema vacinal. Nos próximos dias, o país deverá bater a marca oficial de 690 mil mortes por Covid-19. Todo esforço precisa ser feito para evitar novos recordes absurdos. A vacinação é a melhor forma de fazê-lo.

Regalia descabida

Folha de S. Paulo

Prisão especial para quem tem diploma é norma classista que deve ser revogada

Não faltam na legislação brasileira dispositivos antirrepublicanos, que violam o princípio da igualdade entre todos os cidadãos.

Um dos mais escandalosos está no inciso VII do artigo 295 do Código de Processo Penal, que assegura a detentores de diploma de curso superior o direito à prisão especial —o privilégio de ficarem separados de outros presos enquanto não houver condenação definitiva.

O instituto é objeto de questionamento numa Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), proposta pela Procuradoria-Geral da República em 2015, e esteve em julgamento no plenário do Supremo Tribunal Federal.

O ministro Alexandre de Moraes, relator do caso, votou pela extinção do dispositivo, por considerá-lo incompatível com a Constituição de 1988. Foi acompanhado pela ministra Cármen Lúcia, mas o ministro Dias Toffoli pediu vista, adiando o julgamento.

Quando um cidadão é preso, o Estado se torna responsável por sua integridade física e psicológica. É uma obrigação na qual o Brasil falha miseravelmente, como já reconhecido pelo próprio STF.

A superlotação e as condições aviltantes dos presídios deveriam bastar para que magistrados fossem extremamente cautelosos antes de mandar qualquer pessoa para a cadeia, em especial enquanto ainda não houver culpa formada. Não obstante, cerca de 40% dos presos no Brasil ainda não tiveram seus julgamentos concluídos.

O problema da norma contestada não é que ela ofereça condições mais humanas aos presos, mas que o faça com base em critérios antirrepublicanos e classistas.

Tanto a legislação brasileira como resoluções internacionais recomendam que presos sejam segregados segundo a natureza do crime, sexo e idade, além de características pessoais.

Prender um policial em cela comum, por exemplo, seria quase um assassinato. De fato, ele deve mesmo ser separado, mas por correr risco, não por pertencer a uma corporação que se crê detentora de direitos especiais.

Contudo não faz sentido considerar que alguém, apenas por ter concluído um curso superior, seja digno de uma regalia não estendida a outros cidadãos.

Espera-se que Toffoli seja célere em sua vista e que a maioria dos ministros do STF acompanhe o equilibrado voto do relator. É verdade que, se o fizerem, escancararão outros absurdos da lei.

Afinal, as mesmas considerações válidas para excluir os portadores de diploma universitário do rol de beneficiados pela prisão especial valem para outras categorias relacionadas no próprio artigo 29, como advogados, ministros religiosos, políticos e, é claro, magistrados.

Como no Ceará

Folha de S. Paulo

Lei que busca estimular aprendizado em SP é correta, mas dependerá da execução

Aprovada pelo Congresso em 2020, a emenda constitucional 108 trouxe alterações relevantes para o financiamento da educação brasileira.

Além de ampliar e tornar perene o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (Fundeb), a norma estabeleceu que os estados devem adotar, no repasse do ICMS aos municípios, parâmetros ligados à melhoria da aprendizagem.

Trata-se de medida com potencial para alavancar a qualidade do ensino nacional. Ao menos 10% do imposto deve ser repartido dessa maneira, segundo as regras. Desde então, 24 dos 26 estados já aprovaram leis nesse sentido —a mais recente delas em São Paulo.

O diploma estabelece que 13% do ICMS paulista seja partilhado segundo a evolução do aprendizado das crianças do 1º ao 5º ano da rede municipal, calculada por meio da taxa de aprovação e dos resultados obtidos no Saresp, exame que avalia habilidades acadêmicas, além de um indicador que considera dados municipais.

O novo mecanismo será implementado de forma gradual, a partir de 2025, com percentual de 10%, chegando a 13% em 2028.

Até lá, caberá ao próximo governador, Tarcísio de Freitas (Republicanos), negociar com os municípios alguns pontos da lei, sendo o principal deles a adesão ao Saresp, hoje facultativa.

Em 2021, apenas 200 das 645 cidades paulistas participaram da prova. Ocorre que a nova legislação determina que os municípios que não integrarem o exame ou tiverem menos de 80% de seus alunos inscritos receberão a menor nota e, consequentemente, perderão recursos da arrecadação.

A mudança no ICMS tem inspiração na experiência exitosa do Ceará, que desde 2007 atrela a distribuição do imposto a critérios educacionais. Desde então, o estado apresentou a maior evolução nacional no Ideb e hoje ostenta os melhores índices de alfabetização do país.

Embora destaquem a importância do estímulo econômico no progresso cearense, especialistas assinalam que a medida, por si só, não constitui uma panaceia.

Segundo Olavo Nogueira Filho, diretor-executivo da ONG Todos Pela Educação, o sucesso do Ceará também se deve ao apoio às prefeituras, com o objetivo de aprimorar a gestão local, por exemplo, por meio de materiais pedagógicos e formação de professores.

Também essa particularidade da política educacional cearense deveria ser emulada Brasil afora.

A defesa da democracia e o bloqueio de perfis

O Estado de S. Paulo

Sem dispor dos meios adequados, STF e TSE priorizaram a defesa do regime democrático, com medidas excepcionais. Revisitar essas decisões é também defender a democracia

O Poder Legislativo criou um enorme problema, de certa forma insolúvel, para o Judiciário: o dever de proteger a democracia nos tempos atuais sem oferecer as ferramentas adequadas para tanto. O que ocorreu nos últimos anos – em concreto, nos últimos meses – foi uma situação realmente desafiadora. A Justiça tinha a missão de defender o Estado Democrático de Direito, mas não dispunha dos meios necessários. O Congresso não definiu, por meio de lei, a regulamentação das redes sociais nem estipulou o tratamento jurídico a ser dado à desinformação.

Assim, o Judiciário só tinha à disposição instrumentos e procedimentos antigos, pensados para contextos muito diferentes. Uma resistência à altura dos ataques e ameaças antidemocráticas necessariamente provocaria desequilíbrios e despertaria críticas. Não havia solução perfeita: ou a Justiça iria ser acusada de omissão ou de ativismo. Diante dessa disjuntiva, o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) entenderam que a prioridade era preservar o regime democrático. Todo o restante era secundário, até porque, sem democracia, todas as outras liberdades e garantias também estariam ameaçadas.

Decretado inúmeras vezes pelo STF e pelo TSE, o bloqueio de perfis em redes sociais é uma das medidas dessa atuação protetiva da Justiça com especial potencial de ferir liberdades e garantias fundamentais. Para muitos, essa atuação do Judiciário configuraria inequívoca censura. Ela não apenas puniria supostos abusos pretéritos, como impediria futuras manifestações de opinião. Segundo a Constituição, “é livre a manifestação do pensamento” e “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.

Cabe advertir, em primeiro lugar, a plena legitimidade de a Justiça determinar o bloqueio de perfis em redes sociais. A medida não é por si só abusiva. O direito de se expressar livremente não significa direito absoluto e irresponsável de ter um perfil numa rede social. Não há direito de delinquir. Não há direito de agredir. Existe, por exemplo, liberdade constitucional de associação, mas não existe liberdade de associação para o crime. São coisas diversas, e compete à Justiça fazer a devida distinção entre elas.

Deve-se reconhecer, ao mesmo tempo, que a atuação da Justiça nessa seara tem de ser especialmente cuidadosa. O Judiciário deve interferir o mínimo possível – apenas e tão somente onde for realmente necessário – e de forma muito fundamentada – caso a caso, sem soluções de baciada. Um tanto óbvias, essas duas condições se chocavam com a frequência, a intensidade e o ineditismo dos ataques e ameaças à democracia. Como definir de antemão o que é o estritamente imprescindível? Como responder a uma contínua avalanche de desinformação? Não apenas não havia critérios legais, como não existiam parâmetros jurisprudenciais previamente estabelecidos. STF e TSE estavam, de fato, em uma situação muito particular.

Reconhecer a excepcionalidade dessas circunstâncias, como também a omissão do Congresso no tratamento jurídico relativo à desinformação, é essencial para entender o contexto real no qual os inúmeros bloqueios de perfis em redes sociais foram decretados pelo STF e pelo TSE. A Justiça atua no caso concreto, e não em situações hipotéticas de debates acadêmicos. Eventual omissão poderia gerar graves danos aos direitos e garantias de todos.

De toda forma, ter presente o contexto dessas decisões judiciais não significa aplaudi-las todas, e muito menos anuir com sua permanência no tempo. É mais que hora de o Judiciário revisar essas medidas, mantendo apenas aquelas que, de forma inequívoca e fundamentada, sejam estritamente necessárias nas circunstâncias atuais. Nesse trabalho, é fundamental que os indícios de crimes sejam apurados e, nas hipóteses legais, denunciados.

Entre outros pontos, o Estado Democrático de Direito significa compromisso inegociável com o devido processo legal. Liberdade e cumprimento da lei não se opõem.

Propostas para frear o ímpeto gastador de Lula

O Estado de S. Paulo

Não há quem não reconheça a necessidade de ajustar o Orçamento de 2023. Mas há formas mais adequadas de fazer mudanças e de tratar urgências com a celeridade que exigem

Nos últimos dias, senadores apresentaram alternativas à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição, defendida pelo governo eleito como a melhor forma de ajustar o Orçamento de 2023 às promessas de campanha. Cada uma tem suas particularidades, mas ambas tentam frear o ímpeto gastador manifestado pela equipe de Lula da Silva, que pode elevar o rombo fiscal em R$ 198 bilhões.

A proposta de Alessandro Vieira (PSDB-SE) limita-se a assegurar os recursos para manter o piso do Bolsa Família em R$ 600 e o adicional de R$ 150 por criança de até seis anos, reduzindo o espaço para despesas a R$ 70 bilhões. Em paralelo, o governo teria de aprovar um regime fiscal para substituir o teto de gastos até 17 de julho, prazo final para votar a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2024. Uma vez aprovada, tal lei complementar revogaria automaticamente os dispositivos que dizem respeito ao teto, algo que seria muito positivo para preservar a própria Constituição. Afinal, como diz a justificativa, “uma regra que precisa de exceção em caráter recorrente mostra-se ineficaz e perde a credibilidade”.

A sugestão de Tasso Jereissati (PSDB-CE) segue princípios semelhantes. Ela garante o piso do programa social, mas não o valor extra por criança. Por outro lado, abre espaço para despesas de R$ 80 bilhões, que incluem um reajuste real para o salário mínimo e a recomposição das verbas dos programas prioritários, como o Farmácia Popular e a merenda escolar. Ela também reconhece a legitimidade do governo eleito para propor um novo regime fiscal no próximo ano.

“A discussão do arcabouço adequado não é algo trivial que possa ser realizado ao final de uma legislatura e sem um novo governo empossado e uma equipe já com todos os dados e informações necessários para proposição de uma nova regra fiscal perene. O ideal é que o novo governo tenha tempo hábil para negociar e propor um arcabouço que seja adequado para um novo ciclo de crescimento da economia brasileira”, afirma a justificativa de Jereissati.

Além de não ignorar os desafios econômicos do País, como a PEC da Transição, as duas propostas estabelecem urgências sociais a serem tratadas com total prioridade. Em vez de tratar o teto como dogma, fixar um mecanismo para substituí-lo ou ignorar a importância de uma âncora para a credibilidade fiscal, elas garantem ampla liberdade de escolha ao governo eleito e um tempo mais do que suficiente para a construção de apoio a uma proposta definitiva no Congresso. É tudo que se espera de uma oposição atuante e responsável.

As diretrizes que nortearam as sugestões podem colaborar para um debate mais responsável no Legislativo sobre a proposta do governo. Não se pode esquecer que, entre as contribuições do presidente Jair Bolsonaro para corroer a democracia, está a degradação do debate parlamentar. De um ambiente de discussão de ideias que muitas vezes requerem tempo para amadurecimento e para composição dos consensos possíveis, o Congresso converteu-se em um avalista de urgências sempre apresentadas como solução única, como se não houvesse alternativas possíveis. É necessário que o próximo governo dê fim à prática bolsonarista que tanto colaborou para corromper as relações entre Executivo e Legislativo.

Foi nesse clima atormentado que a votação da PEC dos Precatórios foi conduzida. Senadores sugeriram a exclusão dos precatórios do teto para garantir o pagamento desses compromissos e financiar o Auxílio Brasil em 2022, mas nem sequer foram considerados. Meses depois, o Executivo recorreu a uma nova emenda para elevar o benefício social e, mais uma vez, o Congresso se viu encurralado a dar aval ao texto que ganhou a alcunha de Kamikaze.

Não há quem não reconheça a necessidade de ajustar o Orçamento de 2023. Há, no entanto, formas mais adequadas de fazer essas mudanças. Tratar prioridades com a celeridade que elas exigem é um desses princípios, assim como sinalizar, desde já, firme comprometimento com o resgate do arcabouço fiscal, mesmo que a definição da âncora fique para um futuro próximo.

Sem direito de ir e vir

O Estado de S. Paulo

É inaceitável que brasileiros se vejam privados do direito de sair do País porque falta verba para passaportes

A Polícia Federal (PF) suspendeu no último sábado a emissão de passaportes por falta de verba. Logo depois, a Polícia Rodoviária Federal anunciou que também limitaria serviços de manutenção nas viaturas por falta de recursos. São dois pequenos exemplos, com graves consequências, do desarranjo orçamentário promovido pelo governo Jair Bolsonaro para custear seu projeto eleitoreiro.

A confecção de passaportes é um serviço público prestado pela PF por meio de um contrato com a Casa da Moeda. A pandemia gerou uma demanda reprimida. Até outubro deste ano, a PF emitiu 1,9 milhão de passaportes, bem acima do 1,2 milhão em 2021, e do 1 milhão em 2020. Nestas circunstâncias, já era previsto que a dotação de R$ 217,9 milhões seria insuficiente. A 40 dias do fim do ano, toda a verba já foi consumida.

No fim de julho, a dois meses das eleições, o governo conseguiu autorização do Congresso para liberar R$ 41,2 bilhões fora das regras fiscais para turbinar benefícios sociais, incluindo dinheiro a taxistas e caminhoneiros. Na mesma época, bloqueou um total de R$ 14,7 bilhões do Orçamento, afetando sobretudo os Ministérios da Saúde e da Educação. O Ministério da Justiça sofreu um corte de R$ 229 milhões. Só no orçamento da PF foram bloqueados R$ 104,9 milhões. À época, a corporação alertou que, além de cursos de formação e operações para o combate de desmatamentos e garimpo ilegal, os cortes implicariam a interrupção da emissão de passaportes. Dito e feito.

Sem a confecção dos passaportes – um serviço, por sinal, que custa aos cidadãos R$ 257,20 – tolhe-se o direito de ir e vir, com impactos para turistas (em recreação ou negócios), pesquisadores e estudantes em intercâmbio ou até quem viaja para buscar atendimento de saúde. É uma desmoralização completa para o Poder Público.

Mesmo com os alertas crescentes e ainda nos dias seguintes à interrupção, o Ministério da Economia dizia que a questão seria deliberada na próxima reunião da Junta de Execução Orçamentária, “sem data definida”.

Enquanto o presidente da República está há duas semanas amuado no Palácio da Alvorada, coube à Comissão Mista do Orçamento no Congresso se mobilizar para pôr na pauta um Projeto de Lei para a liberação de crédito suplementar ao Orçamento de R$ 596 milhões – sendo R$ 37 milhões para a PF retomar a emissão de passaportes, montante que dará algum alívio, mas possivelmente não será suficiente para a regularização completa dos serviços.

As agruras em 2023 estão contratadas. O relator-geral do Orçamento, o senador Marcelo Castro (MDB-PI), tem dito que o orçamento apresentado pelo governo está cheio de “buracos” e é inexequível. Alguns programas teriam corte de mais de 90%. A PF, por exemplo, receberá, em valores corrigidos pela inflação, R$ 100 milhões a menos que em 2022. A interrupção de um serviço básico para atender a direitos fundamentais dos cidadãos, como a emissão de passaportes, é só um prenúncio das mazelas a que os contribuintes estarão submetidos pelos desarranjos orçamentários produzidos pelo oportunismo do governo.

Acordo sobre o ICMS é mais um desafio na área fiscal

Valor Econômico

O ICMS sempre foi um instrumento fácil para os Estados aumentarem suas receitas

Encontrar uma saída para viabilizar o pagamento de R$ 600 do Auxílio Emergencial a partir do próximo ano não é a única pressão fiscal no horizonte do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva. Outro problema igualmente importante, herdado do governo Bolsonaro, será resolver com os Estados a questão do ICMS incidente sobre combustíveis, energia elétrica e telecomunicação.

O imposto foi cortado por decisão federal a partir de julho para reduzir a inflação e tentar melhorar as chances de Jair Bolsonaro nas urnas pouco antes das eleições presidenciais. Houve mudanças também em base de cálculo. Com esses objetivos, o governo federal estabeleceu em lei que o ICMS incidente sobre itens considerados essenciais, não poderia superar os 17% a 18%. Se a medida não trouxe o resultado esperado na votação, foi importante para reduzir o ímpeto da inflação, que se mantinha em dois dígitos no acumulado em 12 meses e agora deve fechar o ano abaixo de 6%. Relatório Focus divulgado ontem trouxe a previsão de uma taxa de 5,88%.

Por isso, parece fora de cogitação a volta às alíquotas anteriores, que chegavam a superar os 30% no caso de combustíveis em alguns Estados, como no Rio de Janeiro. O ICMS sempre foi um instrumento fácil para os Estados aumentarem suas receitas e também para políticas de incentivo fiscal. É importante fonte de arrecadação, bancando programas de saúde e educação, e irriga em parte também os cofres municipais por meio de repasses. Por isso, o problema não deveria ter sido resolvido arbitrariamente.

As estimativas do impacto do corte do ICMS nas contas estaduais são variáveis. De acordo com o Comitê Nacional de Secretários da Fazenda dos Estados e Distrito Federal (Comsefaz), a perda aos cofres estaduais pode chegar a R$ 125 bilhões em 12 meses, sendo pouco mais de 40% representados pelos combustíveis. Cálculos da Instituição Fiscal Independente (IFI) mostraram uma queda de 6,5% na arrecadação de ICMS no terceiro trimestre na comparação com o igual período de 2021, equivalente a R$ 12,1 bilhões, que daria perto de R$ 50 bilhões se repetido ao longo de quatro trimestres.

O governo Bolsonaro chegou a prometer uma compensação, mas não houve acordo sobre como as perdas seriam calculadas. Os governadores recorreram ao STF, onde o ministro Gilmar Mendes criou uma comissão especial para discutir o assunto, que tinha como deadline 4 de novembro. O prazo foi prorrogado a pedido da Advocacia-Geral da União (AGU) para 2 de dezembro. Há outras ações no STF a respeito do tema, sob relatoria de Rosa Weber e André Mendonça.

Independentemente do resultado dessas ações, alguns Estados conseguiram na Justiça liminar para suspender o pagamento de suas dívidas junto ao governo federal como compensação, de forma que está havendo repercussão também nos cofres da União. São eles Acre, Alagoas, Maranhão, Minas Gerais, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e São Paulo que, desse modo, já estariam recuperando suas perdas.

Com o pedido de prorrogação das discussões na comissão, a AGU parece querer jogar o problema para o próximo governo. Qualquer que seja, o desfecho da discussão vai realmente cair no colo do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, que tem outros problemas na área que afetam diretamente a arrecadação, como a isenção de tributos federais PIS e Cofins sobre combustíveis, conta pouco acima de R$ 50 bilhões, que o Planalto tem que decidir se vai manter ou não.

O debate ocorre em momento de mudança de cenário, que deve afetar os cálculos do impacto do corte do ICMS sobre os bens essenciais. Os Estados vêm de dois anos de bons resultados fiscais, favorecidos pelas transferências de recursos federais durante a pandemia e pela redução de despesas nesse período, com a suspensão de contratações e reajustes salariais, além da surpresa com o crescimento econômico deste ano. O aumento da inflação também ajudou, com as receitas correndo na frente das despesas.

No entanto, o quadro certamente será diferente no próximo ano. A perspectiva é de desaceleração da economia doméstica e internacional, o que deve contribuir para reduzir a arrecadação e dificultar ainda mais o cumprimento dos compromissos constitucionais dos Estados. Há quem defenda uma solução no âmbito da esperada reforma tributária, com o objetivo de aliviar a carga dos consumidores e simplificar a tributação. Mas esse é outro assunto espinhoso, de agenda mais incerta ainda.

 

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