Celebração grosseira do ‘politicamente incorreto’ contaminou parte das elites e se espalhou pela sociedade
Em Washington, mal começado o governo e já
na primeira viagem internacional, o presidente Jair Bolsonaro (PL) cunhou a
epígrafe definitiva da obra a que se dedicaria com afinco nos anos seguintes.
Conservadores de variado coturno – ou melhor, reacionários do calibre de Olavo
de Carvalho e Steve Bannon – ouviram-no proclamar o sentido da “missão divina”
que se autoatribuía e que consistia em “desconstruir” e “desfazer” regras e
valores, hábitos e instituições, antes de começar a pôr de pé a parte
supostamente positiva da sua agenda.
Livramo-nos há pouco da promessa
bolsonarista da “construção” a ser cumprida em mais um mandato, mas é forçoso
admitir que só quatro anos bastaram para legar um cenário de terra devastada.
Em outras palavras, a metade inicial do projeto está realizada. A celebração
grosseira do “politicamente incorreto” contaminou parte das elites e
infiltrou-se por toda a sociedade, criando um reacionarismo de massas agressivo
e destruidor.
Juristas defenderam uma leitura golpista da Constituição – em particular, do artigo 142, simultaneamente curto e prolixo, que na aparência dá voz a quem numa democracia deve ser o “grande mudo”. Médicos militaram, e talvez militem ainda, no movimento antivacina, deixando um traço lastimável de retrocesso civilizatório. E a violência política tornou-se um recurso, quando não legítimo, ao menos aceitável para setores da sociedade contaminados pelo culto às armas e pela tentação de eliminar fisicamente o inimigo interno – se preciso for.
Na verdade, a contrarrevolução política e
cultural a que fomos submetidos desde 2019 – e a que, em certa medida,
assistimos “bestializados” – teve mais de uma vertente. Desde logo, vimo-nos
arrastados pela grande crise das democracias contemporâneas, que está longe de
ter se esgotado e parece renovar-se em cada eleição e em cada momento.
Uma crise estrutural, certamente, com
aspectos até bizarros. Não é comum que alguém como Viktor Orban, autocrata de
um país distante e pequeno (ainda que culturalmente muito relevante), torne-se
uma espécie de ídolo global dos “revolucionários” da extrema-direita, inclusive
no país-chave do Ocidente, os Estados Unidos. Mais do que ídolo, um modelo para
o programa de corrosão das democracias aplicado em várias realidades nacionais.
Pois a Viktor Orban fomos também apresentados na posse mesma do presidente
Bolsonaro, sinalizando uma aliança e uma afinidade que até então inocentemente
ignorávamos.
Há também uma dimensão propriamente interna
– ou, mais do que isto, um emaranhado de contradições que são coisas nossas e
nos levaram à beira do precipício. A exasperação do conflito político,
especialmente a partir de 2013, teve efeitos desastrosos, cuja enumeração
exaustiva não cabe aqui.
Mencionemos só um exemplo. Não soubemos
lidar nada bem com o instituto do impeachment. Todos os governos não
petistas, sem exceção, foram alvo de insistentes pedidos de impedimento por
parte do PT ou de figuras próximas. E, no entanto, o impeachment de
Dilma Rousseff, num contexto de recessão brutal e perda de apoio parlamentar,
teve como contrapartida a acusação inapelável de “golpe”, como se 2016 tivesse
sido o marco zero da ruptura institucional – o que, a bem da verdade, não
tivemos em momento algum, sequer em 2018 e menos ainda, obviamente, em 2022.
Aliás, com seus sinais de nova esperança, a data mais recente reuniu numa só
trincheira todos os personagens de vocação democrática, inclusive os que antes
se contrapuseram duramente.
Coisa bem diferente é postular que o
segundo mandato do aspirante a autocrata teria aprofundado a ação da toupeira
ou, para usar termo militar, o trabalho de sapa contra as instituições
consagradas na Constituição. Uma democracia fortemente tutelada e uma sociedade
conflagrada poderiam, em conjunto, somar a repressão “tradicional” dos
aparelhos de Estado e a violência nascida das entranhas do corpo social,
violando todas as dimensões da liberdade duramente conquistadas após a
ditadura. E assim terminariam por se desenhar as linhas de um pós-fascismo, ou
de um fascismo do século XXI, encerrando tragicamente, com um grau maior ou
menor de coerção, o mais longo período de vida democrática que tivemos sob a
República.
Há quem diga que construções intelectuais
dizem pouco, quase nada, sobre as lutas cruas pelo poder a que se entregam de
corpo e alma as forças políticas e que são sua razão única de ser. Afinal, o
cinismo autoriza a dizer que programas convincentes sempre podem ser
encomendados na primeira esquina e nunca falta gente para fornecer discursos
altissonantes.
A vantagem de conjunturas críticas, como
esta que ainda não deixamos para trás, é que evidenciam a conexão mais íntima
entre ideias e atitudes, ideólogos e políticos – mesmo que uns sejam farsantes
e os outros toscos. Uma conexão que funciona para o bem e, como acabamos de
ver, vezes sem conta para o mal, o que talvez seja uma das advertências mais
poderosas sobre as possibilidades de degradação social e política sempre
latentes em qualquer circunstância.
*Política Democrática online (49ª edição: novembro/2022)
Tanta conversa fiada pra defender um bandido preso há mais de 20 anos por corrupção, que devastou a nossa economia e acabou com o sonho do brasileiro , vocês são hipócritas , todos cúmplices dessa grande Trama Internacional mas vão perder no final
ResponderExcluirQue comentário mais entusiasmante; que capacidade de elaboração !
ExcluirTexto preciso e precioso! Parabéns ao colunista e ao blog que divulga seu trabalho! A conversa fiada e mentiroso fica por conta do anônimo acima, que vive no seu mundo particular provavelmente na frente dalgum quartel...
ResponderExcluirGostaria de fazer algumas objeções às colocações de nosso querido Luiz Sérgio. Pra mim o que vitimou Dilma foi um sofisticado golpe parlamentar, jurídico, midiático, militar e popular (classe média na rua como sempre no papel de inocente útil). Dilma fica devendo à sociedade nem que seja um livrinho de bolso contando essa história. Luiz Sérgio ao reconhecer que Viktor Orban foi uma novidade para nosotros de la izquierda. Fica claro que Trump, o boçal e Orban são três marionetes manipulados por sofisticados prestidigitadores do grande capital internacional. E utilizando as palavras do companheiro o que "reuniu os democratas numa só trincheira" foi justamente o neofascismo bundalelê do boçal. Felizmente os democratas no Brasil compraram a estratégia dos comunistas do século XX contra o nazifascismo e viabilizaram a "frente ampla" que se fez necessária para encaçapar o boçal. O futuro do Brasil será uma disputa entre os democratas lutando por uma democracia cada vez mais democrática que interessa ao povo brasileiro. E a direita dividida entre os nazilatifundiários e uma direita moderna que depois de ter explorado o trabalho escravo dos africanos no século XIX, do proletariado no século XX agora no século XXI resta o fascismo bundalelê e tchan tchan tchan tchan a ultérrima fase de desenvolvimento do capitalismo: o metacapitalismo. Kkkkk
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