Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
A cerimônia de diplomação do presidente e
do vice-presidente da República no TSE foi um rito de passagem e de reencontro
do Brasil ferido com o Brasil civilizado
Na calma própria da civilidade, no último
dia 12 de dezembro tivemos a solene cerimônia de diplomação do presidente e do
vice-presidente da República democraticamente eleitos em outubro para o próximo
mandato presidencial.
Mais uma vez, ganhou sentido a palavra
sensata de José Gregori, que foi ministro da Justiça do governo FHC e
embaixador do Brasil junto ao governo democrático de Portugal. Nos momentos de
temor pelo futuro, em nossas conversas vespertinas na Academia Paulista de
Letras, tem sido ele firme em nos lembrar que as instituições estão
funcionando. A solenidade do dia 12 confirmou essa certeza do homem
experimentado e prudente que ele é.
Não por acaso e muito significativamente, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, o ministro Alexandre de Moraes, foi o mais longamente aplaudido, de pé, pelo público presente. Um reconhecimento justo e necessário pela corajosa defesa do processo eleitoral, dele e de seus antecessores, Edson Fachin e Luís Roberto Barroso, contra os ataques sistemáticos da extrema direita reacionária, oportunista e antidemocrática.
Esses são momentos em que pessoas personificam
a sociedade inteira no que ela tem de melhor e mais significativo, em nome de
todos aqueles identificados com ela. Por isso mesmo, guardiães de seus valores
mais caros e decisivos, o nós que existe em todas as pessoas de bem.
Aliás, não só os que têm CPF e RG. Em
muitos de nossos povos indígenas, o verdadeiro nome tribal e identificador
perfilha o mesmo todo de que fazem parte. Os suruí de Rondônia chamam-se a si
mesmos de Paíter, que quer dizer nós. Várias outras tribos brasileiras têm
autodenominações do mesmo tipo.
O nós está no fundo de nossas raízes e de
nossa identidade nacional. Mesmo quando tentam nos dividir e tentam mutilar a
nossa alma indígena, como vem acontecendo. Esse nós grita dentro do nosso peito
e fala através do voto democrático no despertar da consciência vigilante e
preocupada.
É bom ser quem somos.
Com as diferenças de ideias próprias de uma
Academia de Letras, vivemos, na APL, nestes quatro anos de tormentos e de
incertezas, falando e ouvindo, e não raro silenciando para melhor ouvir, para
ir polindo nosso entendimento dos fatores da tragédia brasileira. E, nela, as
brechas do possível, o do retorno à missão cidadã de ampliar, aperfeiçoar e
assegurar a democracia de que carecemos.
José Renato Nalini, desembargador
aposentado, que a presidiu durante esse tempo, assegurou a pluralidade das
opiniões e dos pareceres, conciliou os opostos, relativizou as incertezas.
Gabriel Chalita, sem alardear, teceu em
fios de seda o encontro, em sua casa, de Lula com Geraldo Alckmin. Desbastou
diferenças, convenceu-os da missão de ambos como qualificados cidadãos para aplainar
o caminho do encontro do nós que nos roubaram no mais vil dos atos de corrupção
política da história brasileira.
É nesse sentido que a sessão do TSE foi um
rito de passagem e de reencontro do Brasil ferido com o Brasil civilizado.
Na Academia, a palavra preocupada de alguns
foi o instrumento da consciência crítica do momento, a dos coadjuvantes de
circunstância, algo que com as movimentações destes dias na constituição do
novo governo deve ter ocorrido em muitos cantos do Brasil.
Como na insurgência profética de pastores
verdadeiramente evangélicos contra o satanismo da intolerância, que nos dois
dias seguintes ao da eleição, articulados pelo pastor Ed René Kivitz, da Igreja
Batista da Água Branca, debateram o tema da conciliação. Satanás penou.
Os que Dom Hélder Câmara chamava de
minorias proféticas ouviram o chamado democrático. Foi para muitíssimos o
momento do exame de consciência para encontrar os fragmentos do destino e
superar o desalento.
Na Academia, Miguel Reale Júnior, que
também foi ministro da Justiça do governo de FHC, várias vezes expôs suas
inquietações em face do cenário de incertezas e de um futuro limitado a opções
entre retrocessos. E nos ajudou ao ponderar sobre a proximidade do abismo.
Todos supunham que a saída estava no centro
e não nos extremos, um centro impossível, porque há muito ocupado e minado
pelos abutres do oportunismo e do fisiologismo.
Chalita tecera em silêncio os fios da
convergência possível e superadora, como autor da obra de arte do retorno à
democracia que começaria a ficar visível naquela cerimônia do TSE.
Enquanto isso, no fim daquela tarde e no
começo da noite, lá fora, os inimigos da pátria assediavam quartéis, queimavam
carros e ônibus, tentavam invadir e minimizar instituições do Estado para
supostamente tolher o destino do país. O governo cúmplice roncava no berço
esplêndido de sua renúncia tácita.
Os cães ladravam e a democracia passava.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia A Semana de Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022).
O centro sozinho nada pode. Contra o fascismo se faz aliança até com o inimigo. No século XX as potências capitalistas se aliaram à URSS para combater o nazismo.
ResponderExcluirMuito bom e lúcido o artigo.
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