O Globo
Os que jogavam a seu lado ou contra ele
também sabiam que ali estava o melhor de todos, capaz de jogadas impossíveis
para os mortais
Vi Pelé jogar. E concordo com Nélson
Rodrigues. Pelé sabia que era o Rei. Mais: os que jogavam a seu lado ou contra
ele também sabiam que ali estava o melhor de todos, capaz de jogadas
impossíveis para os mortais. Mais ainda: a torcida sabia. Todas as torcidas. No
estádio, era um espetáculo. Quando Pelé dominava a bola no meio-campo e virava
o corpo na direção do gol adversário, as pessoas se levantavam na expectativa.
Reparem: Pelé estava a meio campo do gol,
vários adversários à frente, e a torcida já de pé. Quando ele partia em
velocidade, as pessoas já estavam comemorando. Mesmo que não saísse o gol, a
gente podia dizer: eu vi.
Meu gol preferido é da Copa de 1958, contra
o País de Gales. Pelas circunstâncias. Zero a zero, jogo eliminatório, segundo
tempo. Pelé está dentro da área, de costas para o gol. Pede a bola. Recebe no
peito, deixa cair, um toquezinho sobre as pernas do marcador e coloca no canto.
Ele faria outros gols espetaculares e
decisivos. Mas a gente já sabia que era o Pelé. Em 1958, era um rapaz de 17
anos que se apresentava ao mundo. E todos entenderam, era muito mais que um gol
de Copa. Ou se poderia dizer: vocês ainda não viram nada.
Governo Lula
Voltando à nossa seara, vamos dar por
entendido que o governo Lula terá dificuldades com:
1. cenário externo desfavorável, num mundo
com inflação elevada, juros altos e desaceleração da atividade econômica;
2. cenário interno complicado nos mesmos
itens, inflação, juros, desaceleração;
3. formação de maiorias na Câmara e no
Senado.
Não é pouca coisa, mas cabe acrescentar uma
dificuldade menos comentada: a administração interna do governo. Burocracia,
gestão — não é assunto tão interessante, mas crucial.
Um ministério tem secretarias,
coordenadorias e departamentos. Como acomodá-las nos 37 ministérios, sobretudo
depois do vendaval de incompetência e má-fé do governo Bolsonaro?
Fernando Haddad e Simone Tebet têm óbvias
diferenças no pensamento econômico. Daí deriva uma questão prática: como se
entenderão na gestão do Orçamento?
Com base em formatos já aplicados em
diversos governos, o Ministério do Planejamento tem a Secretaria de Orçamento,
que prepara o projeto de Orçamento enviado ao Congresso e, depois de aprovado,
acompanha sua realização. A Fazenda tem a Secretaria do Tesouro, o caixa do
governo, que faz os pagamentos aos ministérios, que gastam nos programas e
obras. Se um ministro quer liberar uma verba, passa primeiro no balcão do
Planejamento, onde apanha a autorização, depois na Fazenda, para receber o
dinheiro.
Por trás do roteiro burocrático, está a
escolha de prioridades: gastar mais em pessoal ou em obras? O que vem na
frente, os recursos da Funai ou da Sudam? Isso é economia e política —
ministros fortes politicamente sempre arranjam mais dinheiro. Se foi difícil para
Lula dividir o ministério, como ele disse, será ainda mais complicado arbitrar
as demandas dos ministros e da ampla coalizão.
Sim, Lula já fez isso, mas as
circunstâncias mudaram. A questão principal neste início de governo será
arranjar a burocracia: onde fica esta ou aquela secretaria? Em qual prédio? Com
que recursos (assessores ou cargos comissionados)? Pode parecer coisa pequena,
mas sem essa organização o governo simplesmente não anda. Além dos grandes
arranjos, a nova administração pode encalhar em disputas burocráticas.
Para continuar no tema da política
econômica: sempre que houve a divisão entre Fazenda e Planejamento, a primeira
foi dominante. Não se gasta um centavo sem passar pela poderosa Secretaria do
Tesouro. Isso significa que Simone Tebet terá de arranjar funções e poderes em
áreas não relativas à política econômica. Gestão das estatais costumava ser uma
função do Planejamento. Mas a ministra terá autoridade sobre uma Petrobras,
gigante dirigida por um petista?
Lula foi praticamente obrigado a montar um
governo amplo e diverso. Conseguiu. Agora começa a parte mais trabalhosa:
colocar a geringonça para funcionar.
Verdade.
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