Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
É preciso fortalecer a lógica de
cooperação, uma vez que há bastante heterogeneidade entre os setores
A reconstrução das políticas públicas
desmanchadas pelo governo Bolsonaro vai exigir uma combinação de retomada da
trajetória anterior com a adoção de algumas novas abordagens, resultantes do
aprendizado dos últimos anos. Está-se discutindo muito o nome dos futuros
ministros e obviamente ter boas lideranças é um passo muito importante. Só que
existem dimensões institucionais e de gestão que são inescapáveis para produzir
ações governamentais de qualidade. Apresenta-se aqui um conjunto de cinco
pontos essenciais para que o governo federal possa novamente ter um papel
central na melhoria da vida da população.
No artigo anterior foi destacada a
interligação entre as políticas públicas, em suas três dimensões principais - a
intersetorialidade, a transversalidade e o imbricamento. Neste, o argumento
central diz respeito a fatores que condicionam o sucesso das políticas. Foram
selecionados os cinco mais relevantes, começando pela dimensão burocrática (1),
indo depois para o plano da gestão por resultados (2), tratando a seguir da
questão federativa (3), passando ainda pelo relacionamento com a sociedade (4),
para terminar o texto com a questão dos eixos prioritários (5).
Não é possível produzir boas políticas públicas sem uma burocracia profissional, engajada, bem organizada e responsabilizada por seus atos. O governo federal brasileiro tem um quadro de funcionários altamente qualificado, em geral com salários muito atraentes e com uma quantidade bastante razoável de burocratas que já foram testados em funções de liderança. É um ótimo ponto de partida, mas que foi jogado completamente fora pelo governo Bolsonaro, que preferiu perseguir uma parcela grande daqueles que tinham assumido postos executivos em outros períodos. Além disso, o bolsonarismo é inimigo de especialistas autônomos e preferia contar com quem seguisse cegamente as visões ideológicas dos chefes. Do ponto de vista da burocracia, pode-se dizer que foi o governo do medo - e esse sentimento não produz desempenho satisfatório em nenhuma organização.
É preciso continuar investindo numa
burocracia profissional e qualificada, mas há correções que têm de ser feitas
nesta dimensão. Há um número excessivo de carreiras e muitas delas com um leque
salarial pequeno, devido aos altos rendimentos iniciais, algo que não é só ruim
do ponto de vista fiscal, mas o é principalmente do ponto de vista da motivação
para melhorar ao longo da atuação profissional. Também existem regras que
permitem um corporativismo indevido em importantes carreiras de Estado,
diminuindo sua responsabilização frente à sociedade, como a aposentadoria de
certos nichos burocráticos e os frágeis mecanismos de avaliação de desempenho.
Cabe ainda melhorar a relação com os
políticos, sendo o caminho mais adequado a criação de formas mais transparentes
de seleção dos cargos em comissão ocupados pelos burocratas (como também para
os não burocratas), escolhendo aqueles que tenham mais competências de
liderança.
Uma burocracia de qualidade é condição
necessária, mas não suficiente para ter uma boa administração pública. Os
modelos de gestão baseados em evidências e instrumentos de busca de resultados
são a outra peça. Na maior parte dos setores, o governo Bolsonaro foi marcado
pelo negacionismo científico e pela lógica dos valores, e não do desempenho.
Como consequência disso, as políticas públicas bolsonaristas quase sempre
erraram o alvo. Basta lembrar a quantidade recorde de dinheiro gasto com
transferência de renda sem melhorar significativamente a vida dos mais
vulneráveis.
O caminho inicial de qualquer política
pública bem-sucedida é ter um diagnóstico profundo dos problemas. Com uma
radiografia clara, pode-se então definir um conjunto de metas, sempre em
diálogo com a sociedade e o público-alvo, mas com amparo em evidências
científicas. Só que não adianta ter uma formulação adequada do que deve ser
feito sem criar bons mecanismos de implementação. Os resultados de uma gestão
dependem muito do monitoramento contínuo dos objetivos governamentais e da
capacidade de apoiar e coordenar os atores que executam na ponta as políticas.
A realização de avaliações das políticas
públicas, com diversos tipos de instrumentos, é igualmente central para a boa
gestão pública. Enquanto não se avalia, não se sabe exatamente o efeito de uma
medida governamental ou a qualidade de um serviço público. Mas avaliar só ganha
uma dimensão mais profunda se há um modelo de aprendizado organizacional, capaz
de utilizar os dados para formar e apoiar os burocratas num novo estágio da
política.
Desde a década de 1990, a lógica da gestão
por resultados cresceu no governo federal, como exemplificam casos como o Bolsa
Família ou na concepção do Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica).
Mesmo assim, por muitas vezes não houve um efetivo aprendizado sobre o
funcionamento e o desempenho das políticas. Quando se descobre que um programa
não atingiu os objetivos esperado, o mais difícil, e mais relevante, é entender
qual processo deve ser adotado para mudar o rumo das ações governamentais.
Assim, a gestão pública por resultados deixa de ser um check list do que deu
certo ou errado para se transformar numa forma de conhecer os melhores caminhos
para se ter um desempenho exitoso.
O federalismo constitui uma terceira
dimensão indispensável para reconstruir as políticas públicas destruídas pelo
bolsonarismo. O governo federal tem um papel muito importante em várias áreas
como educação, saúde, meio ambiente, assistência social e políticas urbanas,
não exatamente na sua execução, mas na criação de condições melhores para a
implementação descentralizada. Disso decorre seu papel de criar parâmetros nacionais,
com legislação e indicadores, sua função redistributiva em termos de recursos,
e, ainda, sua atuação de indução, criando incentivos para disseminar certas
práticas e apoiando a criação de capacidades estatais locais.
Um dos maiores erros no modelo de políticas
públicas bolsonaristas foi jogar contra o federalismo cooperativo, que
funcionava razoavelmente bem em alguns setores estratégicos, numa lógica que
combinava coordenação federal, descentralização e fóruns federativos nos quais
os entes podiam discutir e participar da deliberação das políticas públicas. O
modelo bolsonarista de confronto e descoordenação se fez valer em desastres
representados pelo combate à covid-19, bem como na educação remota - e no
planejamento para a volta às aulas presenciais. É fundamental retomar o padrão
intergovernamental mais colaborativo, pois há problemas que só podem ser
resolvidos pela ação conjunta com os governos estaduais e municipais.
A reconstrução das políticas públicas sob o
prisma das políticas públicas vai envolver fortalecer a lógica de cooperação em
todas as políticas principais, uma vez que há bastante heterogeneidade entre os
setores. Além disso, é fundamental que os governos estaduais ganhem maior
proeminência na coordenação das políticas locais, sobretudo se adotarem formas
mais colaborativas de relacionamento com os municípios. Isso permitirá
customizar mais os programas e ações governamentais frente à enorme diversidade
de situações que há no território brasileiro. Fortalecer mais a dinâmica
cooperativa entre os governos estaduais e municipais não significa retirar a
União do circuito. Ao contrário, pode ser uma forma de reforçar o diálogo com
os entes subnacionais sem a presunção de imaginar que as soluções estão em
Brasília.
Nos últimos quatro anos, o governo
Bolsonaro praticamente acabou com as formas institucionalizadas de se
relacionar com a sociedade. O presidente gostava de motociatas e do cercadinho,
mas essa é apenas uma maneira de comandar e cooptar a população. A
redemocratização tinha aberto três modos de atuação conjunta com a sociedade. O
primeiro diz respeito à participação social, desmontada pelo bolsonarismo, e
que precisa ser recuperada, especialmente como forma de acompanhar e discutir
as políticas públicas. Um reparo importante frente ao passado é a necessidade
de incluir mais atores para além do público vinculado à bolha petista. Esse
cuidado tem de ser maior hoje porque o país se tornou socialmente mais plural.
Um segundo modo se refere à parceria com as
comunidades de especialistas das políticas públicas, que precisam ser mais
ouvidas, mesmo que suas ideias não tenham condições objetivas de serem
implementadas no curto prazo ou sejam contrárias à opinião majoritária do
governo. E o terceiro modo é a realização conjunta de políticas com
organizações da sociedade civil e mesmo entes privados. O Estado não pode
executar sozinho todas as tarefas necessárias à resolução dos grandes problemas
coletivos. No entanto, é preciso ter capacidade de regular essa gestão
compartilhada, evitando a captura do Estado por interesses particulares.
Todas essas dimensões devem estar a serviço
da escolha de um eixo estratégico que oriente todo o governo. Um novo modelo de
desenvolvimento para o século XXI, capaz de inovar na produção de riquezas, de
combater todas as formas de desigualdade e levar em conta a sustentabilidade.
Eis aqui o maior desafio do terceiro governo Lula.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
Adorei o artigo.
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