domingo, 11 de dezembro de 2022

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Clima de ódio que contaminou Brasil precisa ter fim

O Globo

Não tem cabimento atacar ninguém pelas escolhas políticas. Precisamos nos inspirar em atos de solidariedade

O presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), deverá ser diplomado amanhã e assumirá em 1º de janeiro, como manda a Constituição. A eleição acabou, e não faz nenhum sentido perseguir, atacar ou hostilizar quem quer que seja com base em suas escolhas políticas. Passou da hora de dar um basta à sandice que tomou conta do país na campanha. Lamentavelmente, episódios de intolerância e agressões, relacionados a uma contenda que não existe mais, têm pipocado a todo momento dentro e até fora do Brasil. Prorrogam um clima de ódio que só nos faz mal.

Na estreia da seleção brasileira na Copa do Catar, o cantor e compositor Gilberto Gil e sua mulher, Flora Gil, presentes ao estádio Lusail, em Doha, foram xingados por bolsonaristas, como se não pudessem torcer pela seleção. Dias antes, o ex-presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia (PSDB-RJ) foi hostilizado num resort da Praia do Forte, Litoral Norte da Bahia. Ao deixar o restaurante do hotel, foi xingado de “pilantra”, “ladrão” e outras ofensas impublicáveis, especialmente depois de fazer um L com a mão (referência a Lula, em quem declarara voto).

A intolerância não tem lado. Na véspera do segundo turno, a atriz Regina Duarte, ex-secretária especial de Cultura do governo Jair Bolsonaro, foi execrada no Teatro da Liberdade, no centro de São Paulo, onde fora assistir ao espetáculo “Clube da Esquina — os sonhos não envelhecem”. Foi vaiada e praticamente enxotada do local aos gritos de “Fora, Bolsonaro!”. Nas redes sociais, o episódio foi usado por bolsonaristas como contraponto às agressões a Gil e Flora. Um não justifica o outro. Ambos são deploráveis.

O cúmulo da insensatez aconteceu quando Neymar sofreu uma lesão no tornozelo direito no jogo contra a Sérvia (ele desfalcou o time por duas partidas). Em vez de votos de recuperação ao maior craque da seleção brasileira, ganharam fôlego nas redes os ataques pessoais, a ponto de o tópico com insultos a Neymar figurar entre os mais comentados do Twitter. A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, reagiu com um “foi tarde”. Todo esse ódio só porque ele fez propaganda para Bolsonaro durante a campanha. Direito dele.

As odiosas patrulhas do pensamento não são novas. Em 1989, Marília Pêra, uma das maiores atrizes que o Brasil já teve, foi cercada e intimidada por apoiadores do então candidato do PT à Presidência, Lula, quando saía de um teatro em São Paulo. Foi submetida a linchamento público por ter declarado voto em Fernando Collor de Mello, que acabou vencendo a eleição. Dona de um talento extraordinário, saiu-se com ironia: “Desculpem, eu não sabia que não podia [votar em Collor]”.

O Brasil de sangue nos olhos deveria se inspirar em exemplos de amor e solidariedade, como a lição inestimável dada pela professora Iris Lippi. Por duas horas e meia, ela carregou no colo o bebê de 3 meses da aluna Bruna Fidje, de 32 anos, para que ela pudesse fazer prova numa faculdade de Sorocaba, em São Paulo. Sem ter com quem deixá-lo, Bruna o levara para a sala de aula. “Até chorei, porque para mim não está sendo fácil conciliar a faculdade com a maternidade, mas coisas assim renovam nossa fé na humanidade”, disse ao portal g1. O profeta dos pilares encardidos de viadutos do Rio de Janeiro pregava que “gentileza gera gentileza”. O ódio só gera mais ódio.

Tarcísio emerge como liderança conservadora natural pós-Bolsonaro

O Globo

Na escolha de sua equipe, governador eleito de São Paulo demonstra ter noção do rumo político do país

O governador eleito de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), começa a assumir um papel que lhe permitirá no futuro, se desejar, tornar-se o rosto de um conservadorismo democrático, distante da marca nefasta do bolsonarismo. Tem demonstrado na montagem de sua equipe de governo a compreensão da nova situação política, uma vez que esteja instalado no Palácio dos Bandeirantes — e que o presidente Jair Bolsonaro esteja desalojado do Palácio do Planalto.

Apresentado por Bolsonaro como um técnico quando assumiu o Ministério da Infraestrutura, Tarcísio revelou conhecer o jogo político nos debates da campanha eleitoral contra o adversário Fernando Haddad, do PT. Sem a agressividade tosca que define o “bolsonarismo raiz”, esse candidato improvável venceu as eleições com votos bolsonaristas e antipetistas. Começou a montar sua equipe de governo de olho no futuro, não no passado de ministro bolsonarista. Afirmou no início da semana que jamais foi “bolsonarista raiz” e que não quer “guerra ideológica” no seu governo. “O Brasil está muito tenso e dividido, é preciso pacificar”, disse em entrevista à CNN Brasil.

Até agora, a única concessão que fez ao bolsonarismo ideológico foi na escolha do deputado federal Capitão Derrite (PL-SP) para chefiar a Secretaria da Segurança Pública. Linha-dura, Derrite disse ser contra o uso de câmeras no uniforme da PM. Era o que também dizia o próprio Tarcísio, até recuar alegando ser necessário avaliar os resultados. Eles já existem e são eloquentes: segundo estudo da Fundação Getulio Vargas, a ação de PMs com câmeras causa 50% menos mortes e 64% menos lesões. Espera-se que Tarcísio respeite os fatos, assim como soube voltar atrás ao manter a obrigatoriedade de servidores se vacinarem contra a Covid-19, indo contra os ditames da cartilha bolsonarista.

Noutro ato de independência em relação a Bolsonaro, anunciou Gilberto Kassab, ex-ministro de Dilma Rousseff e presidente do PSD (partido da base parlamentar do futuro governo Lula), para o posto estratégico de secretário de Governo. Também com a intenção de montar uma equipe de ministeriáveis, convidou o ministro Paulo Guedes para ocupar sua Secretaria de Fazenda. Guedes não aceitou, e o secretário será Samuel Kinoshita, da equipe dele no ministério, responsável pela coordenação do plano econômico do governador eleito no gabinete de transição. Outro nome de destaque que afasta Tarcísio do bolsonarismo é Guilherme Afif Domingos, o coordenador-geral da transição, também do PSD.

A preocupação em ter um secretariado mais técnico e o mais distante possível da polarização que rachou o país demonstra que Tarcísio compreendeu perfeitamente o novo momento da política brasileira. O país precisa de uma direita civilizada, capaz de defender suas ideias dentro das regras da democracia. Se mantiver o tom, o comando do maior estado da Federação fará de Tarcísio o ponto de referência natural para os conservadores legítimos, distantes dos lunáticos terraplanistas que idolatram Bolsonaro.

Haddad na Fazenda

Folha de S. Paulo

Escolhido precisa indicar planos; até aqui, Lula só mostrou intenção de gastar

O tardio e por fim não surpreendente anúncio de que Fernando Haddad comandará a Fazenda em pouco reduz, por ora, incertezas e temores quanto à política econômica a ser adotada pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Em primeiro lugar, porque a escolha parece vinculada a cálculos políticos do partido com vistas à sucessão de Lula. Desde 2016, Haddad disputou a prefeitura paulistana, a Presidência da República e o governo de São Paulo —sem obter vitórias, mas evidenciando a aposta da cúpula do PT em seu nome.

Em segundo, porque ainda não há mais do que especulações e informações de fontes anônimas a respeito do segundo escalão da pasta. Dado que o futuro ministro não chegou a apresentar diretrizes claras, a composição de sua equipe tende a ser o sinal mais importante dos rumos a seguir.

Até aqui, Lula só foi assertivo na intenção de expandir os gastos públicos. É o que se demonstra com a chamada PEC (proposta de emenda constitucional) da Transição, aprovada por ampla maioria do Senado com validade de dois anos.

A peça permite aumentos de despesas de no mínimo R$ 145 bilhões anuais, com penduricalhos capazes de elevar o montante a quase R$ 200 bilhões em 2023.

Entre eles estão a possibilidade de usar um "excesso de arrecadação" —seja lá o que isso queira dizer— para ampliar investimentos e a autorização para uso de recursos não reclamados no PIS/Pasep.

No final das contas, cria-se uma folga orçamentária muito maior que a necessária para viabilizar a permanência do Auxílio Brasil (ou Bolsa Família) de R$ 600 mensais, de fato essencial, e o prometido pagamento de R$ 150 adicionais para famílias com filhos pequenos.

Ao menos a PEC determina que em seis meses seja apresentada uma revisão do regime fiscal, com novas regras que substituirão o teto de gastos. É vital que Haddad apresente um mecanismo crível para conter a escalada da dívida pública —ou o desequilíbrio orçamentário paralisará novamente os investimentos e a economia, com alta do desemprego e da pobreza.

Desde o final de outubro, os juros de mercado subiram, e foi praticamente eliminada das expectativas a chance de cortes da taxa do Banco Central no próximo ano.

Na quarta-feira (7), o BC divulgou a decisão de manter a Selic no patamar elevado de 13,75% anuais, salientando que está especialmente atento aos riscos fiscais.

O futuro ministro da Fazenda acertará se der indicações rápidas de compromisso com a racionalidade econômica e a responsabilidade orçamentária, seja com a escolha de seus auxiliares, seja na negociação por uma PEC menos perdulária na Câmara dos Deputados.

Raízes de Tarcísio

Folha de S. Paulo

Governador eleito tem laços com Bolsonaro, mas acerta ao se afastar da ideologia

O governador eleito de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), tem dado sinais bem-vindos de que não transformará sua gestão em plataforma político-ideológica do bolsonarismo.

Ex-ministro do governo que ora se despede, o futuro mandatário paulista mantém laços incontornáveis com Jair Bolsonaro (PL) e com o campo político que o projetou na corrida eleitoral, mas tem evitado ser um porta-voz da militância e de teses radicais.

Ele próprio afirmou, em recente entrevista à CNN, que não é um "bolsonarista raiz", deixando claro que seu governo não servirá a batalhas culturais. As declarações despertaram reações inflamadas entre apoiadores do presidente.

Tarcísio, de fato, nunca foi um ativista ideológico. Sua presença no ministério deveu-se antes a questões gerenciais do que à pauta reacionária de Bolsonaro. Antes, havia ocupado cargos importantes nos governos Dilma Rousseff (PT) e Michel Temer (MDB).

O pragmatismo parece nortear a montagem da administração, o que culmina na indicação de Gilberto Kassab (PSD) para a Secretaria de Governo —trata-se de político maleável a ponto de poder apoiar também o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em Brasília.

Não há dúvida de que o governador eleito situa-se à direita do espectro ideológico e está exposto às pressões do núcleo bolsonarista.

Entretanto dá sinal de ser criterioso no aproveitamento de nomes do governo federal. É o caso de Caio Paes de Andrade, da equipe do ministro Paulo Guedes, que deixa a presidência da Petrobras para assumir a pasta de Gestão e Governo Digital em São Paulo.

Mais problemática é a indicação do deputado federal Guilherme Derrite (PL-SP), conhecido como Capitão Derrite, para a Secretaria de Segurança Pública. Ligado a Bolsonaro, o parlamentar suscita temores de que a gestão da área seja contaminada por bandeiras ideológicas e corporativistas.

Um risco colocado desde já é que seja abandonado ou desvirtuado o bem-sucedido programa de emprego de câmeras em uniformes de policiais militares.

Seria irrealista imaginar que Tarcísio possa romper integralmente com o presidente da República prestes a deixar o posto, ao qual deve seu ingresso no mundo da política. As condições estão dadas, no entanto, para que conduza seu governo conservador aos padrões da normalidade democrática.

O PT quer manter a clientela

O Estado de S. Paulo

Petistas lutam pela gestão do Bolsa Família, o grande ativo eleitoral do partido.

A Coluna do Estadão informou há poucos dias que é forte a resistência de lideranças do PT a uma eventual nomeação da senadora Simone Tebet (MDB-MS) como ministra da Cidadania, posição que a parlamentar indicou que gostaria de ocupar no futuro governo.

O Ministério da Cidadania será responsável, entre outras atribuições, pela gestão do programa Bolsa Família, um dos principais ativos eleitorais do PT, sobretudo na Região Nordeste, razão pela qual os petistas desejam manter a pasta sob estrito controle do partido. Lideranças da legenda fazem o diagnóstico, não de todo infundado, de que a visibilidade do programa social pode tornar a senadora sul-mato-grossense mais conhecida nacionalmente, o que fortaleceria sua provável candidatura à Presidência da República em 2026.

Malgrado o fato de ainda ser muito cedo para especular quais serão os possíveis cenários de uma campanha eleitoral marcada para daqui a quatro anos, algumas notas podem ser feitas sobre essa movimentação do PT para manter intocado uma espécie de feudo que o partido considera ser seu por direito.

É prerrogativa do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva nomear e exonerar ministros como melhor lhe aprouver. Ademais, é legítimo que o PT, assim como qualquer outro partido político da coalizão, articule em defesa de seus interesses na conformação do próximo governo. O Ministério da Cidadania é apenas uma das pastas em disputa. Como o Estadão revelou, os petistas cobram ainda as pastas da Saúde, da Educação, além da Fazenda, a cargo de Fernando Haddad, e da Secretaria-Geral da Presidência. No entanto, isso contraria a promessa de Lula de governar o País pela terceira vez “com menos PT”.

A resistência do PT em ceder espaço de poder privilegiado a uma aliada como Simone Tebet, que se entregou de corpo e alma à campanha de Lula logo após a divulgação do resultado do primeiro turno, revela, antes de tudo, que o partido não compreendeu o significado da frente ampla montada para derrotar Jair Bolsonaro.

A frente “O Brasil Feliz de Novo” foi muito mais do que uma coligação eleitoral. Tal como foi apresentada, tratavase de uma promessa de coalizão de governo da qual o PT seria apenas uma das legendas constitutivas. Tanto foi assim que, na noite de 30 de outubro, Lula afirmou em seu discurso de vitória que aquele não foi um triunfo seu, nem tampouco do PT ou dos partidos políticos que o apoiaram, mas antes a consagração nas urnas de “um movimento democrático que se formou acima dos partidos, dos interesses pessoais e das ideologias” representadas por cada uma das legendas da coalizão. Uma coalizão de governo implica divisão real de poder.

Mas a incompreensão dos petistas acerca do verdadeiro sentido daquela frente ampla é o menor dos problemas do PT. Subjaz na frenética negociação nos bastidores da transição a preocupação do PT em não perder uma clientela que o partido julga ser cativa: os milhões de beneficiários do Bolsa Família, em especial no Nordeste. De fato, a marca Bolsa Família é fortemente ligada ao PT, tanto que Bolsonaro fez de tudo, dentro e fora da lei, para desvincular o Bolsa Família do partido de seu adversário. Chegou a criar o mal-ajambrado Auxílio Brasil para auferir os mesmos ganhos eleitorais pela exploração dos beneficiários. Para sorte do País, sem sucesso.

Um país com milhões de cidadãos vivendo abaixo da linha da pobreza e convivendo diariamente com a dor da fome não pode prescindir de um bom programa de transferência de renda.

Este jornal criticou não poucas vezes, nesta página, o uso eleitoreiro do Bolsa Família pelos governos petistas, quando o programa apresentava todos os contornos de uma descarada tática para aprisionar milhões de cidadãos na dependência com o objetivo de manter Lula da Silva e Dilma Rousseff no poder. Mas, uma coisa é transferência de renda; outra, é a construção de uma relação clientelista entre a população mais vulnerável e um determinado grupo político.

O PT tem o direito de pleitear o Ministério que quiser na nova conformação da Esplanada. Não deve, contudo, fazê-lo pelas razões erradas.

PNI, há 50 anos salvando vidas

O Estado de S. Paulo

Apesar de lanhado pelo choque pandêmico e um governo obscurantista, o programa segue sendo referência mundial e mantém todas as condições para vencer seus desafios

O Programa Nacional de Imunizações (PNI) inicia seu quinquagésimo ano com uma história de sucesso e, após o maior teste de estresse de sua história, imensos desafios.

O PNI foi criado para consolidar a tradição vacinal brasileira iniciada na virada do século com Oswaldo Cruz e garantir à população acesso a todas as vacinas recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Seus primeiros objetivos foram o controle do sarampo, tuberculose, difteria, tétano, coqueluche e pólio e a manutenção da erradicação da varíola. Nos anos 80, deu seu grande salto, com os Dias Nacionais da Vacinação, tendo como símbolo maior o mascote Zé Gotinha. Após a rubéola, o tétano e o sarampo, a pólio foi oficialmente erradicada em 1994.

Com o Sistema Único de Saúde (SUS), o PNI ganhou novo impulso, pautando-se pelo princípio da universalidade e equidade na atenção, bem como pelo princípio organizativo da descentralização, atuando numa rede articulada e hierarquizada, com metas e resultados regularmente fiscalizados. O PNI distribui 48 imunobiológicos que abrangem todos os ciclos da vida e protegem contra mais de 20 doenças, sendo recorrentemente citado como referência pela OMS e a Organização Pan-Americana da Saúde.

Hoje, no entanto, o País enfrenta seu pior momento vacinal. Em 2021, atingiu apenas 60% de cobertura na imunização geral da população. Nenhuma das vacinas do calendário das crianças menores de 1 ano, a fase mais vulnerável da vida, tem cobertura dentro dos parâmetros. O mesmo vale para outros grupos etários. O risco de reemergência de doenças erradicadas, como a pólio e o sarampo, é iminente.

As causas para esse cenário tenebroso são multifatoriais. Desde 2016, a OMS alerta para uma redução global das coberturas vacinais, seja pela complacência de uma geração já imunizada que parece ter se esquecido da importância das vacinas, seja pela ofensiva de movimentos antivacina, que têm disseminando desinformação e teorias da conspiração. Essa cultura nefasta foi acentuada durante a pandemia, que ainda provocou rupturas nas cadeias de distribuição de insumos e imunizantes.

O País não ficou imune a essa onda disruptiva, com uma agravante: ao contrário de todas as nações de expressão geopolítica e econômica, o Brasil foi a única nação a ter um chefe de Estado que fez do obscurantismo uma bandeira política. Jair Bolsonaro sabotou todas as etapas da batalha épica pelo desenvolvimento e distribuição de imunizantes contra a covid. Além de influenciar certas franjas da população, sua postura negacionista, associada a uma indefectível incompetência administrativa, desestruturou o sistema de saúde, incluindo o PNI.

A integração entre os entes federativos e as áreas de assistência social e educação está desarticulada. Nos últimos dois anos, o orçamento do Ministério da Saúde caiu de R$ 209,9 bilhões para R$ 146,4 bilhões, o mais baixo desde 2014. O orçamento do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações encolheu um terço. Na década de 80, o Brasil chegou a produzir 50% do Ingrediente Farmacêutico Ativo, que garante a eficácia dos fármacos. Hoje, produz só 5%.

Em 1973, a criação do PNI representou uma verdadeira ilha de sanidade. No auge dos anos de chumbo, essa conquista civilizatória marcou uma impressionante concordância entre a sociedade civil e o regime militar. Cinquenta anos depois, um capitão defenestrado do Exército, com a ajuda de alguns dos quadros mais medíocres e retrógrados das Forças Armadas (como o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello), perturbou como nunca esse consenso. Mas o País ainda conta com uma história de conhecimento acumulado para produzir e distribuir vacinas. Precisará de um choque de gestão e recomposição orçamentária – um dos maiores desafios do novo governo – e, acima de tudo, de uma mobilização da sociedade para revigorar sua cultura vacinal, corporificada no PNI. Por mais dilapidado que tenha sido, esse patrimônio se mantém rico e pronto para ser inoculado com novas energias cívicas para avançar em sua missão saneadora por mais 50 anos.

Consequências do atraso do Censo

O Estado de S. Paulo

Falta de dados precisos, que deveriam ter sido levantados em 2020, dificulta redistribuição de fundos federais

O atraso no cálculo da fatia que cada um dos quase 5.600 municípios brasileiros terá do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), principal fonte de receitas para boa parte deles, é, no momento, a consequência mais visível da impossibilidade de conclusão do Censo Demográfico ainda em 2022.

O atraso do Censo, que deveria ter sido realizado em 2020, retrata não apenas o modo irresponsável com que o governo Bolsonaro tratou o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que, apesar do histórico de seus trabalhos e da importância de seu acervo, chegou a ser chamado de burocrático e incompetente quando aferiu dados que desagradaram aos ocupantes do poder. É, na essência, o retrato do próprio governo prestes a terminar, que se mostrou incapaz de reconhecer a relevância das informações geradas pelo IBGE e por outras instituições oficiais de pesquisa e de conduzir outras políticas públicas de maneira consistente.

A pandemia de covid-19 impediu a realização do Censo em 2020, como deveria ter sido, pois esse levantamento é realizado a cada 10 anos (o anterior é de 2010). Dificuldades na gestão orçamentária que marcaram a administração de Bolsonaro não permitiram que o trabalho fosse realizado em 2021. Mesmo no início de 2022 persistiam dúvidas se haveria, de fato, recursos para que, afinal, o Brasil conhecesse com precisão o tamanho de sua população e sua distribuição pelo território nacional.

O IBGE preparou-se para realizar o Censo de acordo com os limites impostos pelas restrições orçamentárias, programando o prazo de três meses para a conclusão dos trabalhos de campo. Iniciados em agosto, esses trabalhos já deveriam estar encerrados. Mas dificuldades na contratação de recenseadores em número suficiente num período em que o mercado de trabalho mostrava uma melhora surpreendentemente intensa em algumas regiões retardaram a pesquisa. Além disso, houve problemas no pagamento dos recenseadores, por atraso na liberação das verbas destinadas a essa finalidade, que resultou em paralisação parcial dos trabalhos. Assim, o Censo só deverá ser concluído em 2023.

São problemas conjunturais que se somam aos criados pelo modo como, desde seu início em 2019, o governo Bolsonaro administra os recursos orçamentários, privilegiando setores de seu interesse político e ideológico e ignorando ou desprezando as dificuldades enfrentadas por outras unidades ou órgãos públicos, como as universidades e os centros de pesquisa, como o IBGE.

A instituição tem prazo até 26 de dezembro para entregar ao Tribunal de Contas da União (TCU) a população de cada município brasileiro, pois é com base nessa informação que o órgão de contas calcula o porcentual do FPM a que cada prefeitura terá direito quando esses recursos forem distribuídos pela União.

Informações demográficas precisas são indispensáveis também para o planejamento de outras ações de um governo preocupado com as reais necessidades da população, bem como para os planos de expansão e investimentos de empresas privadas.

 

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