O Estado de S. Paulo
Líderes autoritários ou até totalitários podem utilizar instrumentos democráticos para imporem formas de governo a serviço de seus próprios desígnios
O título pode surpreender! Há rupturas da
democracia que se fazem segundo instrumentos democráticos, de modo que as
aparências são mantidas, enquanto os pilares de um regime assentado na
liberdade são abalados. Eleições, por exemplo, tanto podem ser um meio de
alicerçar a democracia, como de fragilizála, o que ocorre quando se tornam
ferramentas de políticos autocráticos. Lideranças autoritárias ou, inclusive,
totalitárias podem se utilizar desses instrumentos para imporem formas de
governo a serviço de seus próprios desígnios.
Hitler conquistou o poder democraticamente, fazendo uso de um artigo da Constituição de Weimar que lhe permitia, em determinadas circunstâncias, governar por decretos. O artigo em questão já havia sido utilizado dezenas de vezes por governos anteriores social-democratas, de modo que tinha a aparência de uma mera medida corriqueira. Ato subsequente, passou a perseguir oposicionistas, eliminando fisicamente adversários e, mesmo, amigos, aí incluindo lideranças militares, como o exchanceler Kurt von Schleicher e o comandante das SA, Ernst Röhm. Deu-se ao luxo de convocar eleições que eram meros referendos à sua liderança, proibindo qualquer oposição partidária e fazendo uso intensivo da censura. As massas o aclamaram.
Hugo Chávez, aclamado pela esquerda
latino-americana e brasileira, seguiu o mesmo caminho. Conquista o poder
democraticamente, passando a governar por meio de decretos e referendos que
confirmavam sua liderança. Se o referendo lhe era desfavorável, não o seguia e
logo convocava um outro, até conseguir impor a sua vontade. Deste modo, foi
calando progressivamente os meios de comunicação, até o seu completo silêncio.
O Congresso foi também aparelhado por etapas, até lhe ser totalmente submisso.
Milícias paramilitares vieram a controlar toda a população, com o uso da
violência e o assassinato de manifestantes. O Supremo foi subjugado,
tornando-se um mero avalizador de seus atos. Os militares foram cooptados por
intermédio do uso intensivo da corrupção. A burla foi completa.
O Brasil está saindo de um período em que
as instituições democráticas foram postas à prova, embora o atual presidente e
o seu movimento assegurassem fazer o contrário. E o fizeram, paradoxalmente,
dizendo defender a democracia e as liberdades. Não foram poucas as tentativas
de, progressivamente, criar um ambiente propício a um golpe de Estado, com o
questionamento ostensivo das urnas eletrônicas e do sistema eleitoral. Prova
nenhuma foi apresentada, mas inúmeras vezes disse o presidente que não seguiria
os resultados das eleições se suas pretensões não fossem atendidas. Na verdade,
para ele valia apenas o seguinte: em caso de vitória sua, a democracia
funcionaria; em caso de derrota, a democracia não teria sido seguida. Simples
assim o absurdo de tal colocação.
O resultado das eleições foi-lhe adverso. O
Tribunal Superior Eleitoral (TSE), como é de sua exclusiva competência, atestou
a lisura do processo e validou toda a apuração, dando vitória ao ex-presidente
Lula. Lideranças responsáveis, inclusive de partidos aliados, como o ministro Ciro
Nogueira, que assegurou o gabinete de transição, e o deputado Arthur Lira, que
reconheceu imediatamente o resultado do pleito, seguiram igual rumo. Os
militares, no estrito cumprimento de seu dever, seguem a Constituição,
afastando-se de qualquer tentativa golpista. É apenas de lamentar que generais
do alto comando estejam sendo denegridos por companheiros de farda ao serem
considerados como militares melancias, verdes por fora e vermelhos por dentro.
Seguir a Constituição, para pessoas que assim se tornam indignas, seria uma
atitude de esquerda. Disparate total.
No entanto, o ministro Alexandre de Moraes,
atuando como defensor da Constituição, tem sido considerado como um bode
expiatório. Soube ele compreender, ao contrário de seus críticos, que momentos
excepcionais, em que a democracia está em risco, exigem medidas excepcionais.
Não se pode confundir a aparência de seguir a democracia com sua subversão. Não
caiu neste tipo de armadilha armada por bolsonaristas. No momento em que
decidiu arquivar um pedido fake, golpista, do PL, contestando o resultado das
eleições, não hesitou em lhe impor uma pesada multa por litigância de má-fé.
Não cabia, aqui, nenhum tipo de tergiversação, sob pena de tais investidas se
repetirem com o intuito de impedir a posse do novo presidente eleito ou sua
governabilidade futura. A multa impõe um limite.
Da mesma maneira, não se pode considerar
como democráticas manifestações em frente de quartéis e em rodovias exigindo
uma intervenção militar. É meramente contraditório. Dizem eles: ou há
intervenção ou continuaremos nos manifestando e, em casos mais extremos,
impedindo o direito de ir e vir em ruas e estradas, mediante o uso de
violência. Os seus autores e financiadores devem ser, sim, responsabilizados,
pois democracia não significa liberdade para delinquir. Uma democracia que não
reconhece limites caminha para o seu fim.
*Professor de filosofia na Ufrgs
Fato.
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