O Globo
Bolsonaristas do meio-fio brigam para que
seu mundo não tenha mudanças
Desde 30 de outubro, em algo assemelhado a
uma comédia familiar, alguns amigos perderam tias e primos para a porta dos
quartéis. Trocaram a macarronada dos domingos por uma sopa rala e banheiro
químico. Com o fechamento dos bingos, descobriram ali nova forma de estar entre
os iguais.
O cérebro humano continua a ser um dos grandes mistérios do planeta. Por sua capacidade de criar invenções e por sua incapacidade de aprender com os erros. As vivandeiras do pós-goiabeira são netas, sobrinhas-netas ou agregadas dos militantes da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, afamada bucha de canhão, ou massa de manobra, basta escolher, que clamaram pelo golpe militar levado a cabo em 1964. Foram 21 anos de perseguições políticas, assassinatos, falta de liberdade, carestia brutal e inflação descontrolada.
Não aprenderam nada. Lá estão novamente as
cunhadas e irmãs, como ventríloquos, na porta dos quartéis; alguns brandem um
tal perigo comunista; outros escandem um fundamentalismo religioso próximo à
Inquisição, loucos, se autorizados, para queimar imaginárias deidades. Desculpe
a incorreção: ao atirar contra os policiais federais, eles já as nomearam como
suas bruxas.
A falta de lazer e de áreas públicas para o
convívio social, como parques e praças com bancos, ao mostrar que os shoppings
já não cumprem mais essa função, resultou por certo no adensamento de genros e
enteados na calçada das corporações. Ao contrário do que é vendido pelos
pastores tuiteiros, é mais uma questão urbano-afetiva que de caráter
ideológico. Basta observar a bonança vinda com a multiplicação das sopas,
oferecida por Michelle Bolsonaro aos militantes intelectualmente desnutridos na
porta do Palácio da Alvorada. Estando o quase ex-presidente anda deprimido e
inapetente, possivelmente distribuiu o excesso da despensa. Pimba! Soa uma ação
prática às mulheres companheiras dos maridos: por que deixar a comida estragar?
Não chega a ser brioche, mas é o que havia para o jantar.
Desconcertados diante da prosódia do líder,
bolsonaristas do meio-fio — favor não confundir com o populacho das barricadas
das estradas, que nem sequer ganhou banheiro químico dos militares —, brigam
para que seu mundo não tenha mudanças. O slogan “Deus, Pátria, Família”
significa no fundo “Sofá, Miami (em seis vezes) e lasanha (gratinada)”. Em
terreno assim, não se admitem novas ideias ou mesmo mudar de lugar o controle
remoto.
O mundo tem andado muito rápido. Faça as
contas: agora as domésticas têm filhos na universidade, também voavam para a
Disney; mulheres pretas são nomeadas ministras; político de projeção se assume
gay; pior, o Papa tolera as pautas de esquerda. E Valdemar
Costa Neto está na oposição. Tem de gritar na porta de quartel.
Sair da fila do orelhão para mensagem de
texto no aplicativo, em menos de duas décadas, abala os dogmas. A cada
temporada, novas descobertas desmantelam as escrituras vindas há séculos do
deserto distante. Imagine uma delas: computadores que leem nossos pensamentos
e, assim, obedecem a comandos diversos como jogar videogames ou auxiliam
pessoas a mexer o braço robótico.
Na busca aflita por um um banheiro químico,
o pessoal esquece que, na abertura da Copa de 2014, um homem paraplégico, pela
ação de comandos mentais levados a seu exoesqueleto, deu o pontapé na bola no
início da partida. Não foi um milagre, mas obra do cientista brasileiro Miguel
Nicolelis. Aleluia.
De novo, o jogo. Os voyeurs de guarita
encontram ecos na velha esquerda. Algo como uma irmandade no atraso, atávicos
em seu ludismo. Não entregam a modernidade porque têm credos arcaicos, haja
vista a justificativa da bancada do PT para querer um dos seus no cargo de
ministro da Educação. Refutam um ícone da área, alguém reconhecido
internacionalmente, como a educadora Izolda Cela, sob o argumento de o posto
ter de ser ocupado por um político. Chamemos a isso convicção do pobrismo
petista. Natural incentivar uma fábrica de bife e não brigar por usinas
industriais de chips ou microprocessadores. O subdesenvolvimento da direita e
da esquerda é uma opção e uma estratégia.
Triste, repete-se a história. Na virada do
século retrasado para o passado, os empresários e as autoridades, mergulhados
no pensamento de branqueamento da população, buscaram trabalhadores europeus
para tocar as fazendas de café e, principalmente, as fábricas que inauguravam a
industrialização brasileira.
Em lugar de capacitar a imensa população de
ex-escravizados, que rodavam as periferias da cidade em busca de colocação,
fizeram duas apostas. A primeira, pelo branqueamento, com a chegada de milhares
de imigrantes brancos (e poucos asiáticos). A segunda, contra a educação, ao
não montar um programa de qualificação profissional.
Na época, os petistas da Gleisi venceram os defensores da integração social e da capacitação da mão de obra. Mais de cem anos depois, diante da Revolução Digital, o Brasil corre o risco de novamente apostar errado.
Tudo como dantes no quartel de Abrantes.
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