Valor Econômico
Avanços, como as cotas nas federais,
explicam insurgência da direita
O atentado terrorista em Brasília, ainda
que fracassado, deveria conscientizar definitivamente as elites do país -
todas, não apenas as ricas - de que o abismo que separa os brasileiros é
profundo e imperscrutável. Não se trata de uma novidade, e a referência aqui
não se limita à violência (do Estado e de seus oponentes) observada durante as
duas ditaduras ocorridas século passado (1937-1945 e 1964-1985).
O Brasil é um país condenado à desigualdade
porque a formação de seu povo se deu sob o regime escravagista mais longevo da
história dos homens e que, na verdade, nunca acabou, apenas se transformou.
Fator de acumulação de capital durante quase quatro séculos, esse regime era
parte fundamental do modelo econômico adotado aqui, baseado na produção e
exportação de produtos básicos (pau-brasil, cana de açúcar, café, algodão,
fumo, minérios).
O uso de mão de obra indígena (até meados do século XVI) e africana escravizada deu aos produtores vantagem competitiva incomparável. O fim da escravidão, a última a se dar nas Américas, foi fortemente rejeitada pelas oligarquias rurais, de tal modo que resultou, entre outras consequências, na queda da monarquia no ano seguinte, na importação de mão-de-obra de países europeus para “branquear” a força de trabalho e na marginalização de milhões de ex-escravos que viviam no campo e nas cidades.
Principal característica nacional desde
sempre, como constatou o abolicionista Joaquim Nabuco pouco antes da proibição
legal da escravatura, em 13 de maio 1888, o racismo está presente em todas as
relações sociais. A discriminação, por exemplo, contra mulheres, pobres e
nordestinos, mesmo àqueles que, digamos, sejam considerados brancos, espelha o
tratamento dispensado aos africanos escravizados. Estes eram “propriedade” de
produtores rurais e de chefes de família abastados dos centros urbanos.
Em “Haiti”, Gilberto Veloso e Caetano
Veloso tratam do tema: “Quando você for convidado pra subir no adro da Fundação
Casa de Jorge Amado// Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos//
Dando porrada na nuca de malandros pretos e ladrões mulatos // E outros quase
brancos // Tratados como pretos // Só pra mostrar aos outros quase pretos // (E
são quase todos pretos) // E aos quase brancos pobres como pretos // Como é que
pretos, pobres e mulatos // E quase brancos quase pretos de tão pobres são
tratados (...)”.
A escravidão oficial foi abolida no Brasil
de forma bastante gradual - entre 1850, quando o tráfico negreiro foi proibido,
e 1888. O conceito de propriedade esteve presente, porém, por todo o tempo, uma
vez que, quando um escravo ou seu descendente era alforriado em decorrência de
alguma lei, seus “donos” eram compensados financeiramente.
Segundo dados de 2019 da Pnad, do IBGE,
42,7% dos brasileiros se declaram brancos, 46,8% afirmam serem pardos, 9,4%,
pretos, e 1,1%, amarelos ou indígenas. “Esse dado deve ser bem observado pela
maioria dos progressistas e por setores do movimento negro que consideram a
política afirmativa como um instrumento em favor da diversidade. É muito mais
do que isso. É um instrumento em favor da democracia, do funcionamento do
Estado, que favorece o país inteiro. Achar que ela garante a diversidade é considerar
que os negros são uma minoria, como nos Estados Unidos. Mas no Brasil eles são
a maioria”, disse, em elucidativa entrevista, concedida em 2018 a Amanda Rossi,
da BBC Brasil, o historiador Luiz Felipe Alencastro.
Este é um aspecto central para se tentar
entender o que está em jogo na polarização política vivida pelo país. Nas
últimas décadas, a sociedade civil, do lado dos negros e dos mais pobres,
avançou, em termos de direitos e conquistas reais, num ritmo mais veloz que o
observado até então na história do país. A mudança mais notável ocorreu nas
universidades federais, obrigadas por lei a oferecerem 50% das vagas a
estudantes pobres, negros e descendentes de indígenas.
Em 2018, o número de matrículas de pretos e
pardos ultrapassou pela primeira vez a de brancos no conjunto das universidades
federais. É evidente que isso não resolve o problema do racismo e da
discriminação social existente no país, mas promove inclusão, prática que, com
o tempo, ajudará a diminuir as desigualdades. “Juridicamente, a situação estava
definida: os negros não sofrem discriminação legal, mas há mecanismos informais
que os discriminam e desqualificam de forma óbvia”, observou Alencastro na
fascinante entrevista à BBC Brasil.
Negros, principalmente, mas também
mulheres, indígenas, gays, trans, pobres, imigrantes não brancos, sempre
viveram em permanente risco de morte no Brasil, sob a mira de fuzis da polícia
e de criminosos. Estes, onde não há poder público, reinam como ditadores nos
Estados paralelos, onde viver é exceção. Ascensão da extrema-direita, como
nunca se viu antes no Brasil, pode ser a insurgência de minorias brancas contra
a emergência da maioria negra, feminina e pobre.
É como se estivéssemos todos aqui no mesmo
palco, mas sem consciência do papel de cada grupo na sociedade. Não se trata,
aqui, de atribuir o fenômeno social às vitórias eleitorais do PT. O que está
acontecendo vai muito além da política. É inegável que o partido de Lula, dadas
suas ligações históricas com movimentos sociais, seja catalisador do que ocorre
nas ruas. Mas, este é apenas um elemento do que estamos vendo.
Mudanças na sociedade em direção a menos
desigualdade são visíveis e gratificantes para quem jamais acreditou que este
país possa alcançar a civilização em meio a tanto horror e iniquidade: os
direitos e garantias fundamentais da Constituição de 88, o voto do analfabeto,
o Bolsa Família, as cotas raciais e sociais nas universidades públicas, a
estabilização da moeda (sim, o fim da inflação crônica fechou um dos mecanismos
mais perversos de concentração de renda), a união civil entre pessoas do mesmo
sexo etc. A história está apenas começando.
Uma coisa parece certa: morreu a ideia de
que a construção de uma nação no Brasil dar-se-ia pela socialdemocracia, com o
PT e o PSDB fazendo alianças à esquerda e à direita para governar. A direita
extrema e disposta a tudo acordou e subiu ao palco, com força impressionante. O
bolsonarismo é mais novo que o lulismo. Independe, a partir de agora, de Jair
Bolsonaro. Este perdeu a eleição, mas discípulos ascenderam ao poder nos
Estados mais populosos e ricos. Lula começa a governar no domingo contra a
vontade de quase 59 milhões de eleitores.
Ótimo texto! Parabéns ao autor e ao blog que o divulga!
ResponderExcluirDe fato, ótimo texto.
ResponderExcluir"A direita extrema e disposta a tudo acordou e subiu ao palco, com força impressionante. O bolsonarismo é mais novo que o lulismo."
Fui inocente, estúpido mesmo, por não perceber q tinha tanta gente retrógrada no Brasil, algumas tão perto de mim.
Eu também estou pasmo de ver tanta gente preconceituosa e reacionária.
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