Folha de S. Paulo
Projeto de lei que abre brecha para punir
cidadão que interpela políticos é contrassenso em um regime democrático
Leis sem sentido já viraram uma tradição
nacional. Algumas são até cômicas. O problema é quando o aspecto nonsense leva
ao autoritarismo, como o projeto de lei 2.864, do senador Randolfe Rodrigues
(Rede), que inventa o crime de "assédio
ideológico".
Para o autor da proposta, "assediar
alguém publicamente, de forma violenta ou humilhante, premido por inconformismo
político, partidário ou ideológico" deve ser punido com prisão de um a
quatro anos mais multa.
Além disso, a pena aumenta em até dois terços se o crime for cometido contra "agente público em razão do exercício de suas funções".
Ou seja, pode vir a ser crime criticar diretamente
um político. Afinal, uma crítica pode ser violenta e humilhante, como diz o
texto. Qual o critério? A linguagem é subjetiva e generalista e, aí, mora o
perigo. O termo "publicamente" também é vago: redes sociais são
espaços públicos?
O senador fez a proposta logo após ataques
sofridos por Gilberto Gil no Qatar. O músico foi abordado por
bolsonaristas que o xingaram enquanto filmavam com o celular. O ato gerou
indignação, com razão, mas a legislação já conta com leis sobre assédio e
injúria.
O curioso é que ninguém ficou indignado
quando Regina Duarte
foi hostilizada por uma turba na entrada de um espetáculo
teatral. A atriz não conseguiu assistir à peça, teve de deixar o recinto. Logo,
para a militância, funciona assim: "Quando não gosto da pessoa, pode
assediar".
Fica claro, portanto, o oportunismo do
senador e dos apoiadores. Não se trata de combater uma injustiça, mas de
sinalizar virtude. Mesmo que, para isso, se coloque em risco a liberdade de
expressão num de seus aspectos mais caros à democracia: a crítica, mesmo que
agressiva, aos detentores do poder.
Trata-se de políticos criando leis — o
senador Renan Calheiros (MDB) é autor de outra com o mesmo teor— para se
blindarem contra críticas, e ainda são aplaudidos. Poderia ser uma peça de
Alfred Jarry, o pioneiro do Teatro do Absurdo, mas é o Brasil.
Um comentário:
Reinaldo Azevedo já disse que precisa dessa lei no Brasil.
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