sábado, 17 de dezembro de 2022

Eduardo Affonso - O jogo de cassa-palavras

O Globo

A Comissão de Promoção de Igualdade Racial do TSE elegeu uma série de expressões pretensamente racistas

Na série de filmes “Sexta-feira 13”, quando se pensava que o vilão já era — depois de ter sido decapitado, esquartejado, triturado —, ei-lo que ressurgia no episódio seguinte, todo pimpão, como se nada tivesse acontecido. Mais resilientes, só as listas de “palavras e expressões racistas” que você TEM de banir de seu vocabulário, sob pena de ser um monstro escravagista.

Uma a uma, essas cartilhas são refutadas por linguistas, etimólogos, historiadores. Mas, qual Jasons, elas renascem, incólumes e implacáveis, cada vez que uma instituição pública resolve extrapolar sua função e incorporar um Torquemada ou um puritano de Salem. Que, na falta de hereges e bruxas, sai caçando — e cassando — palavras.

O mavórcio da vez é o Tribunal Superior Eleitoral, que até outro dia dizia combater as fake news. A Comissão de Promoção de Igualdade Racial do TSE elegeu uma série de expressões pretensamente racistas indignas de figurar na nossa linguagem. A ideia parece ser repetir uma mentira à exaustão, até que ela comece a soar como verdade.

Para o egrégio Tribunal, qualquer associação de claro/branco/positivo e de escuro/preto/negativo é sintoma de racismo. Pouco importando que nada tenha a ver com cor de pele.

“Esclarecer” foi condenada porque “embute-se nela o racismo a partir do instante em que transmite a ideia de que a compreensão de algo só pode ocorrer sob as bênçãos da claridade, da branquitude, mantendo no campo da dúvida e do desconhecimento as coisas negras”. O olho humano enxergar melhor no claro é tão irrelevante quanto a conexão entre claro/lúcido/límpido e escuro/sombrio/desconhecido existir pelo menos desde o Gênesis.

“Denegrir” (manchar, macular) seria racista porque “faz surgir a ideia de que tornar algo negro é negativo”. Será racismo ter medo do escuro ou chamar de “tarja preta” o medicamento que oferece risco?

Nem os veteranos “criado-mudo” e “fazer nas coxas” escaparam. Já se sabe que não há racismo algum aí, mas... “independentemente da origem da palavra, o simples fato de seu uso ser relacionado com a escravização de pessoas negras é justificativa suficiente para o abandono de seu uso vocabular”. Assim sendo, deveriam repudiar também pelourinho, senzala, quilombo, banzo, diáspora, alforria. E mandar alterar a redação do artigo 149 do Código Penal, que trata do trabalho em “condição análoga à de escravo” (a palavra “escravo” também está proscrita, a ser substituída por “pessoa escravizada”).

O que acontecerá quando se cansarem dos falsos racismos e enveredarem por outras searas, ampliando a jurisdição da Polícia da Moralidade Verbal? Talvez o STF lance um guia antimisógino, proibindo expressões como “no fio do bigode” e “pôr as barbas de molho”. Ou o BNDES rechace o capacitismo de “fazer vista grossa”, “andar às cegas”, “mandar ver”, “dar uma de João sem braço” e “mentira tem perna curta”.

Em seu voto contra o orçamento secreto, a ministra Rosa Weber criticou as “práticas obscuras”. E o próprio TSE, no documento que trata da diplomação de Lula e Alckmin, menciona “esclarecimentos adicionais”.

“Esclarecimentos”? “Obscuras”? Que racismo estrutural é esse, Excelências?

 

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