De nossa parte, preferimos nos valer da noção de Campo Democrático, essa questão do Centro estando mal colocada muitas vezes. Por quê? Por uma razão: o que estrutura ou deveria estruturar a política é a Democracia, entendida como um dado em si. Precisamos, no século XXI, estender a noção de Frente Ampla, formulada pelo extraordinário líder comunista búlgaro Georgi Dimitrov no combate à barbárie hitlerista, a todas as esferas da vida. Ou seja, aos planos econômico, social, além do político e institucional. Há sensibilidades que se revelam mais democráticas no plano institucional e menos no plano econômico ou social. Há também sensibilidades que se mostram mais democráticas no plano social e econômico e menos no plano institucional.
Contudo uma base democrática comum é um terreno fértil para aproximar essas diferentes sensibilidades. Precisamos juntá -las. O entendimento é fundamental para que uma das sensibilidades faça com que a outra avance. O liberalismo político, enquanto afirmação dos direitos do indivíduo perante o Estado, tem historicamente um papel positivo. A luta pelos direitos sociais ou coletivos também tem. Não faz sentido contrapor uma experiência à outra. Elas se complementam na realidade. Objetivamente, a maioria esmagadora da população é composta de trabalhadores e essa é uma base formidável para o entendimento social e político. Temos de compreender a Democracia como um todo, encará-la como o Humanismo em ação.
Trata-se de uma
exigência dos tempos. Afinal, a Democracia não pertence a uma classe social, ou
sequer a um país determinado e muito menos pode ser monopolizada por uma
tendência política qualquer. Ela é um patrimônio da Humanidade, uma conquista
do processo civilizatório. De “direita”, de “centro” ou de”esquerda”, o que
conta é a Democracia. Mais conservadora ou mais progressista, ela segue uma
Democracia.
É a sua substância que tem que ser realçada.
Isso posto,
alguns dos principais representantes desse Campo Democrático – a saber: Simone
Tebet, Roberto Freire, Santos Cruz, Eduardo Leite e Ciro Gomes, sem aludir a
lideranças ecologistas e intelectuais de peso – ou não integram a nova
administração ou assumem uma posição de pouco destaque no seu interior.
Partidos como PSDB, Cidadania23 não possuem representantes no governo, apesar
de terem estado sempre no Campo Democrático.
O que fazer
nesse caso? O que farão aqueles que não se reconhecem no lulismo nem no
bolsonarismo? Provavelmente, se alinharão ao campo da oposição crítica e
propositiva. Defenderão a Democracia fora do Governo. E isso é muito
importante: convém evitar que esse espaço seja ocupado pela truculência
bolsonarista exclusivamente. Parte significativa das pessoas votou não em Lula
, propriamente, e sim contra Bolsonaro. E parte significativa das pessoas votou
não em Bolsonaro, propriamente, mas contra Lula. Essa consciência é preciso que
se tenha. Ela pode contribuir para a construção de um campo político novo, isto
é,um novo ponto de equilíbrio.
É possível e
desejável realizar uma oposição democrática e progressista ao Governo Lula. O
histórico do lulismo praticamente nos obriga a isso: boicote ao Colégio
Eleitoral em 1984 e à própria Constituição de 1988, rechaço do Plano Real,
desvios nos episódios do mensalão e do petrolão, herança de 14 milhões de
desempregados em 2016 e por aí vamos. Como também é desejável se preparar para
os ataques que os grupos de extrema-direita já perpetram contra as
instituições. Teremos tempos duros pela frente.
Quatro pontos, a meu juízo, devem compor a ordem do dia da oposição progressista. O primeiro deles é a defesa intransigente do Estado Democrático de Direito, da Democracia. É preciso estar sempre atento. Como sublinhamos, a Democracia é um conjunto de práticas sociais. O segundo ponto tem que ver com o mundo do trabalho. As mutações são marcantes, de duas ou três décadas para cá. No cerne da questão, a automação e o trabalho por conta própria. De 2008 em diante, 27 milhões de pessoas aderiram ao MEI, por exemplo. Construir uma política levando em conta essa nova realidade é fundamental, sob pena de se perder o bonde da História.
Os anarquistas foram os intérpretes do mundo do trabalho, em seu período
artesanal. Os comunistas encarnaram as lutas no chão das fábricas, na era da
indústria pesada, quando se configura uma maior separação entre o capital e o
trabalho. É necessário hoje armar uma outra política – o que o Campo
Democrático e Progressista sempre soube estabelecer, diga-se de passagem – a
partir de uma leitura das mudanças que ocorrem nas bases econômicas da
sociedade. O terceiro ponto tem que ver com o combate à destruição do meio
ambiente perpetrado pela reprodução ampliada do capital, que tudo arrasta “para
as águas geladas do cálculo egoísta “. Como viver com ar contaminado, com
alimento estragado, a água podre? Finalmente, debater e propor soluções para a
Cultura, formadora daquilo que somos. Identitarismo apenas não basta. Mais: é
preciso cuidado para que não se substitua o social pelo racial. Resgatar o
Humanismo, o pluralismo, o universalismo e o compromisso com as transformações
sociais eis o núcleo do problema. Democracia, trabalho, meio ambiente e Cultura
têm que andar de mãos dadas.
Para isso,
precisamos recompor uma espécie de contra-elite, ou seja, um grupo
significativo de pessoas preparadas e dispostas a passar um acordo com os
setores populares. Ciência e comprometimento político se preferimos assim. Só
vimos isso, a rigor, nos governos Jango e Itamar. O período JK também
sinalizou, em parte, para isso. Essa contra-elite não pertencia aos comandos
econômicos e apostava nas reformas estruturantes. Nomes? Darcy Ribeiro, Milton
Santos, Nelson Werneck Sodré, Alberto Passos Guimarães, San Tiago Dantas, Caio
Prado Júnior, Luiz Carlos Prestes, Giocondo Dias, Oscar Niemeyer, Celso
Furtado, Roland Corbusier, Modesto da Silveira, Ferreira Gullar, Zuleika
Alembert, Thiago de Mello, Nelson Pereira dos Santos, Guerreiro Ramos, Paul
Singer, Plínio Marcos, Leandro Konder, Edison Carneiro, Nise da Silveira,
Oduvaldo Vianna Filho, Ignácio Rangel, Moniz Bandeira, Plínio de Arruda
Sampaio, Luiz Werneck Vianna e tantos outros. Os movimentos sociais e
trabalhistas têm que recuperar sua autonomia também. Atrelá-los ao Estado, à
maneira de Getúlio Vargas, significa sufocá-los, pura e simplesmente. A
Sociedade Cívil é sempre maior que o Estado.
Ou seja, é
preciso retomar o fio da meada e, ao mesmo tempo, trabalhar as novas questões
impostas pelo rumo da vida. (27 de dezembro de 2022)
*Ivan
Alves Filho, historiador
Muitas verdades! Parabéns ao autor e ao blog que divulga o seu trabalho! Repito um dos tantos pontos importantes: "Parte significativa das pessoas votou não em Lula , propriamente, e sim contra Bolsonaro. E parte significativa das pessoas votou não em Bolsonaro, propriamente, mas contra Lula." São 2 líderes importantes, mas extremamente rejeitados e desgastados!
ResponderExcluirMuito boa a análise do colunista.
ResponderExcluir