O Globo
Há milhares de patrulhas digitais,
vasculhando o mundo de ideias e atos, acusando, julgando
A polícia da moralidade no Irã é um dos
temas internacionais mais noticiados no momento. Ficou mais conhecida após a
morte da jovem Mahsa Amini, levada para um centro de reeducação pelos agentes
da ditadura religiosa.
A revolta das mulheres iranianas cresceu e
está sendo punida com pena de morte. Minha filha tem vizinhos iranianos em
Portugal e se interessou pela história desse fascinante país. Sugeri que lesse
o livro de memórias de Azar Nafisi, “O que eu não contei”.
Nafisi foi professora de literatura
ocidental em Teerã e
escreveu também o best-seller “Lendo Lolita em Teerã”. A história dela e de sua
família de intelectuais dá uma boa visão do vigor iraniano sufocado pela
teocracia.
Um dia desses, volto ao tema Irã. Não posso fugir do Brasil. Acabamos de passar por um processo eleitoral em que se falava de uma guerra santa, o presidente gritava “Deus acima de todos”, sua mulher demonizava os adversários. Parecia que caminhávamos para uma teocracia, porque Bolsonaro já avisara que escolheria ministros do Supremo terrivelmente evangélicos.
Isso não aconteceu. Mas o Irã me faz pensar
em pelo menos duas direções. A primeira delas é nacional. Vivemos um período em
que religião e Estado estiveram perigosamente associados.
A simples menção a “Deus acima de todos” já
é complicada na boca de um chefe de Estado. Nem todos têm o mesmo Deus.
Nietzsche dizia que a civilização grega era rica e diversa, que um só deus não
conseguia atendê-la em suas demandas de fé e esperança.
A tentativa de associar religião e política
não dá certo no mundo moderno precisamente por causa da diversidade. Ou se
articula um projeto em termos de interesses convergentes, ou se tenta
desesperadamente enquadrar as vidas pessoais num modelo rígido e anacrônico.
Do susto brasileiro nas eleições, passo a
uma outra dimensão da polícia da moralidade. Ela não existe no Ocidente,
patrocinada por um governo com a ferocidade que se mostra no Irã. Mas, se
analisarmos a internet, constatamos a existência de milhares de patrulhas
digitais, vasculhando o mundo de ideias e atos, acusando, julgando e
penalizando moralmente atos e ações.
Sem dúvida, houve democratização do debate
político. Mas houve também ampliação do disse me disse, do boato e da
maledicência. Sem juízo de valor, observo que, em semana de Copa do Mundo, dois
temas morais invadiram o debate sobre a seleção brasileira. Um deles foi a carne
folheada a ouro comida por alguns jogadores num suntuoso restaurante de Doha. O
outro foi a maneira como um assessor de imprensa da CBF pegou um gato no pelo e
o arremessou no chão. Existem formas mais brandas de tratar um gato. Mas o
interessante, inspirando-me no livro de John Gray sobre a filosofia felina, é
ressaltar como as pessoas discutiam o tema, e o gato estava tranquilo no chão,
complemente indiferente.
Os gatos são felizes porque vivem o momento
e não são preocupados com a ideia da morte — embora percebam o momento final e
achem um lugarzinho para morrer em paz. Tudo isso para dizer que a polícia da
moralidade tem uma forma perversa numa ditadura religiosa, mas, no universo
laico e cibernético, os seres humanos seguem proferindo julgamento sobre os
outros. Talvez seja essa também uma das razões por que os gatos são mais
felizes.
Nietzsche tinha razão sobre os gregos ao
ver sua riqueza numa multidão de indivíduos diferentes. Essa diversidade hoje é
uma realidade mais elástica ainda. Só que o filósofo alemão via nos gregos a
capacidade de criar muitas religiões. Hoje, a riqueza das diferenças se baseia
apenas no desejo de viver a própria vida, longe da polícia moral.
Valeu!
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