Valor Econômico
Gaetani e Lago lançam obra fundamental para
debate da reforma
Um dos temas mais controvertidos do debate
nacional é, sem dúvida, o que diz respeito ao Estado brasileiro. Infelizmente,
sua abordagem limita-se, em geral, à superfície do assunto, àquela que, talvez,
seja a mais fácil de entender - o número de funcionários públicos e os valores
de seus salários, o custo dos serviços públicos para a sociedade, o tamanho da
carga tributária e da dívida pública, a “ineficiência” da máquina estatal etc.
Pouco ou quase nada se fala sobre o Estado que temos (como chegamos até aqui) e
que Estado queremos e podemos ter para cumprir a missão civilizadora inscrita
na chamada Constituição “cidadã”.
A confusão nesse debate é tanta que, dos
dois lados do espectro da discussão, são usados argumentos falsos, equivocados,
imprecisos e/ou mistificadores. Estão errados tanto aqueles que dizem ser o
Estado o maior obstáculo para o desenvolvimento do país quanto os que julgam
desnecessária a sua reforma.
“A crise da democracia e ascensão da extrema direita que temos testemunhado em vários lugares do mundo - entre eles, o Brasil - pode ser explicada por diversos fatores. Há, porém, um fator pouco debatido, ainda que extremamente relevante, que ajuda a explicar o aumento das crises: a perda de legitimidade do Estado, do governo e da administração pública, diz Gabriela Lotta, pesquisadora e professora da FGV em São Paulo, na apresentação de um livro indispensável que será lançado hoje em Brasília - “A construção de um Estado para o século XXI” (Cobogó, 2022).
Os autores deste que promete se transformar
num clássico instantâneo da literatura econômica voltada para estudos sobre o
Estado são dois intelectuais pesos pesados: Francisco Gaetani, doutor em
administração pública pelo Departamento de Governo da LSE (London School of
Economics and Political Science) e especialista em políticas públicas e gestão
governamental pela Escola Nacional de Administração Pública (ENAP), e Miguel
Lago, cientista político, diretor-executivo do Instituto de Estudos para
Políticas de Saúde (IEPS), ONG criada por Arminio Fraga, e professor da School
of International and Public Affairs da Universidade de Columbia e da École d’Affaires
Publiques de Sciences Po, em Paris. Em 2019, Lago foi eleito uma das 100
pessoas mais influentes do mundo em governo digital pela organização britânica
Apolitical. A mesma honraria foi concedida a Gaetani - e à Gabriela Lotta - em
2021, no quesito governo.
O primeiro é a ideia de que “o governo dá
algo em troca” (aos impostos pagos). Deriva desse raciocínio a afirmação de que
a carga tributária é elevada e que, mesmo assim, os serviços públicos prestados
são de péssima qualidade. Gaetano e Lago buscaram comparação com os países da
OCDE e constataram que nossa carga é próxima à da média das quase 40 nações que
integram a organização, incluindo países de renda média como o Brasil - México,
Colômbia, Chile e outros. “Essa visão de que o governo não faz nada é
geralmente comum em quem não usa certos serviços públicos”, dizem os autores.
Um tema abordado com excesso de
desonestidade intelectual é o do “peso” do funcionalismo. Gaetani e Lago
mergulharam nos números. É verdade que o Brasil tem muito funcionário público?
Considerando os três poderes e todos os entes da Federação (União, Estados e
municípios), são 11,5 milhões de funcionários? Isso é muito? “A relação entre o
número de funcionários públicos e a população no Brasil (5,6%) é mais alta que
a média latino-americana (4,4%), mas inferior à dos países da OCDE (9,5%). Não
há, de maneira alguma, excesso de servidores no Brasil. O mito de que
funcionários públicos são excessivos e parasitas nada mais é do que demagogia
barata”, dizem os autores, que num capítulo respondem com firmeza (amparados em
dados e argumentos) ao ministro da Economia, Paulo Guedes, que chamou os
servidores de “parasitas”.
Uma das críticas ao funcionalismo mais
disseminadas é a de que ganham salários muito superiores aos recebidos por
trabalhadores do setor privado. Em parte, isso é verdade, mas a comparação
carece de fundamento. A natureza das funções é simplesmente oposta. É possível
comparar as atribuições de um juiz ou de um procurador do Ministério Público
com as de um de um advogado? Ou de um auditor da Receita com as de um
tributarista a serviço de uma empresa? O que dizer das funções sem similaridade
alguma no mundo privado, como os policiais?
O problema, segundo Gaetani e Lago, está
nas disparidades salariais dentro do serviço público. Segundo o Atlas do Estado
Brasileiro, a diferença dos salários médios por unidade federativa aumentou de
forma significativa ao longo dos anos. “Em 1985, o salário médio na União era
próximo de R$ 4 mil, enquanto no nível estadual seria de cerca de R$ 2,5 mil e
no nível municipal de R$ 1,5 mil. Hoje, essa diferença aumentou a ponto de os
servidores da União receberem o dobro dos servidores estaduais e mais de três
vezes o que recebem os municipais. Em 2019, o salário médio na União era
superior a R$ 10 mil mensais, enquanto nos Estados se aproximava dos R$ 5 mil
e, nos municípios, de cerca de R$ 3 mil.”
O salário médio dos servidores municipais é
próximo ao do salário médio do brasileiro com carteira assinada. Em 2014, o
salário médio do servidor municipal era de R$ 2,7 mil, enquanto o de quem tinha
carteira assinada era de cerca de R$ 1.700. O desnível acentuado está nos
poderes porque, quando a Constituição deu autonomia aos poderes da República, o
Judiciário e o Ministério Público entenderam que passaram a ter licença para
exorbitar. Esta, sim, é uma distorção do Estado brasileiro cuja urgência para
ser corrigida é para ontem.
“Se fizermos uma estratificação por poder,
fica ainda mais claro de onde vêm os salários que puxam a média para cima. Em 2019,
o salário médio do Poder Judiciário era de R$ 12,12 mil, o dobro do salário
médio no Legislativo - de R$ 6 mil - e três vezes o do Poder Executivo - de R$
4 mil. No nível federal, o salário médio do Judiciário era superior a R$ 15
mil, enquanto o salário médio de um servidor municipal do Poder Executivo
(funcionário de prefeitura) era somente de R$ 2,7 mil.
Na parte final do livro, os autores fazem
propostas para a construção de um Estado necessário à modernização do país. O
titular desta coluna evitou fazer “spoiler” do livraço. Pouco foi citado nesta
coluna e, por isso, é necessário fazer um alerta: os autores são bastante
críticos de vários aspectos do status quo do Estado brasileiro e de sua
burocracia.
Ótima sugestão de leitura
ResponderExcluirSim, vamos falar do Estado! Até pra deixar um pouco de lado tanta falação e preocupação como o tal Mercado, o queridinho dos economistas...
ResponderExcluirSeria interessante uma comparação de quanto os países gastam com o social. A Noruega deve dar de 80 a zero no Brasil. E comparar quanto os países cobram em impostos dos bilionários e dos latifundiários (lucros, patrimônio e herança).
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