Risco para novo governo é repetir erros do passado
O Globo
Para lidar com a herança de Bolsonaro, não
bastará dar mais recursos a programas esvaziados
Antes de anunciar mais
16 nomes para seu ministério, o presidente eleito, Luiz
Inácio Lula da
Silva, divulgou ontem o relatório final do gabinete de transição, sob a
coordenação do vice-presidente eleito, Geraldo
Alckmin. O documento foi apresentado como um diagnóstico da “herança
maldita” que o novo governo receberá da gestão Jair
Bolsonaro e um primeiro esboço das medidas que tomará.
Deve-se reconhecer que, para uma chapa
eleita com base num programa de governo repleto de ideias ultrapassadas e
propostas descabidas, o documento foi um avanço. Pelo menos está apoiado em
fatos (e isso, registre-se, não é pouco nos tempos que vivemos). A primeira
parte desfia uma ladainha, ministério a ministério, constatando cortes em
verbas e programas, cujos efeitos são considerados deletérios.
É verdade que diversos indicadores são alarmantes. O acompanhamento da vacinação infantil caiu de 68% para 45% na gestão Bolsonaro. No Cadastro Único para Programas Sociais, apenas 60% dos dados estão atualizados, e quase 35% dos 40 milhões de famílias têm apenas um integrante. Os empréstimos consignados a beneficiários de programas sociais concedidos às vésperas da eleição somam R$ 9,5 bilhões. O tempo médio para concessão do Benefício de Prestação Continuada (BPC) subiu de 78 para 311 dias, e há 580 mil na fila de espera.
O Brasil voltou ao Mapa da Fome das Nações Unidas,
e mais 5,8 milhões passaram a viver em condição de extrema pobreza, levando o
total a quase 18 milhões (8,4% da população). O país também bateu recorde de
feminicídios, há 14 mil obras paradas, e 93% das rodovias federais não têm
contrato de manutenção. Nos órgãos ambientais, 2.103 cargos estão vagos. No
Ibama só 700 atuam na fiscalização (nem todos em campo), quando já foram 1.800.
Não é acaso que, no governo Bolsonaro, o desmatamento da Amazônia tenha
aumentado 60%, e as taxas tenham alcançado o pico dos últimos 15 anos.
O documento traz propostas sensatas, como o
“revogaço” de decretos e portarias de Bolsonaro sobre armas ou meio ambiente.
Também propõe a revisão de sigilos de cem anos impostos a informações que
deveriam ser públicas e a reavaliação do modelo de escolas cívico-militares.
Existe mesmo uma herança nefasta da gestão atual com que o novo governo terá de
lidar.
Mas o documento dá a entender que a forma
de fazer isso é recompor gastos e reativar programas do passado. A realidade é
sempre mais desafiadora, e é um erro recorrente na política brasileira
acreditar que apenas destinar mais recursos a determinada área contribuirá para
melhorar sua gestão. Não necessariamente. Muitas vezes ocorre o contrário, como
demonstra a deterioração dos indicadores de pobreza, apesar de o país gastar
hoje muito mais dinheiro em transferência de renda.
Outro equívoco é a proposta de congelamento
de privatizações em estágio avançado de estudo, como a dos Correios. O maior
risco que assombra a nova gestão é repetir os erros do PT no
passado. É absurdo dar dinheiro a programas sem sentido que agradam a públicos
restritos, em vez de zelar pela eficácia de políticas públicas universais em
áreas como saúde e educação. Em seu discurso, Lula disse que “muitas vezes a
gente erra porque não enxerga e ninguém avisa”. Pediu cobrança. Cobrança sem
dúvida haverá, mas ele precisará manter olhos e ouvidos abertos.
Resistência ucraniana é símbolo de sucessão
de vitórias da democracia
O Globo
Recepção calorosa a Zelensky nos EUA coroa
ano em que extremistas e autocratas sofreram reveses
O ucraniano Volodymyr
Zelensky chegou à Casa Branca vestindo o
traje informal que o tornou conhecido no mundo. Recebeu
acolhida calorosa do americano Joe Biden.
Em discurso no Congresso, Zelensky foi enfático ao descrever a guerra na
Ucrânia como uma luta contra forças autoritárias: “Venceremos porque estamos
unidos — Ucrânia, Estados Unidos e todo o mundo livre”. Biden concordou: “Se
ficarmos parados diante de ataques tão flagrantes à liberdade e à democracia
(…), o mundo enfrentará consequências piores”.
Zelensky obteve a garantia de receber o
mais moderno sistema de defesa antiaéreo americano. O objetivo imediato dos
russos é danificar o aquecimento ucraniano para tornar o inverno insuportável.
Depois de vários reveses, Vladimir
Putin prepara nova ofensiva, esperada para a primavera. Seria
ingênuo imaginar que o enfraquecimento de Putin trará fim à guerra ou a seu
governo. Mas a resistência ucraniana se soma a outros embates em que a
democracia tem levado a melhor sobre extremistas ou autocratas no planeta.
Lá mesmo nos Estados Unidos, as eleições de
meio de mandato que o ex-presidente Donald Trump queria
usar de trampolim para voltar à Casa Branca lhe trouxeram uma sucessão de
derrotas. Na Alemanha, golpistas de extrema direita fracassaram numa
conspiração que tentava tomar o poder. Na Itália, apesar da vitória da líder
neofascista Giorgia
Meloni, o governo de coalizão teve de se submeter à União Europeia,
de que depende financeiramente. Na França, o presidente Emmanuel
Macron derrotou Marine Le Pen, candidata da extrema direita que
conquistou mais votos apenas porque abrandou o discurso, deixando de lado a
xenofobia para priorizar temas econômicos como a inflação.
Na América Latina, o populismo autoritário
resiste nas ditaduras de Venezuela, Nicarágua e Cuba. Mas o Peru acaba de
debelar uma tentativa de golpe do presidente Pedro
Castillo. E o Brasil derrotou as pretensões autoritárias do
presidente Jair
Bolsonaro elegendo seu maior rival, sustentado por uma ampla
aliança em defesa da democracia.
Mesmo na China de Xi Jinping,
onde a ditadura do Partido Comunista mantém popularidade à custa do crescimento
econômico, surgiram fissuras no regime com os protestos contra a política de
Covid Zero. No Irã, a teocracia enfrenta uma rebelião popular depois que a
“polícia da moralidade” matou uma jovem que não trajava o véu conforme as
normas draconianas dos aiatolás.
É verdade que apenas 20% da população do planeta vive em regimes tidos como “livres” pela Freedom House, e apenas 13% nos 34 países considerados “democracias liberais” pelo instituto sueco V-Dem (eram 42 há dez anos). Mas a recessão democrática, na definição feliz cunhada pelo cientista político Larry Diamond, começa enfim a dar sinais de recuar. O próprio Diamond resumiu bem a situação em declaração à revista Foreign Policy: “A febre cedeu, mas o vírus ainda está no corpo”.
Retomada em risco
Folha de S. Paulo
Visão ultrapassada e corporativismo minam a
confiança antes da posse de Lula
Há —ou havia— uma oportunidade diante do
novo governo. Em contraste com o atraso civilizatório generalizado da gestão
que se encerra no fim deste ano, o cenário econômico transformou-se para
melhor.
O crescimento mostrou ritmo além do
esperado, com o PIB avançando acima dos 3%, e o emprego teve retomada vigorosa.
A inflação deixou o patamar de dois dígitos e se encontra em trajetória de
queda mais adiantada que a de países ricos. A dívida pública voltou ao patamar
pré-pandemia.
É verdade que existia a necessidade de
recompor os recursos do Orçamento para o amparo às famílias carentes. Também é
fato que os preços ainda inspiram cuidados, os juros estão muito elevados e a
atividade se encontra
em desaceleração.
Justamente por isso, a estratégia correta
seria uma intervenção prudente na despesa pública, limitada ao suficiente para
assegurar a assistência social. A responsabilidade fiscal facilitaria a queda
da inflação e dos juros, e a economia poderia recobrar o crescimento
sustentável, crucial para a redução da pobreza.
Foi outra, porém, a escolha do presidente
eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT). E, não por acaso, a recuperação que se
podia vislumbrar ficou nublada em menos de dois meses após o desfecho da
eleição.
Os petistas, que não parecem dispostos a
dividir as decisões de governo, trataram de mais que duplicar a alta
recomendável do gasto já no primeiro ano de Lula e a recuperar o discurso
envelhecido de 40 anos atrás contra as
privatizações —como se não fosse importante estancar a sangria
dos cofres públicos com as estatais ineficientes e aumentar o investimento em
infraestrutura e saneamento básico.
Aí se misturam conveniências políticas,
compromissos com as corporações da máquina estatal e, pior, a crença pueril de
que a prosperidade só pode ser alcançada com expansão contínua do Estado.
Inícios de mandato devem ser aproveitados
para as providências difíceis que renderão frutos duradouros nos anos
seguintes. Do novo governo se esperam, por exemplo, uma reforma tributária
procrastinada há décadas e um plano para conter a dívida pública.
Por ora, só se viu a opção pela gastança,
que quando muito produzirá um impacto de curto prazo na atividade produtiva.
Para, na sequência, colherem-se mais inflação, juros e endividamento, com o
consequente impacto negativo no emprego.
Eleito com margem mínima de votos, Lula tem
menor margem para erro. Não poderá contar com um cenário internacional
favorável como o de duas décadas atrás —ao contrário, o mundo desenvolvido
registra inflação inaudita, juros crescentes e a possibilidade de recessão.
Tampouco a desculpa da "herança maldita" encontrará eco além das
hostes petistas.
A imprudência orçamentária, infelizmente,
parece fato consumado. A chamada frente ampla, que ajudou Lula a chegar
novamente ao poder, deve encarar a realidade: no lugar do esperado Lula 1, Lula
3 começa repetindo os erros de Dilma Rousseff.
Respeito à urna
Folha de S. Paulo
75% rejeitam ato antidemocrático, diz
Datafolha, esforço bolsonarista se frustra
Pesquisa Datafolha realizada nesta semana
revela que 75% dos
eleitores brasileiros declaram-se contrários aos protestos de grupos radicais
bolsonaristas que irromperam em diversos pontos do país depois
de confirmada a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no segundo turno da
eleição presidencial.
O índice de condenação aos atos
antidemocráticos, que promoveram bloqueios de rodovias e acampamentos à frente
de quartéis para rejeitar o resultado das urnas e clamar por uma intervenção
militar, ultrapassa em muito os 51% que optaram pelo petista.
Entre os que escolheram Jair Bolsonaro (PL)
no segundo turno, segundo o levantamento, menos da metade (44%) dizem estar de
acordo com as manifestações.
Além da rejeição a métodos e propostas
políticas violentas, reflete-se nesse inequívoco repúdio o bem-vindo entendimento
de que o processo eleitoral transcorreu dentro das regras democráticas, que o
triunfo da oposição foi legítimo e deve ser respeitado por todos.
De fato, os inaceitáveis e persistentes
esforços liderados pelo próprio presidente da República para desacreditar o
processo eleitoral, difamar autoridades do Judiciário e alardear, sem provas,
fraudes nas urnas eletrônicas, não prosperaram —salvo para uma minoria de
frustrados com a derrota.
Mais controversos são os dados que a
pesquisa traz acerca do tratamento que deve ser dado aos manifestantes. Para
56%, eles merecem ser punidos, enquanto 40% consideram que não, já que teriam o
direito de expressar suas convicções, mesmo contrárias à democracia.
Nesse aspecto, as divisões entre eleitores
de Bolsonaro e Lula são mais acentuadas. Enquanto 67% dos primeiros se opõem às
punições, entre os que votaram no petista 81% são favoráveis.
Diante da informação de que o Judiciário
tem determinado o bloqueio de perfis nas redes sociais dedicados a contestar o
regime democrático com falsas alegações e a defender um golpe militar, a
reação majoritária é de desaprovação: 63% não concordam com a suspensão das
contas, contra 32% que se mostram a favor.
Os apoiadores de Lula dividem-se meio a
meio (49% contra e 48% a favor) a respeito dessas decisões judiciais, enquanto
79% dos bolsonaristas as condenam.
Não obstante as previsíveis diferenças de
opinião num país que foi às urnas dividido por aguda polarização política, é
plausível ver nos números da pesquisa uma tendência predominante à aceitação
dos valores democráticos.
Isso se dá tanto no que tange ao endosso do
sistema eleitoral quanto na relativa cautela diante de medidas que possam
parecer restritivas à liberdade de expressão.
Muro sanitário
Folha de S. Paulo
Suprema Corte dos EUA mantém medida da
pandemia que barra entrada de imigrantes
Milhares de imigrantes são barrados nas
fronteiras dos Estados Unidos com base em razões supostamente sanitárias, hoje
menos convincentes com o arrefecimento da pandemia. A medida, chamada Título
42, refere-se a um dispositivo da Lei de Saúde Pública adotado em março de 2020
pelo ex-presidente Donald Trump.
A extinção da norma era esperada na
quarta-feira (21), mas, atendendo a
pedido de 19 procuradores-gerais de estados republicanos, a Suprema Corte
decidiu que a restrição continuará em vigor, apesar de os
órgãos de saúde pública apontarem a ausência de necessidade.
Pelo Título 42, os agentes têm respaldo
legal para barrarem imigrantes de modo sumário. Outros países impuseram
restrições migratórias durante a pandemia, o Brasil inclusive. Entretanto
abusos têm sido documentados nos EUA, como a falta de individualização dos
casos, bem como o perigo humanitário na zona fronteiriça.
A arbitrariedade da norma —expulsão em
questão de horas sem possibilidade de pleitear asilo, infringindo a lei
internacional— gera violações recorrentes. Ademais, pela primeira vez, o número
de detidos na fronteira sudoeste do país ultrapassou a marca de 2 milhões,
considerados os primeiros 11 meses do ano fiscal de 2022.
À política restritiva americana somam-se
crises humanitárias e econômicas em países da região, como Venezuela, México e
Nicarágua.
No último domingo (11), um contingente de
cerca de mil pessoas chegou à fronteira oeste do estado do Texas, a maioria da
Nicarágua. Autoridades estimam cerca de 2.000 imigrantes por dia na região.
Dadas as tensões diplomáticas entre a
ditadura de Daniel Ortega e os EUA, nicaraguenses dificilmente podem ser
expulsos sob o Título 42 ou mesmo repatriados. Assim, muitos são detidos ou
colocados em liberdade condicional.
Embora tenha feito oposição à medida da era
Trump e prometido lidar com a questão migratória, Joe Biden tem falhado nessa
tarefa. Por dois anos, o governo democrata continuou a
aplicar a regra de expulsão sumária e a inchar presídios, a maioria privados.
Entre embates políticos e jurídicos
encontram-se migrantes em abandono institucional. Em que pese a complexidade da
situação fronteiriça e a sobrecarga dos órgãos fiscalizadores, abusos contra os
direitos humanos indicam que não é pela repressão pura e simples que se
resolverá a questão.
Um início nada promissor
O Estado de S. Paulo.
PEC da Transição abre enorme espaço para o
aumento do gasto público sem que o governo eleito tenha precisado sequer
sinalizar um compromisso firme com a credibilidade fiscal
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC)
da Transição aprovada pela Câmara atestou a manutenção da relação disfuncional
criada pelo presidente Jair Bolsonaro para aprovar projetos de interesse no
Congresso. O texto final não foi nem o que Lula da Silva queria nem o que o
Legislativo desejava, mas abriu um enorme espaço para o aumento do gasto
público sem que o governo eleito tenha precisado sequer sinalizar um
compromisso firme com a credibilidade fiscal.
A ambição inicial de Lula da Silva era
obter autorização para ajustar o Orçamento de 2023, expandi-lo em quase R$ 200
bilhões e tirar o Bolsa Família do alcance do teto de gastos por quatro anos. O
Congresso manteve o programa social no teto, reduziu sua vigência a um ano e
restringiu as despesas a R$ 145 bilhões, com R$ 22,9 bilhões a mais para
investimentos em caso de excesso de arrecadação. É muito mais do que os R$ 70 bilhões
necessários para manter o piso do programa em R$ 600 e pagar o adicional de R$
150 por criança. Para onde mais irá o restante do dinheiro?
Se quisesse, Lula da Silva poderia ter
recorrido a duas decisões recentes do Supremo Tribunal Federal (STF) para
abandonar práticas que se tornaram praxe no governo Bolsonaro e na Câmara sob o
comando de Arthur Lira (PP-AL). Além de o STF ter declarado a
inconstitucionalidade das emendas de relator, o ministro Gilmar Mendes concedeu
uma liminar permitindo a edição de crédito extraordinário para o pagamento das
despesas do Bolsa Família, o que permitiria “incluir os pobres no Orçamento” de
uma forma bem menos custosa.
Ao desperdiçar essa janela de oportunidade,
o governo eleito mostrou que a PEC da Transição sempre foi a única opção e
deixou claro que alternativas para assegurar a verba do programa social não
passavam de blefe. Os deputados souberam cobrar seu preço e, ao final, Lula da
Silva dependeu da boa vontade regimental de Lira para evitar a aprovação de um
destaque do Novo, dono de uma das menores bancadas da Casa.
Assim, o presidente eleito, malgrado ter
chamado o orçamento secreto de “excrescência” durante a campanha eleitoral, na
prática cedeu o acesso dos parlamentares a nada menos que R$ 21 bilhões em emendas
individuais no ano que vem, recursos que não podem ser bloqueados pelo
Executivo e que serão divididos igualmente entre os parlamentares. Serão R$
32,1 milhões por deputado e R$ 59 milhões por senador, a serem destinados a
seus redutos eleitorais, com finalidades muitas vezes controversas e sem
qualquer conexão com políticas públicas estruturadas.
Talvez o único ponto positivo da PEC tenha
sido obrigar o governo eleito a parar com a procrastinação a respeito da nova
âncora fiscal para substituir o esburacado teto de gastos. O novo mecanismo
deverá ser proposto por lei complementar, que, embora exija menos votos que uma
alteração constitucional, precisa ser aprovada até agosto. Do contrário, o
Orçamento de 2024 ficará sujeito ao teto, bem como a novas e dispendiosas
tratativas para driblá-lo.
Se antes os apelos pelo resgate da
credibilidade fiscal estavam restritos aos investidores, agora é o governo
eleito que terá de ter pressa para sair da armadilha em que se meteu. Findas as
novelas da PEC e do Orçamento, Lula da Silva terá de montar uma sólida base
parlamentar para aprovar a nova âncora. Espera-se que ela de fato seja “boa,
consistente e viável”, como disse o futuro ministro da Fazenda, Fernando
Haddad, até porque a PEC da Transição custou muito caro e, já de saída, elevou
o nível de gastos públicos, inclusive os obrigatórios.
De nada adianta uma âncora rígida, como o
teto, ou simbólica, como a meta de superávit primário, quando a premissa não é
cumpri-la, mas criar formas de desviar de seus limites para aumentar as
despesas públicas. Ações valem mais que palavras e, como sinalização de futuro,
a PEC da Transição é um início ruim. Mas a relutância em definir a âncora
demonstra que nem no discurso sobre a responsabilidade fiscal o governo eleito
tem se esforçado.
A vez da educação básica
O Estado de S. Paulo.
Experiência bem-sucedida da futura equipe
do MEC no Ceará indica intenção de privilegiar o ensino básico. Já não era sem
tempo, pois sem crianças bem formadas não há progresso
O ex-governador do Ceará e senador eleito
Camilo Santana (PT) será anunciado como ministro da Educação do futuro governo
de Lula da Silva. A atual governadora cearense, Izolda Cela (sem partido), que
também estava cotada para o cargo, comandará a Secretaria de Educação Básica.
Com a nomeação de ambos, a ideia parece ser a de levar para o Ministério da
Educação (MEC) a bem-sucedida experiência cearense na área do ensino básico. Se
a intenção se traduzir em medidas práticas, será um passo dado na direção certa,
considerando que o Ceará é referência nacional na alfabetização de crianças e
na melhoria dos índices de aprendizagem.
Este jornal defende que se priorize a
educação básica, pois sem crianças bem formadas, na idade certa, não se
constituem cidadãos capazes de participar do desenvolvimento nem da vida
política do País. De nada adianta construir dezenas de universidades federais
nem colocar “a filha da empregada” e “o filho do pedreiro” no ensino superior,
como os petistas se jactam de ter feito, se esses mesmos estudantes, por não
terem tido formação básica adequada, terão imensas dificuldades para concluir o
curso a contento e para desempenhar sua profissão em sua plenitude. Ou seja,
não se constrói a casa do desenvolvimento do País começando pelo teto.
A educação básica está sendo negligenciada
há muito tempo – decerto porque, entre outras razões, crianças não votam. O
resultado disso é claríssimo nas avaliações oficiais. Como registramos aqui há
poucos dias (ver o editorial O País reprovado em matemática, 19/12/2022),
apenas 5% dos concluintes do ensino médio em escolas públicas demonstraram
níveis adequados de aprendizagem de matemática em 2021, no Sistema de Avaliação
da Educação Básica (Saeb) do MEC. Vale dizer que esses índices são similares
aos registrados em 2019 e 2017, isto é, antes da pandemia de covid-19.
Portanto, o problema é estrutural.
Não são apenas os testes de larga escala
que retratam índices baixíssimos de aprendizagem. Essa também é uma percepção
generalizada no setor produtivo. Diante da escassez de mão de obra qualificada,
empresas acabam assumindo para si a tarefa de formar seus trabalhadores, quando
não são obrigadas a recorrer à mão de obra estrangeira.
Mudar a realidade educacional, portanto, é
tarefa urgente. Da futura equipe do MEC, espera-se a priorização de ações que
já tenham se mostrado efetivas em Estados e municípios, caso do ensino em tempo
integral. O País dispõe de um bom repertório de iniciativas locais que devem
ser ampliadas. Tome-se, a propósito, o caso do Ceará: o apoio que a rede
estadual presta às prefeituras, no tocante à formação de professores, à
avaliação dos alunos e à produção de material didático, é um bom exemplo de
como deve ser o pacto federativo. Parece ser uma boa ideia replicar essa lógica
a partir do MEC, estabelecendo uma rede de cooperação técnica com Estados e
municípios.
Priorizar a educação básica não implica
deixar de lado o ensino superior, como podem sugerir visões mais apressadas.
Todos têm a ganhar com a melhoria da aprendizagem de crianças e adolescentes.
De um lado, as universidades formam os professores de ensino fundamental e
médio; de outro, as escolas de educação básica preparam os futuros
universitários.
Que ninguém se iluda, porém. Vários
governos, de diferentes agendas ideológicas, prometeram priorizar a educação
básica nos últimos tempos. O presidente Jair Bolsonaro, por exemplo, venceu a
eleição em 2018 garantindo que o País daria “um salto de qualidade na educação,
com ênfase na infantil, básica e técnica”. A petista Dilma Rousseff começou seu
segundo mandato, em 2015, sob o slogan “Brasil, Pátria Educadora”, garantindo
que haveria acesso universal “à educação de qualidade em todos os níveis, da
creche à pós-graduação”. Como se sabe, pouco disso saiu do terreno das boas
intenções.
Para piorar, a inoperância do MEC sob
Bolsonaro criou uma espécie de armadilha: de tão ruim, qualquer avanço que a
futura equipe conseguir já deixará a sensação de dever cumprido. Tremendo
equívoco. Na educação, não bastarão “revogaços” nem boas intenções. O País
precisa investir pesadamente na educação básica, e já.
Um encontro ousado
O Estado de S. Paulo.
Corajosa visita de Zelenski aos Estados
Unidos reforça laços e mostra que Vladimir Putin terá trabalho
A visita do presidente ucraniano, Volodmir
Zelenski, a Washington durou poucas horas, mas teve um tremendo valor
simbólico. Zelenski agradeceu ao principal apoiador de seu povo, e a recepção
na Casa Branca e no Congresso fortaleceram esse apoio. “Estaremos ao seu lado
pelo tempo que for necessário”, disse o presidente Joe Biden. “O que vocês
estão fazendo, o que conquistaram, importa não só para a Ucrânia, mas para todo
o mundo.”
De fato, basta pensar o que teria
acontecido se o autocrata russo Vladimir Putin tivesse logrado seu intento. As
forças russas ocupariam quase toda a Ucrânia e estariam nas fronteiras dos
países da Otan. Moldávia, Geórgia e Estados Bálticos estariam na mira. A Otan
estaria tensionada acerca da resposta a essas agressões. Putin teria mais
alavancas para ampliar suas chantagens sobre a Europa. A China se sentiria
encorajada a avançar suas ambições sobre Taiwan e os déspotas do mundo, a acreditar
que o crime compensa.
Mas Putin superestimou suas forças e
subestimou as forças ucranianas e a disposição ocidental. “Dez meses depois, o
povo, as Forças Armadas e as lideranças ucranianas continuam a defender sua
pátria com habilidade, coragem e determinação que inspiraram o mundo”, disse o
secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg. “Putin pensou que poderia nos
dividir e dissuadir de apoiar a Ucrânia.” Ele queria menos Otan, e acabou com
uma Otan “maior e mais forte”.
Mas o fracasso de Putin não significa que
ele não tenha infligido danos. Mais de um quarto da população ucraniana entra
no inverno sem energia. Milhões fugiram e muitos, incluindo crianças, foram
deportados à força para a Rússia. Relatos de estupros, tortura e execuções se
multiplicam.
Os EUA já deram US$ 22 bilhões à Ucrânia e
devem dar mais US$ 45 bilhões. O arsenal prometido por Biden inclui mísseis
Patriot decisivos para frustrar a estratégia de Putin de disseminar o pânico
com ataques aéreos a civis e usinas de energia.
Se em tempos de paz é preciso se preparar
para a guerra, em tempos de guerra é preciso se preparar para a paz. O ideal
seria um cessar-fogo em que a Rússia recuasse às linhas anteriores a 24 de
fevereiro. Em contrapartida, as populações dos territórios sob disputa, em paz
e liberdade garantidas por forças internacionais, poderiam determinar seu
destino via referendos. Sem deslegitimar os direitos de reparação da Ucrânia e
as investigações dos crimes de guerra, a diplomacia do Ocidente precisará frear
os ímpetos de lideranças que gostariam de ver a Rússia desmantelada e de
joelhos. O colapso de uma superpotência nuclear só abrirá as portas para o
caos.
A diplomacia é o caminho ideal. Infelizmente, Putin não mostra disposição de flexibilizar suas exigências maximalistas. Na prática, o caminho é seguir infligindo o mais rápido possível o máximo de perdas às forças e à economia russa. Moralmente, esta é uma guerra que Putin não deve ganhar. Mas, se não há esperança de induzi-lo a reconhecer isso, ao menos as pressões militares da Ucrânia e econômicas do Ocidente podem forçá-lo a reconhecer que essa é uma guerra que ele não pode ganhar.
Criptoativos no radar dos reguladores,
finalmente
Valor Econômico
Dada a dimensão do novo mercado é difícil
não haver contágio do sistema financeiro tradicional
Esquentou nas últimas semanas o debate a
respeito da regulamentação dos criptoativos. No início de dezembro, o
ex-presidente da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) Marcelo Trindade
endossou a posição dos que avaliam que regular o investimento em criptomoedas
seja um equívoco. “As empresas não se financiam naquelas moedas e o sistema de
crédito não depende de suas emissões. A economia popular aplicada nesses
investimentos deve ser fiscalizada e protegida individualmente, e não com os
impostos dos que decidiram não participar das apostas”, escreveu no Valor (1/12).
O artigo de Trindade expõe ainda a posição
dos professores americanos Stephen Cecchetti e Kim Schoenholtz, que avaliam no
“Financial Times” (17/11) que a regulação dos criptoativos conferiria
legitimidade a esse mercado, que não oferece risco para a estabilidade financeira.
Alguns dias depois, outro ex-presidente da
CVM, Marcelo Barbosa, também pôs em dúvida a necessidade de regulação dos
ativos digitais em entrevista ao Valor,
argumentando que, se houver alguma oferta com “cara de valor mobiliário” ela
receberia o tratamento dado a outros valores mobiliários.
Jairo Saddi entrou no debate em sua coluna
mensal no Valor (12/12).
Saddi defendeu que a “regulação é fundamental na inovação, exatamente para
estabelecer os limites que a selvageria não consegue impor”. Alertou que, além
das criptomoedas, inclusive das moedas digitais dos banco centrais, as CBDC, a
tokenização pode apresentar riscos sistêmicos, quando utilizada na negociação
de títulos mobiliários.
Trindade voltou ao tema na semana passada e
levantou um ponto interessante ao avaliar que a regulamentação poderia dar às
criptomoedas um tratamento privilegiado em comparação com o dispensado a moedas
estrangeiras e ao ouro, cujo curso é limitado.
O debate entre autoridades do mercado
financeiro é instigante, apaixonado e educativo, mas pode ter chegado um pouco
tarde. Uma legislação local a respeito dos criptoativos começa a ganhar forma.
No fim de novembro, a Câmara dos Deputados aprovou o Marco Legal dos
Criptoativos (PL 4401/2021), sancionada ontem. Os detalhes serão definidos pelo
órgão regulador a ser indicado.
Alguns problemas, como a ausência de
segregação patrimonial entre investidores e exchanges, são notórios. O texto
também não trata de valores mobiliários tokenizados, atribuição que deve ficar
a cargo da CVM. Em outubro, a CVM divulgou Parecer de Orientação sobre
criptoativos e o mercado de valores mobiliários, consolidando o entendimento de
eventuais normas aplicáveis e de sua atuação.
No mercado internacional, as autoridades
correm para recuperar a dianteira assumida pelo mercado. Consulta pública sobre
regulamentação internacional para os criptoativos circula há dois meses por
iniciativa do Financial Stability Board (FSB). Zeloso de sua missão de cuidar
da estabilidade financeira global, o FSB argumentou que a crescente conexão
entre os mercados financeiros tradicionais e os criptoativos deve ser
monitorada para evitar ameaça à estabilidade financeira; e fala até em uma
stablecoin global.
Ainda nesta semana o Bank for International
Settlements (BIS) estabeleceu padrões prudenciais globais para a exposição dos
bancos a criptoativos, com requisitos de capital como os exigidos de qualquer
ativo financeiro. De acordo com um relatório do BIS publicado em junho, cerca
de 90% dos bancos centrais estão considerando a adoção de CBDCs.
O que contribuiu para despertar as
autoridades, 14 anos após o surgimento do blockchain e do bitcoin, parece ter
sido a quebra da Exchange FTX que, embora tenha sido mais um caso de fraude,
como disse Saddi, deixou 1 milhão de credores. Antes dela houve o colapso do
projeto Terra/Luna, que zerou seu valor. No Brasil são vários os casos de
fraudes com faraós, sheiks e outras alegorias do bitcoin. Dada a dimensão do
novo mercado é difícil não haver contágio do sistema financeiro tradicional. Daí
a preocupação com o negócio. Afinal, o volume investido em criptomoedas no país
já é grandioso.
Estudo feito pela Accenture calcula que 6
milhões de brasileiros investem em criptomoedas, o equivalente a 3% da
população e mais do que os 5 milhões de CPFs cadastrados na B3. Ainda de acordo
com a Accenture, as criptomoedas em posse dos brasileiros somavam R$ 270
bilhões em abril de 2022, o equivalente a 3% do PIB nacional, o que dá R$ 45
mil por pessoa, sem contar que parcela dos recursos são movimentados em exchanges
no exterior e podem ficar fora do radar.
"Risco para novo governo é repetir erros do passado
ResponderExcluirO Globo"
Claro. Repetir erros é sempre ruim. O problema é definir erro. Eu, por exemplo, não chamo de PEC DA gastança como a imprensa faz, chamo de PEC da cidadania. As vezes, o q é erro pros Marinho da Globo, é acerto pra mim.
"Folha de S. Paulo
ResponderExcluirVisão ultrapassada e corporativismo minam a confiança antes da posse de Lula"
Rá, ultrapassada fica por conta da falha de São Paulo. Normalmente as demandas são corporativas, e as opiniões da falha não são exceções. Folha, admita seu corporativismo.