segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

Lygia Maria - Congresso do absurdo

Folha de S. Paulo

Projeto de lei que abre brecha para punir cidadão que interpela políticos é contrassenso em um regime democrático

Leis sem sentido já viraram uma tradição nacional. Algumas são até cômicas. O problema é quando o aspecto nonsense leva ao autoritarismo, como o projeto de lei 2.864, do senador Randolfe Rodrigues (Rede), que inventa o crime de "assédio ideológico".

Para o autor da proposta, "assediar alguém publicamente, de forma violenta ou humilhante, premido por inconformismo político, partidário ou ideológico" deve ser punido com prisão de um a quatro anos mais multa.

Além disso, a pena aumenta em até dois terços se o crime for cometido contra "agente público em razão do exercício de suas funções".

Ou seja, pode vir a ser crime criticar diretamente um político. Afinal, uma crítica pode ser violenta e humilhante, como diz o texto. Qual o critério? A linguagem é subjetiva e generalista e, aí, mora o perigo. O termo "publicamente" também é vago: redes sociais são espaços públicos?

O senador fez a proposta logo após ataques sofridos por Gilberto Gil no Qatar. O músico foi abordado por bolsonaristas que o xingaram enquanto filmavam com o celular. O ato gerou indignação, com razão, mas a legislação já conta com leis sobre assédio e injúria.

O curioso é que ninguém ficou indignado quando Regina Duarte foi hostilizada por uma turba na entrada de um espetáculo teatral. A atriz não conseguiu assistir à peça, teve de deixar o recinto. Logo, para a militância, funciona assim: "Quando não gosto da pessoa, pode assediar".

Fica claro, portanto, o oportunismo do senador e dos apoiadores. Não se trata de combater uma injustiça, mas de sinalizar virtude. Mesmo que, para isso, se coloque em risco a liberdade de expressão num de seus aspectos mais caros à democracia: a crítica, mesmo que agressiva, aos detentores do poder.

Trata-se de políticos criando leis — o senador Renan Calheiros (MDB) é autor de outra com o mesmo teor— para se blindarem contra críticas, e ainda são aplaudidos. Poderia ser uma peça de Alfred Jarry, o pioneiro do Teatro do Absurdo, mas é o Brasil.

 

Um comentário: