O Globo
Temos condições de superar o ódio e retomar
o debate político, sem lacrar ninguém, apenas uma troca de ideias
Lá se vai um ano. Algumas perdas, mas isso
parece típico da idade. Morreu minha irmã e, da família original, apenas eu
sobrei. Morreu um gato querido, apareceu outro, a gente vai levando.
Foi um ano de eleições e Copa do Mundo.
Conseguimos nos livrar de Bolsonaro. Não entendo bem como tantas pessoas
votaram nele, apesar da performance na pandemia e de sua política de destruição
ambiental. Possivelmente não levam em conta essas variáveis.
A solução foi buscar uma liderança no
passado recente. Entendo esse caminho, julgo-o inevitável. Mas não consigo
entender como tantos veem o futuro no passado.
Vivemos a Copa do Mundo. Perdemos. Para mim, um momento de emoção foi quando um jogador do Marrocos dançou com a mãe, de mãos dadas, na beira do gramado. Foi um lampejo de Chaplin num espetáculo tecnológico de massas, feito para televisões ao longo do mundo.
Não tenho uma explicação para a derrota,
apenas algumas dúvidas. A Copa envolve muito investimento, e todos torcem pela
vitória para garantir a solidez do negócio.
Quando o Brasil decidiu
enfrentar Camarões com
um time de reservas, não se protestou. É quase impossível um time que nunca
jogou junto estrear numa Copa do Mundo e vencer. Perdemos, e todos
subestimaram: afinal, era o time reserva.
Contra a Coreia do Sul,
fizemos 4 x 0 no primeiro tempo e praticamente não jogamos no segundo. É um
problema cultural, para que se esforçar mais? No entanto o segredo da Argentina foi
evoluir de jogo para jogo, sempre.
A guerra na Ucrânia continua, a Covid-19
não foi embora. O que aconteceu na China ao longo desses meses foi terrível. A
política de Covid Zero acabou implantando um grande medo. Medo de ser
confinado, medo de passar dias em dormitórios coletivos, com muita luz,
banheiros químicos, medo dos funcionários com pesadas roupas brancas cujos
olhos eram inescrutáveis. Um autêntico filme de terror com robôs controlando a
cena.
Não foi um ano fácil, e tudo indica que os
próximos também não o serão. Mas a gente vai levando. Escrevi um artigo sobre a
expressão “horizonte de possibilidades”. Li a definição no livro “Sapiens — uma
breve história da humanidade”, de Yuval Harari. É um conjunto de crenças,
práticas e experiências que se apresentam a uma sociedade diante de suas
limitações culturais, políticas e ecológicas.
Isso vale também para pessoas. Nunca se
esgota o horizonte de possibilidades. Mas a expressão “horizonte” é vital. A
falta de horizontes significa naufrágio.
O Brasil tem excelentes condições para
assumir-se como potência ecológica, desenvolver a economia verde e também a
azul, porque as possibilidades do oceano permanecem inexploradas.
Temos condições de superar o ódio e retomar
o debate político, sem lacrar ninguém, apenas uma troca de ideias para
encontrar o caminho.
Temo pelo horizonte de possibilidades das
pessoas que se deixam levar por notícias falsas, que não se preocupam mais em
separar a mentira da verdade.
O que se observa neste momento
pós-eleitoral confirma todas as previsões científicas. Ao abandonar a
preocupação com os fatos, é praticamente inevitável um mergulho no
obscurantismo. Lanternas de celulares ligadas para contatar extraterrestres é
um encontro alarmante da tecnologia com a superstição.
A gente vai levando. Tudo pode melhorar,
ainda que só um pouco. A esperança de uma nova política ambiental está no ar e
pode passar do discurso à prática. Os caminhos da discussão política mais
tranquila também parecem abertos.
Mesmo no universo pessoal, há sempre a chance de crescer, de viver momentos decisivos que podem ser o do jogador do Marrocos dançando com a mãe, ou o de Messi dormindo com a taça da Copa do Mundo. Levamos apenas esses momentos da vida breve, dos anos que, como este, passam céleres. Apesar das perdas, nada nos rouba o horizonte de possibilidades.
Belíssimo texto!!!
ResponderExcluirHorizonte de possibilidades...
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