Correio Braziliense
Lula criou mais confusão no mercado, porque
falou que colocaria os pobres no orçamento e os ricos no imposto de renda. É
uma síntese do que vem dizendo aos colaboradores mais próximos
“Ele se aniquilou…” e “todas as vezes que
fizestes ao mais pequenino dos meus irmãos, a mim o fizestes” são dois textos
bíblicos, respectivamente, Filipenses 2, 7 e Mateus 25, 40, muito citados pelos
teólogos da “Teoria da libertação”, para os quais a divindade de Jesus se
manifesta na sua radical humanidade. O encontro com o Senhor presente no pobre
seria a gênese de uma nova práxis religiosa e política. Nas décadas de 1960 e
1970, essa nova doutrina social da Igreja Católica, resultante de uma
interpretação do Concilio Vaticano II, principalmente na América Latina,
resultou na formação das comunidades eclesiais de base, principalmente nas
zonas rurais, e no crescente envolvimento dos padres com movimentos populares e
de esquerda, inclusive armados, até o Vaticano puxar o freio de mão, sob
comando do papa João Paulo 2º e, principalmente, Bento 16.
Ontem, o presidente eleito Luiz Inácio Lula
da Silva (PT), no “Natal dos Catadores”, organizado pela Associação Nacional
dos Catadores em São Paulo, do qual participa há 19 anos, prometeu ao padre
Júlio Lancellotti, coordenador da Pastoral do Povo da Rua de São Paulo, que irá
se encontrar com os moradores em situação de rua na capital paulista assim que
tomar posse na Presidência. “Faltando 15 dias para assumir a Presidência, é um
compromisso meu que vamos dar uma vida decente para o morador de rua”, afirmou.
“Agora, estão colocando paralelepípedos embaixo da ponte, criando obstáculos embaixo da ponte, colocando coisa de ferro para não ter espaço para vocês dormirem. Não é que eles não cuidam. É que eles não querem nem que vocês tenham direito de deitar embaixo da ponte. Não tem nenhum significado, nenhum sentido humanista, não tem nenhum sentido de paixão, de amor, não tem nenhum sentido de compreensão só porque vocês vivem nesse país”, discursou. Era uma resposta ao veto de Bolsonaro à lei do Congresso que proíbe esse tipo de prática.
O discurso de Lula criou mais confusão no
mercado, porque nele também falou que colocaria os pobres no orçamento e os
ricos no imposto de renda. É uma síntese do que vem dizendo aos colaboradores
mais próximos, mas provoca urticária no mercado financeiro. O petista deve sua
eleição aos pobres e às mulheres. Avalia que a prioridade do governo deve ser
garantir esse apoio; depois, resolver o problema fiscal. Ou seja, Lula vai
contrariar a elite política e econômica do país. É mais ou menos a mesma postura
do presidente Getúlio Vargas na década de 1950, quando voltou ao poder nos
braços do povo. Como se sabe, em agosto de 1954, o então presidente da
República preferiu o suicídio à renúncia, deixando uma carta testamento que
viria a nortear o movimento sindical e a esquerda brasileira até o golpe
militar de 1964.
Narrativa moral
Mas o discurso de Lula para os catadores de
lixo, ao lado do padre Júlio Lancelotti, tem outro significado. Pode ser a
chave para voltar a disputar a liderança moral da sociedade, perdida nos
escândalos do governo petista, com uma narrativa humanista impregnada de
religiosidade católica, que perdoa e promove a caridade. Não será um movimento
fortuito e isolado. A Igreja Católica perdeu terreno nas periferias e favelas
das cidades brasileiras para os pentecostais e não tem a menor chance de
recuperá-lo, a não ser defendendo os preceitos do papa João 23 (1958-1963), que
provocou uma revolução na Igreja ao convocar o chamado Concílio Vaticano II
(1962-1965). A palavra de ordem do papa octogenário, para surpresa geral, era
“aggiornamento”, ou seja, a atualização da Igreja, o que hoje deveria ser feito
pelo PT e seus aliados históricos, em aliança tácita com o clero católico. O
Papa Francisco pode dar uma força.
Fernando Meirelles, no filme “Dois Papas”,
reproduz o diálogo entre o papa Bento 16 (Anthony Hopkins) e o então cardeal
Jorge Mario Bergoglio (interpretado por Jonathan Pryce) em 2012, num encontro
em Roma:
— Acha que a Igreja está falhando? —
pergunta Bento 16.
— Estamos perdendo fiéis — responde
Bergoglio preocupado.
(…)
E continuou: — Parece que sua Igreja…
— Minha Igreja!? — retrucou Bento 16.
— Nossa Igreja… está indo por um caminho
com o qual não consigo compactuar. Ou não está indo para lugar algum… num
momento que pede mudanças. Parece que não fazemos parte desse mundo, não
pertencemos a ele, não estamos conectados — insistiu Bergoglio.
Irritado, Bento 16 encerrou a conversa logo
a seguir.
Como diria o compositor Antônio Carlos
Jobim, o Brasil não é para principiantes. Ontem, enquanto Lula conversava com
os catadores, o tempo fechou em Brasília. Nos dois sentidos: choveu e o
Congresso mostrou que não é apenas Bolsonaro que não digeriu a vitória de Lula.
Enquanto empacava no Senado a mudança na Lei das Estatais, que permitiria aos
dirigentes petistas ocuparem cargos nas estatais — principalmente Aloizio
Mercadante na presidência do BNDES —, a aprovação da PEC da Transição, que
garante o Bolsa Família de R$ 600, era adiada para a próxima semana.
Enquanto a igreja católica fazia a opção pelos pobres,os pobres fizeram a opção pelas igrejas evangélicas.
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