O Globo
Não adianta escolherem artistas famosos
para comandar nossa Cultura. É preciso alguém que seja capaz de sonhar e ao
mesmo tempo construir na prática
A gente sabe muito bem que a eleição
recente de Luiz Inácio Lula da Silva foi, em parte, resultado de certas
circunstâncias. Ele obteve os votos de seus parceiros do PT e os de seus
permanentes eleitores; mas também, em parte, os votos daqueles que quiseram
interromper o avanço insano do país em direção à autocracia fascista. Mais ou
menos o mesmo fenômeno político que elegeu Jair Bolsonaro em 2018, com o sinal
trocado.
O Brasil recusou assim, nessas eleições
democráticas de 2022, a barbárie em que podia estar se tornando a política no
país. Felizmente isso aconteceu e, mais uma vez em parte, devemos esse serviço
cívico a Luiz Inácio. E os outros, os que não votaram em Lula e eram quase
metade dos nossos eleitores? O que faremos com eles que são quase metade de
nossa população?
Em primeiro lugar é preciso não perder de vista quem ganhou a preferência das urnas. São os que devem nos governar, aqueles a quem devemos respeito e colaboração para administrar o que nos aguarda a todos. Um pouco como anda fazendo, em notável exemplo, o vice-presidente eleito Geraldo Alckmin.
Mas é preciso também não ignorar a parte de
nossa população que se revelou disposta a um golpe contra o governo eleito, de
preferência com apoio militar, reunindo-se à porta de quartéis e monumentos
semelhantes. Não atender a esse desejo doentio é nosso dever de paz, através
dos esforços que possam ser feitos e da negação radical a esses planos
marginais.
Mesmo que não se refira diretamente ao
assunto, a Cultura de um país é o alimento mais poderoso desses projetos e de
seus semelhantes. Foi de certas lendas e tradições mal contadas que nasceu essa
direita que hoje se identifica abertamente como bolsonarista.
E repito aqui o que escrevi outro dia: é
fácil livrar-se de Jair Bolsonaro, dentro de alguns meses ou de poucos anos
talvez ninguém mais se lembrará do que ele era, pensava e dizia. Mas o
bolsonarismo é para sempre, sendo uma forma de pensamento e ação política
cultivada por grande parte dos brasileiros que a tinham prisioneira em armário
doméstico de onde finalmente se libertaram. E, graças ao presidente que deixa o
cargo este mês, saídas do armário nunca mais se envergonharão de se manifestar.
Não adianta os novos dirigentes do país
escolherem artistas famosos para comandar nossa Cultura. Não adianta eles serem
“líderes de classe” em uma atividade, a Cultura, que nunca teve um
significativo movimento social classista (nem precisava ou era conveniente
ter). Não adianta eles serem escolhidos entre os amigos da respeitável Janja. É
preciso escolher alguém que seja capaz de sonhar e ao mesmo tempo construir na
prática os valores de nossa Cultura para, em primeiro lugar, descobrir e
revelar que país é este em que vivemos e exercemos nossos valores humanos. No
fundo, a Cultura não é mais do que a manifestação real e profunda de um grupo
específico de seres humanos.
Não tenho dúvida de que é essa a primeira
tarefa inédita de um novo Ministério da Cultura: que país é este? E não perder
de vista que vivemos e desenvolvemos um país diferente do resto do planeta. Não
apenas por sua formação econômica e étnica, mas também por seu gosto pela vida
e por um futuro que ele certamente ainda não sabe bem qual é.
Sim!
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