quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Cristiano Romero - A cabeça do brasileiro 20 anos depois

Valor Econômico

Parecemos mais liberais na economia e nos costumes do que há 20 anos

O Brasil, graças à enorme diversidade étnica e cultural, ao racismo que desde sempre é a principal característica nacional, à ignominiosa desigualdade que separa ricos e pobres e à desafiadora concentração do poder econômico e, portanto, político, talvez seja o maior desafio da humanidade em relação ao que se chama de “nação”. Diante de afirmação aparentemente cáustica, interlocutores indagaram ao colunista: “Se isso fosse verdadeiro, estaríamos em guerra”. Não estamos?

“O Brasil não é para principiantes”, disse certa vez um de nossos gênios da música, Antônio Carlos Jobim. O compositor, multi-instrumentista, poeta, cantor e maestro era, também, apaixonado por aves e palavras. Adorava gastar seu precioso tempo lendo dicionários. Seu pássaro predileto era o “urubu”, título de um de seus principais álbuns, e outro passatempo era tentar entender o Brasil.

A célebre frase de Jobim, apesar de irônica e, assim, engraçada, ensejava uma frustração. Por que um país, dono do quinto maior território do planeta, riquíssimo em recursos naturais, livre de terremotos, furacões e tsunamis, habitado por mais de 210 milhões de pessoas, não dá certo? Alguém pode perguntar: “O que é não dar certo?”.

Há várias respostas, mas uma delas, de tão óbvia, deveria ser objeto de reflexão diária de todos, principalmente, das elites culturais. Um exemplo de que este país não dá certo está nas estatísticas referentes às taxas de homicídio registradas anualmente: de cada 100 brasileiros assassinados todo ano, cerca de 80 são negros. Em 2019, no Estado de Alagoas, apenas uma, em cada 10 pessoas mortas de forma violenta, era branca.

Se a mera divulgação desses números não mobiliza as elites (todas, das endinheiradas às intelectuais, culturais, sindicais e políticas, isto, sem esquecer dos jovens instruídos, habitantes de bairros de classe média como a Vila Madalena, em São Paulo, sempre mobilizados para protestar contra proposta de reforma da Previdência ou de privatização de estatais como a Petrobras e o Banco do Brasil), é porque este país, tão distante de tornar-se uma nação, é a própria representação do que não dá certo neste mundo, vasto mundo.

Uma informação deve ser lembrada a todo o tempo para que incautos não caiam na armadilha de comparar o racismo e suas consequências neste país com o que se vê nos Estados Unidos: aqui, os negros são 56% da população; nos EUA, pouco mais de 13%.

“No Brasil, fazer sucesso é ofensa pessoal”, declarou Tom Jobim em outra oportunidade. O suposto mau humor do compositor carioca derivava do assédio moral que críticos de corte nacionalista faziam à suposta influência do jazz em sua música. Arrancaram-lhe também o coro quando Jobim cedeu a uma multinacional o direito de usar uma de suas obras-primas - “Águas de Março” - em campanha publicitária.

“O Brasil tem um enorme passado pela frente”, escreveu outro gênio brasileiro, o escritor, tradutor e chargista Millôr Fernandes. A frase define o velho dilema nacional, qual seja, o de ter enorme dificuldade de avançar para se tornar um país mais moderno, menos arcaico e, consequentemente, um lugar melhor para se viver para a maioria de seus habitantes.

Vivemos, ao longo da história, o mito do eterno retorno, caracterizado por momentos de enorme esperança no futuro do país e períodos que contrariam profundamente o otimismo dantanho. Com o passar dos anos, a frustração vai sendo sedimentada de um jeito que o sujeito panglossiano se torna sinônimo de pessoa desinformada.

Há 20 anos, o cientista político Alberto Carlos de Almeida tomou decisão corajosa ao testar, por meio de abrangente e rigorosa pesquisa quantitativa e qualitativa, as teses do extraordinário antropólogo Roberto DaMatta sobre quem somos nós e o que é este país. É tarefa árdua compreender o que são a Alemanha e os alemães, a Itália e os italianos, a França e os franceses, a China, o Japão, a Índia? Bem, faça o mesmo em relação ao Brasil e estará diante de um dos maiores desafios intelectuais da história do pensamento humano.

Roberto DaMatta não se intimidou e chegou a inúmeras conclusões. Carlos de Almeida foi a campo tentar comprovar os achados de DaMatta e os comprovou. O resultado da pesquisa se transformou no livro “A Cabeça do Brasileiro” (Record, 2007). No livro, Almeida revela os principais pontos positivos e negativos das visões de mundo da sociedade brasileira.

“O que nós pensamos sobre o jeitinho, se passar à frente na fila é considerado pela maioria jeitinho, favor ou corrupção, se um empregado deve tratar o seu patrão se referindo a ele por senhor ou por você, se os funcionários de um edifício ou condomínio devem utilizar o elevador social ou de serviço, se a masturbação é uma prática sexual aceita ou rejeitada, e ainda se o preconceito de cor ou racial é maior em relação aos negros ou aos pardos”, conta o autor.

Foram utilizados os dados da contagem da população feita pelo IBGE em 1996 e a divisão político-administrativa das cinco regiões, com 26 Estados e o Distrito Federal, 5.507 municípios. Foram sorteados 102 municípios. Do total, 27 foram considerados como estrato certo (auto representativos) e 75 como não auto representativos. Os municípios da primeira categoria são as capitais dos Estados. Para reduzir custos, todos os municípios com até 20 mil habitantes das regiões Norte e Centro-Oeste foram excluídos.

“A pesquisa é monumental. Nunca foi feito algo parecido”, disse na época Roberto DaMatta. Uma geração depois, a pesquisa está sendo feito novamente. A cabeça do brasileiro mudou nesse período. “Os brasileiros parecem agora mais liberais tanto no campo econômico quanto nos costumes. Mas, esta é apenas uma hipótese com que trabalho”, diz Alberto Carlos de Almeida.

 

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