sábado, 12 de novembro de 2022

Pablo Ortellado - Bolsonaristas precisam conceder a derrota

O Globo

Um dos traços distintivos do populismo, segundo a literatura acadêmica, é ser eleitoral, diferenciar-se de formas ditatoriais por aceitar a alternância no poder.

Foi assim com as experiências populistas europeias nos anos 2000, quando partidos populistas — como a Liga, que participou do governo italiano entre 2000 e 2006 e entre 2008 e 2011; ou o Partido da Liberdade, no governo austríaco entre 2006 e 2008 — passaram o poder depois a novas coalizões governamentais de forma regular. O mesmo aconteceu nos anos 2010 com forças populistas como o Cinco Estrelas, na Itália, ou o Syriza, na Grécia.

Há um temor de que o bolsonarismo seja um fenômeno de outro tipo, um populismo de tipo iliberal — com corrosão gradual das instituições democráticas — ou pior, um movimento que aponta diretamente para uma ditadura.

Acompanhar os grupos bolsonaristas em aplicativos de mensagens como WhatsApp ou Telegram é muito instrutivo. O discurso que encontramos ali confunde o bolsonarismo com o povo e, por meio disso, permite compatibilizar o apelo para uma intervenção militar com uma ideia distorcida de democracia — como se apenas um golpe de Estado pudesse recolocar o “povo” no poder.

O entendimento tácito deste conceito de povo é que ele é unitário, essencialmente expresso pelo movimento que dá sustentação a Bolsonaro. Isso significa que, mesmo que Lula tenha tido a maioria dos votos, seus eleitores não fazem parte do “povo” — pelo menos não do “verdadeiro” povo. O fanatismo bolsonarista não reconhece a legitimidade de qualquer outra expressão política que não seja Bolsonaro e parece disposto a abandonar a via eleitoral se for preciso.

Além desse conceito distorcido de “povo”, há pelo menos três elementos do bolsonarismo que apontam para isso. O primeiro é o descrédito do sistema eleitoral. O bolsonarismo não atacou apenas a urna eletrônica, mas colocou sob suspeita outros componentes fundamentais do sistema, como os institutos de pesquisa e a Justiça Eleitoral. Sem confiança no resultado das urnas, na arbitragem da Justiça e na medição da inclinação do eleitorado, a própria ideia de democracia eleitoral é posta em xeque.

O segundo elemento é o ataque à imprensa. Bolsonaro não critica a correção de uma determinada reportagem ou a posição editorial de um determinado veículo. Ele ataca a imprensa como um todo, incitando seus apoiadores a abandonar o consumo de notícias produzidas pelo jornalismo profissional em prol de uma dieta informacional à base de comentários no YouTube e boatos no Telegram. Ele está criando um exército de idiotas, que põe em dúvida a apuração de uma reportagem profissional enquanto dá ouvidos à especulação de áudios anônimos num aplicativo de mensagens.

O terceiro e último elemento é a campanha de Bolsonaro para armar a população. Ela não é apenas pelo direito de cidadãos se defenderem de um assalto à residência. Bolsonaro tem dito reiteradamente que “povo armado não se submete à ditadura” — e, por ditadura, obviamente não se refere a um regime de força que ele próprio venha a instaurar. Na realidade paralela dos fanáticos, ditadura se refere a qualquer governo que não seja a expressão “do povo”. Bolsonaro está fomentando uma milícia de apoiadores armados para agir como agiram Roberto Jefferson e Carla Zambelli, rechaçando a pluralidade política e se insurgindo contra o poder do Estado, quando este não está sob o comando direto de Bolsonaro.

Está na hora de o bolsonarismo esclarecer o que de fato é. O populismo de direita pode tensionar o arcabouço da democracia liberal, mas, controlando seus excessos, ainda pode pertencer ao espectro democrático. Se é isso que o bolsonarismo pretende ser, ele precisa reconhecer a derrota eleitoral e suspender a agitação ridícula na porta dos quartéis.

 

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