O Globo
Em breve, voltaremos a tratar de números e
outros aspectos frios da realidade. Hoje, porém, é hora de celebrar o ano que
vem pela frente
“O
sadismo não pode ser considerado uma estratégia política, mas uma perversão
moral” (Procurador Strassera, em “1985”)
Sempre gostei da filosofia de Desmond Tutu,
que sugeria: “Não levante a voz: melhore seu argumento.” Em condições normais,
encaro esta coluna como um espaço de convencimento, em que a batalha se dá em função
da qualidade do raciocínio e não da intensidade do sentimento.
Hoje, porém, irei esquecer tal filosofia.
Deixemos então, por um momento, a razão de lado para deixar o sentimento fluir,
pois chega ao fim uma época sinistra.
Os historiadores do futuro terão dificuldade em entender como fomos vítimas da praga bíblica que se abateu sobre nós nos últimos anos, com seu legado macabro de tragédias e perdas. Nesta época de trevas, em que o simples exercício da compaixão se tornou malvisto por aqueles que fizeram do desprezo um meio de vida, conhecemos o que o ser humano pode revelar de pior.
Em perspectiva, será preciso lamber feridas
profundas e cicatrizar as dores da alma nacional.
Nesse processo, esperanças darão lugar,
provavelmente, a novas decepções. Assim é, desde que o homem existe. “A cada
dia, a sua agonia”, reza o ditado. Deixemos isso para depois. Hoje é dia de
comemoração pelo fim de uma época de pandemia y otras cositas más — comemoração
permitida, de vez em quando, até aos economistas... Se estivéssemos na Itália
em outros tempos, a multidão entoaria nas ruas a música “Bella Ciao” — em
delírio cívico.
Embora a origem da música seja controversa
e muitos a situem no século XIX, foi como hino de resistência ao fascismo que
ela acabou por se popularizar, convertendo-se em uma espécie de emblema da
liberdade, após ser “incorporada” pelos Partigiani da Resistência.
De forma resumida, a música diz: “O bella
ciao, bella ciao, bella ciao ciao ciao/Uma mattina mi son’s svegliato/E ho
trovato l’invasor/O partigiani portami via/Che mi sento di morir/E se muoio da
partigiano/Tu mi deve seppellir/E seppellire lassù in montagna/Sotto l’ombra di
un bel fior.” (O bella ciao, bella ciao, bella ciao ciao ciao/Uma manhã eu
acordei/E encontrei um invasor/Ó resistente me leve embora/Pois sinto que vou
morrer/E se eu eu morrer na Resistência/Você deve me enterrar/E enterrar lá na
montanha/Sob a sombra de uma flor.)
Recuperando a história da música, contada
através das décadas por diversos intérpretes, é possível identificar sua
lógica. Ela descreve o encontro com um “invasor” que tomou conta da casa de
quem relata os fatos e que, movido pelo desespero, cogita a ideia da própria
morte, numa reflexão que se mistura com o ânimo de reagir ao intruso.
Desse ânimo, surgem forças para tentar
enfrentar essa atmosfera de crueldade e medo, sabendo que o último ato da peça
poderá ser a morte do autor do relato, mas num contexto de euforia e de
conclamação à música, vista como um ato de rejeição à brutalidade.
Com um compasso vivace, não é difícil
entender por que a música acabou se transformando em uma espécie de símbolo de
enfrentamento com o arbítrio. Símbolo esse no qual, nos cânticos, a figura
original da chamada dirigida ao ser amado se transforma em uma despedida
irônica à entidade (pessoa, partido ou movimento) que encarna aquilo cuja
partida passa a ser objeto de festa (uma forma de “Tchau, querida”, adaptada ao
gosto do freguês).
Parodiando Galvão, bem se poderia gritar a
plenos pulmões, como na Copa de 1994: “Acabou! Acaboooou!”
Há símbolos que são retratos de época. A
fotografia da menina fugindo do napalm foi uma marca da guerra do Vietnã. A
frase de que “a civilização abandonou o Brasil”, de Yvonne Bezerra, será uma
boa definição dos anos que estamos encerrando nestes tristes trópicos, com sua
sequela de absurdos.
Em breve, voltaremos a tratar de números e outros aspectos frios da realidade. Besteiras fiscais não faltarão. Hoje, porém, é momento de celebração ao ano que vem pela frente, torcendo que a pandemia et caterva fiquem para atrás — e de gritar, a plenos pulmões: BELLA CIAO, CIAO, CIAO!
De novo?
ResponderExcluirJá cantaram pro Fábio Faria, o gigolô da Jequiti, ou o PatFaria, que parece que é quem vai dar guarida ao genocida em Orlando...
Valos lá: BELLA CIAO, CIAO, CIAO!
Tudo passa,dias melhores virão,tomara!
ResponderExcluir