O Globo
Um dos traços distintivos do populismo,
segundo a literatura acadêmica, é ser eleitoral, diferenciar-se de formas
ditatoriais por aceitar a alternância no poder.
Foi assim com as experiências populistas
europeias nos anos 2000, quando partidos populistas — como a Liga, que
participou do governo italiano entre 2000 e 2006 e entre 2008 e 2011; ou o
Partido da Liberdade, no governo austríaco entre 2006 e 2008 — passaram o poder
depois a novas coalizões governamentais de forma regular. O mesmo aconteceu nos
anos 2010 com forças populistas como o Cinco Estrelas, na Itália, ou o Syriza,
na Grécia.
Há um temor de que o bolsonarismo seja um
fenômeno de outro tipo, um populismo de tipo iliberal — com corrosão gradual
das instituições democráticas — ou pior, um movimento que aponta diretamente
para uma ditadura.
Acompanhar os grupos bolsonaristas em aplicativos de mensagens como WhatsApp ou Telegram é muito instrutivo. O discurso que encontramos ali confunde o bolsonarismo com o povo e, por meio disso, permite compatibilizar o apelo para uma intervenção militar com uma ideia distorcida de democracia — como se apenas um golpe de Estado pudesse recolocar o “povo” no poder.
O entendimento tácito deste conceito de
povo é que ele é unitário, essencialmente expresso pelo movimento que dá
sustentação a Bolsonaro. Isso significa que, mesmo que Lula tenha
tido a maioria dos votos, seus eleitores não fazem parte do “povo” — pelo menos
não do “verdadeiro” povo. O fanatismo bolsonarista não reconhece a legitimidade
de qualquer outra expressão política que não seja Bolsonaro e parece disposto a
abandonar a via eleitoral se for preciso.
Além desse conceito distorcido de “povo”,
há pelo menos três elementos do bolsonarismo que apontam para isso. O primeiro
é o descrédito do sistema eleitoral. O bolsonarismo não atacou apenas a urna
eletrônica, mas colocou sob suspeita outros componentes fundamentais do
sistema, como os institutos de pesquisa e a Justiça Eleitoral. Sem confiança no
resultado das urnas, na arbitragem da Justiça e na medição da inclinação do
eleitorado, a própria ideia de democracia eleitoral é posta em xeque.
O segundo elemento é o ataque à imprensa.
Bolsonaro não critica a correção de uma determinada reportagem ou a posição
editorial de um determinado veículo. Ele ataca a imprensa como um todo,
incitando seus apoiadores a abandonar o consumo de notícias produzidas pelo
jornalismo profissional em prol de uma dieta informacional à base de
comentários no YouTube e
boatos no Telegram. Ele está criando um exército de idiotas, que põe em dúvida
a apuração de uma reportagem profissional enquanto dá ouvidos à especulação de
áudios anônimos num aplicativo de mensagens.
O terceiro e último elemento é a campanha
de Bolsonaro para armar a população. Ela não é apenas pelo direito de cidadãos
se defenderem de um assalto à residência. Bolsonaro tem dito reiteradamente que
“povo armado não se submete à ditadura” — e, por ditadura, obviamente não se
refere a um regime de força que ele próprio venha a instaurar. Na realidade
paralela dos fanáticos, ditadura se refere a qualquer governo que não seja a
expressão “do povo”. Bolsonaro está fomentando uma milícia de apoiadores
armados para agir como agiram Roberto Jefferson e Carla Zambelli, rechaçando a
pluralidade política e se insurgindo contra o poder do Estado, quando este não
está sob o comando direto de Bolsonaro.
Está na hora de o bolsonarismo esclarecer o
que de fato é. O populismo de direita pode tensionar o arcabouço da democracia
liberal, mas, controlando seus excessos, ainda pode pertencer ao espectro
democrático. Se é isso que o bolsonarismo pretende ser, ele precisa reconhecer
a derrota eleitoral e suspender a agitação ridícula na porta dos quartéis.
Falou e disse!
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