Clima de ódio que contaminou Brasil precisa ter fim
O Globo
Não tem cabimento atacar ninguém pelas
escolhas políticas. Precisamos nos inspirar em atos de solidariedade
O presidente eleito, Luiz Inácio Lula da
Silva (PT), deverá ser diplomado amanhã e assumirá em 1º de janeiro, como manda
a Constituição. A eleição acabou, e não faz nenhum sentido perseguir, atacar ou
hostilizar quem quer que seja com base em suas escolhas políticas. Passou da
hora de dar um basta à sandice que tomou conta do país na campanha.
Lamentavelmente, episódios de intolerância e agressões, relacionados a uma
contenda que não existe mais, têm pipocado a todo momento dentro e até fora do
Brasil. Prorrogam um clima de ódio que só nos faz mal.
Na estreia da seleção brasileira na Copa do Catar, o cantor e compositor Gilberto Gil e sua mulher, Flora Gil, presentes ao estádio Lusail, em Doha, foram xingados por bolsonaristas, como se não pudessem torcer pela seleção. Dias antes, o ex-presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia (PSDB-RJ) foi hostilizado num resort da Praia do Forte, Litoral Norte da Bahia. Ao deixar o restaurante do hotel, foi xingado de “pilantra”, “ladrão” e outras ofensas impublicáveis, especialmente depois de fazer um L com a mão (referência a Lula, em quem declarara voto).
A intolerância não tem lado. Na véspera do
segundo turno, a atriz Regina Duarte, ex-secretária especial de Cultura do
governo Jair Bolsonaro, foi execrada no Teatro da Liberdade, no centro de São
Paulo, onde fora assistir ao espetáculo “Clube da Esquina — os sonhos não
envelhecem”. Foi vaiada e praticamente enxotada do local aos gritos de “Fora,
Bolsonaro!”. Nas redes sociais, o episódio foi usado por bolsonaristas como
contraponto às agressões a Gil e Flora. Um não justifica o outro. Ambos são
deploráveis.
O cúmulo da insensatez aconteceu quando
Neymar sofreu uma lesão no tornozelo direito no jogo contra a Sérvia (ele
desfalcou o time por duas partidas). Em vez de votos de recuperação ao maior
craque da seleção brasileira, ganharam fôlego nas redes os ataques pessoais, a
ponto de o tópico com insultos a Neymar figurar entre os mais comentados do
Twitter. A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, reagiu com um “foi tarde”. Todo
esse ódio só porque ele fez propaganda para Bolsonaro durante a campanha.
Direito dele.
As odiosas patrulhas do pensamento não são
novas. Em 1989, Marília Pêra, uma das maiores atrizes que o Brasil já teve, foi
cercada e intimidada por apoiadores do então candidato do PT à Presidência,
Lula, quando saía de um teatro em São Paulo. Foi submetida a linchamento
público por ter declarado voto em Fernando Collor de Mello, que acabou vencendo
a eleição. Dona de um talento extraordinário, saiu-se com ironia: “Desculpem,
eu não sabia que não podia [votar em Collor]”.
O Brasil de sangue nos olhos deveria se
inspirar em exemplos de amor e solidariedade, como a lição inestimável dada
pela professora Iris Lippi. Por duas horas e meia, ela carregou no colo o bebê
de 3 meses da aluna Bruna Fidje, de 32 anos, para que ela pudesse fazer prova
numa faculdade de Sorocaba, em São Paulo. Sem ter com quem deixá-lo, Bruna o
levara para a sala de aula. “Até chorei, porque para mim não está sendo fácil
conciliar a faculdade com a maternidade, mas coisas assim renovam nossa fé na
humanidade”, disse ao portal g1. O profeta dos pilares encardidos de viadutos
do Rio de Janeiro pregava que “gentileza gera gentileza”. O ódio só gera mais
ódio.
Tarcísio emerge como liderança conservadora
natural pós-Bolsonaro
O Globo
Na escolha de sua equipe, governador eleito
de São Paulo demonstra ter noção do rumo político do país
O governador eleito de São Paulo, Tarcísio
de Freitas (Republicanos), começa a assumir um papel que lhe permitirá no
futuro, se desejar, tornar-se o rosto de um conservadorismo democrático,
distante da marca nefasta do bolsonarismo. Tem demonstrado na montagem de sua
equipe de governo a compreensão da nova situação política, uma vez que esteja
instalado no Palácio dos Bandeirantes — e que o presidente Jair Bolsonaro
esteja desalojado do Palácio do Planalto.
Apresentado por Bolsonaro como um técnico
quando assumiu o Ministério da Infraestrutura, Tarcísio revelou conhecer o jogo
político nos debates da campanha eleitoral contra o adversário Fernando Haddad,
do PT. Sem a agressividade tosca que define o “bolsonarismo raiz”, esse
candidato improvável venceu as eleições com votos bolsonaristas e antipetistas.
Começou a montar sua equipe de governo de olho no futuro, não no passado de
ministro bolsonarista. Afirmou no início da semana que jamais foi “bolsonarista
raiz” e que não quer “guerra ideológica” no seu governo. “O Brasil está muito
tenso e dividido, é preciso pacificar”, disse em entrevista à CNN Brasil.
Até agora, a única concessão que fez ao
bolsonarismo ideológico foi na escolha do deputado federal Capitão Derrite
(PL-SP) para chefiar a Secretaria da Segurança Pública. Linha-dura, Derrite
disse ser contra o uso de câmeras no uniforme da PM. Era o que também dizia o
próprio Tarcísio, até recuar alegando ser necessário avaliar os resultados.
Eles já existem e são eloquentes: segundo estudo da Fundação Getulio Vargas, a
ação de PMs com câmeras causa 50% menos mortes e 64% menos lesões. Espera-se
que Tarcísio respeite os fatos, assim como soube voltar atrás ao manter a
obrigatoriedade de servidores se vacinarem contra a Covid-19, indo contra os
ditames da cartilha bolsonarista.
Noutro ato de independência em relação a
Bolsonaro, anunciou Gilberto Kassab, ex-ministro de Dilma Rousseff e presidente
do PSD (partido da base parlamentar do futuro governo Lula), para o posto
estratégico de secretário de Governo. Também com a intenção de montar uma
equipe de ministeriáveis, convidou o ministro Paulo Guedes para ocupar sua
Secretaria de Fazenda. Guedes não aceitou, e o secretário será Samuel
Kinoshita, da equipe dele no ministério, responsável pela coordenação do plano econômico
do governador eleito no gabinete de transição. Outro nome de destaque que
afasta Tarcísio do bolsonarismo é Guilherme Afif Domingos, o coordenador-geral
da transição, também do PSD.
A preocupação em ter um secretariado mais técnico e o mais distante possível da polarização que rachou o país demonstra que Tarcísio compreendeu perfeitamente o novo momento da política brasileira. O país precisa de uma direita civilizada, capaz de defender suas ideias dentro das regras da democracia. Se mantiver o tom, o comando do maior estado da Federação fará de Tarcísio o ponto de referência natural para os conservadores legítimos, distantes dos lunáticos terraplanistas que idolatram Bolsonaro.
Haddad na Fazenda
Folha de S. Paulo
Escolhido precisa indicar planos; até aqui,
Lula só mostrou intenção de gastar
O tardio e por fim não
surpreendente anúncio de que Fernando Haddad comandará a Fazenda em
pouco reduz, por ora, incertezas e temores quanto à política econômica a ser
adotada pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Em primeiro lugar, porque a escolha parece
vinculada a cálculos políticos do partido com vistas à sucessão de Lula. Desde
2016, Haddad disputou a prefeitura paulistana, a Presidência da República e o
governo de São Paulo —sem obter vitórias, mas evidenciando a aposta da cúpula
do PT em seu nome.
Em segundo, porque ainda não há mais do que
especulações e informações de fontes anônimas a respeito do segundo escalão da
pasta. Dado que o futuro ministro não chegou a apresentar diretrizes
claras, a composição
de sua equipe tende a ser o sinal mais importante dos rumos a seguir.
Até aqui, Lula só foi assertivo na intenção
de expandir os gastos públicos. É o que se demonstra com a chamada PEC (proposta
de emenda constitucional) da Transição, aprovada por ampla maioria do Senado com
validade de dois anos.
A peça permite aumentos de despesas de no
mínimo R$ 145 bilhões anuais, com penduricalhos capazes de elevar o montante a
quase R$ 200 bilhões em 2023.
Entre eles estão a possibilidade de usar um
"excesso de arrecadação" —seja lá o que isso queira dizer— para
ampliar investimentos e a autorização para uso de recursos não reclamados no
PIS/Pasep.
No final das contas, cria-se uma folga
orçamentária muito maior que a necessária para viabilizar a permanência do
Auxílio Brasil (ou Bolsa Família) de R$ 600 mensais, de fato essencial, e o
prometido pagamento de R$ 150 adicionais para famílias com filhos pequenos.
Ao menos a PEC determina que em seis meses
seja apresentada uma revisão do regime fiscal, com novas regras que
substituirão o teto de gastos. É vital que Haddad apresente um mecanismo crível
para conter a escalada da dívida pública —ou o desequilíbrio orçamentário
paralisará novamente os investimentos e a economia, com alta do desemprego e da
pobreza.
Desde o final de outubro, os juros de
mercado subiram, e foi praticamente eliminada das expectativas a chance de
cortes da taxa do Banco Central no próximo ano.
Na quarta-feira (7), o BC divulgou a
decisão de manter a Selic no patamar elevado de 13,75% anuais, salientando que
está especialmente atento aos riscos fiscais.
O futuro ministro da Fazenda acertará se
der indicações rápidas de compromisso com a racionalidade econômica e a
responsabilidade orçamentária, seja com a escolha de seus auxiliares, seja na
negociação por uma PEC menos perdulária na Câmara dos Deputados.
Raízes de Tarcísio
Folha de S. Paulo
Governador eleito tem laços com Bolsonaro,
mas acerta ao se afastar da ideologia
O governador eleito de São Paulo, Tarcísio
de Freitas (Republicanos), tem dado sinais bem-vindos de que não transformará
sua gestão em plataforma político-ideológica do bolsonarismo.
Ex-ministro do governo que ora se despede,
o futuro mandatário paulista mantém laços incontornáveis com Jair Bolsonaro
(PL) e com o campo político que o projetou na corrida eleitoral, mas tem
evitado ser um porta-voz da militância e de teses radicais.
Ele próprio afirmou, em recente entrevista
à CNN, que não é um "bolsonarista raiz", deixando claro que seu
governo não servirá a batalhas culturais. As declarações despertaram reações
inflamadas entre apoiadores do presidente.
Tarcísio, de fato, nunca foi um ativista
ideológico. Sua presença no ministério deveu-se antes a questões gerenciais do
que à pauta reacionária de Bolsonaro. Antes, havia ocupado cargos importantes
nos governos Dilma Rousseff (PT) e Michel Temer (MDB).
O pragmatismo parece nortear a montagem da
administração, o que culmina na indicação de Gilberto Kassab (PSD) para a
Secretaria de Governo —trata-se de
político maleável a ponto de poder apoiar também o governo Luiz Inácio Lula da
Silva (PT) em Brasília.
Não há dúvida de que o governador eleito
situa-se à direita do espectro ideológico e está exposto às pressões do núcleo
bolsonarista.
Entretanto dá sinal de ser criterioso no
aproveitamento de nomes do governo federal. É o caso de Caio Paes de Andrade,
da equipe do ministro Paulo Guedes, que deixa a presidência da Petrobras para
assumir a pasta de Gestão e Governo Digital em São Paulo.
Mais problemática é a indicação do deputado
federal Guilherme Derrite (PL-SP), conhecido como Capitão Derrite, para a
Secretaria de Segurança Pública. Ligado a Bolsonaro, o parlamentar
suscita temores de que a gestão da área seja contaminada por bandeiras
ideológicas e corporativistas.
Um risco colocado desde já é que seja
abandonado ou desvirtuado o bem-sucedido programa de emprego de câmeras em
uniformes de policiais militares.
Seria irrealista imaginar que Tarcísio possa romper integralmente com o presidente da República prestes a deixar o posto, ao qual deve seu ingresso no mundo da política. As condições estão dadas, no entanto, para que conduza seu governo conservador aos padrões da normalidade democrática.
O PT quer manter a clientela
O Estado de S. Paulo
Petistas lutam pela gestão do Bolsa
Família, o grande ativo eleitoral do partido.
A Coluna do Estadão informou há poucos dias
que é forte a resistência de lideranças do PT a uma eventual nomeação da senadora
Simone Tebet (MDB-MS) como ministra da Cidadania, posição que a parlamentar
indicou que gostaria de ocupar no futuro governo.
O Ministério da Cidadania será responsável,
entre outras atribuições, pela gestão do programa Bolsa Família, um dos
principais ativos eleitorais do PT, sobretudo na Região Nordeste, razão pela
qual os petistas desejam manter a pasta sob estrito controle do partido.
Lideranças da legenda fazem o diagnóstico, não de todo infundado, de que a
visibilidade do programa social pode tornar a senadora sul-mato-grossense mais
conhecida nacionalmente, o que fortaleceria sua provável candidatura à
Presidência da República em 2026.
Malgrado o fato de ainda ser muito cedo
para especular quais serão os possíveis cenários de uma campanha eleitoral
marcada para daqui a quatro anos, algumas notas podem ser feitas sobre essa
movimentação do PT para manter intocado uma espécie de feudo que o partido
considera ser seu por direito.
É prerrogativa do presidente eleito Luiz
Inácio Lula da Silva nomear e exonerar ministros como melhor lhe aprouver.
Ademais, é legítimo que o PT, assim como qualquer outro partido político da
coalizão, articule em defesa de seus interesses na conformação do próximo
governo. O Ministério da Cidadania é apenas uma das pastas em disputa. Como o
Estadão revelou, os petistas cobram ainda as pastas da Saúde, da Educação, além
da Fazenda, a cargo de Fernando Haddad, e da Secretaria-Geral da Presidência.
No entanto, isso contraria a promessa de Lula de governar o País pela terceira vez
“com menos PT”.
A resistência do PT em ceder espaço de
poder privilegiado a uma aliada como Simone Tebet, que se entregou de corpo e
alma à campanha de Lula logo após a divulgação do resultado do primeiro turno,
revela, antes de tudo, que o partido não compreendeu o significado da frente
ampla montada para derrotar Jair Bolsonaro.
A frente “O Brasil Feliz de Novo” foi muito
mais do que uma coligação eleitoral. Tal como foi apresentada, tratavase de uma
promessa de coalizão de governo da qual o PT seria apenas uma das legendas
constitutivas. Tanto foi assim que, na noite de 30 de outubro, Lula afirmou em
seu discurso de vitória que aquele não foi um triunfo seu, nem tampouco do PT
ou dos partidos políticos que o apoiaram, mas antes a consagração nas urnas de
“um movimento democrático que se formou acima dos partidos, dos interesses
pessoais e das ideologias” representadas por cada uma das legendas da coalizão.
Uma coalizão de governo implica divisão real de poder.
Mas a incompreensão dos petistas acerca do
verdadeiro sentido daquela frente ampla é o menor dos problemas do PT. Subjaz
na frenética negociação nos bastidores da transição a preocupação do PT em não
perder uma clientela que o partido julga ser cativa: os milhões de
beneficiários do Bolsa Família, em especial no Nordeste. De fato, a marca Bolsa
Família é fortemente ligada ao PT, tanto que Bolsonaro fez de tudo, dentro e
fora da lei, para desvincular o Bolsa Família do partido de seu adversário.
Chegou a criar o mal-ajambrado Auxílio Brasil para auferir os mesmos ganhos
eleitorais pela exploração dos beneficiários. Para sorte do País, sem sucesso.
Um país com milhões de cidadãos vivendo
abaixo da linha da pobreza e convivendo diariamente com a dor da fome não pode
prescindir de um bom programa de transferência de renda.
Este jornal criticou não poucas vezes,
nesta página, o uso eleitoreiro do Bolsa Família pelos governos petistas,
quando o programa apresentava todos os contornos de uma descarada tática para
aprisionar milhões de cidadãos na dependência com o objetivo de manter Lula da
Silva e Dilma Rousseff no poder. Mas, uma coisa é transferência de renda;
outra, é a construção de uma relação clientelista entre a população mais
vulnerável e um determinado grupo político.
O PT tem o direito de pleitear o Ministério
que quiser na nova conformação da Esplanada. Não deve, contudo, fazê-lo pelas
razões erradas.
PNI, há 50 anos salvando vidas
O Estado de S. Paulo
Apesar de lanhado pelo choque pandêmico e
um governo obscurantista, o programa segue sendo referência mundial e mantém
todas as condições para vencer seus desafios
O Programa Nacional de Imunizações (PNI)
inicia seu quinquagésimo ano com uma história de sucesso e, após o maior teste
de estresse de sua história, imensos desafios.
O PNI foi criado para consolidar a tradição
vacinal brasileira iniciada na virada do século com Oswaldo Cruz e garantir à
população acesso a todas as vacinas recomendadas pela Organização Mundial da
Saúde (OMS). Seus primeiros objetivos foram o controle do sarampo, tuberculose,
difteria, tétano, coqueluche e pólio e a manutenção da erradicação da varíola.
Nos anos 80, deu seu grande salto, com os Dias Nacionais da Vacinação, tendo
como símbolo maior o mascote Zé Gotinha. Após a rubéola, o tétano e o sarampo,
a pólio foi oficialmente erradicada em 1994.
Com o Sistema Único de Saúde (SUS), o PNI
ganhou novo impulso, pautando-se pelo princípio da universalidade e equidade na
atenção, bem como pelo princípio organizativo da descentralização, atuando numa
rede articulada e hierarquizada, com metas e resultados regularmente
fiscalizados. O PNI distribui 48 imunobiológicos que abrangem todos os ciclos
da vida e protegem contra mais de 20 doenças, sendo recorrentemente citado como
referência pela OMS e a Organização Pan-Americana da Saúde.
Hoje, no entanto, o País enfrenta seu pior
momento vacinal. Em 2021, atingiu apenas 60% de cobertura na imunização geral
da população. Nenhuma das vacinas do calendário das crianças menores de 1 ano,
a fase mais vulnerável da vida, tem cobertura dentro dos parâmetros. O mesmo
vale para outros grupos etários. O risco de reemergência de doenças
erradicadas, como a pólio e o sarampo, é iminente.
As causas para esse cenário tenebroso são
multifatoriais. Desde 2016, a OMS alerta para uma redução global das coberturas
vacinais, seja pela complacência de uma geração já imunizada que parece ter se
esquecido da importância das vacinas, seja pela ofensiva de movimentos
antivacina, que têm disseminando desinformação e teorias da conspiração. Essa
cultura nefasta foi acentuada durante a pandemia, que ainda provocou rupturas
nas cadeias de distribuição de insumos e imunizantes.
O País não ficou imune a essa onda
disruptiva, com uma agravante: ao contrário de todas as nações de expressão
geopolítica e econômica, o Brasil foi a única nação a ter um chefe de Estado
que fez do obscurantismo uma bandeira política. Jair Bolsonaro sabotou todas as
etapas da batalha épica pelo desenvolvimento e distribuição de imunizantes
contra a covid. Além de influenciar certas franjas da população, sua postura
negacionista, associada a uma indefectível incompetência administrativa,
desestruturou o sistema de saúde, incluindo o PNI.
A integração entre os entes federativos e
as áreas de assistência social e educação está desarticulada. Nos últimos dois
anos, o orçamento do Ministério da Saúde caiu de R$ 209,9 bilhões para R$ 146,4
bilhões, o mais baixo desde 2014. O orçamento do Ministério de Ciência,
Tecnologia e Inovações encolheu um terço. Na década de 80, o Brasil chegou a
produzir 50% do Ingrediente Farmacêutico Ativo, que garante a eficácia dos
fármacos. Hoje, produz só 5%.
Em 1973, a criação do PNI representou uma
verdadeira ilha de sanidade. No auge dos anos de chumbo, essa conquista
civilizatória marcou uma impressionante concordância entre a sociedade civil e
o regime militar. Cinquenta anos depois, um capitão defenestrado do Exército,
com a ajuda de alguns dos quadros mais medíocres e retrógrados das Forças
Armadas (como o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello), perturbou como nunca
esse consenso. Mas o País ainda conta com uma história de conhecimento
acumulado para produzir e distribuir vacinas. Precisará de um choque de gestão
e recomposição orçamentária – um dos maiores desafios do novo governo – e,
acima de tudo, de uma mobilização da sociedade para revigorar sua cultura
vacinal, corporificada no PNI. Por mais dilapidado que tenha sido, esse
patrimônio se mantém rico e pronto para ser inoculado com novas energias
cívicas para avançar em sua missão saneadora por mais 50 anos.
Consequências do atraso do Censo
O Estado de S. Paulo
Falta de dados precisos, que deveriam ter
sido levantados em 2020, dificulta redistribuição de fundos federais
O atraso no cálculo da fatia que cada um dos
quase 5.600 municípios brasileiros terá do Fundo de Participação dos Municípios
(FPM), principal fonte de receitas para boa parte deles, é, no momento, a
consequência mais visível da impossibilidade de conclusão do Censo Demográfico
ainda em 2022.
O atraso do Censo, que deveria ter sido
realizado em 2020, retrata não apenas o modo irresponsável com que o governo
Bolsonaro tratou o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que,
apesar do histórico de seus trabalhos e da importância de seu acervo, chegou a
ser chamado de burocrático e incompetente quando aferiu dados que desagradaram
aos ocupantes do poder. É, na essência, o retrato do próprio governo prestes a
terminar, que se mostrou incapaz de reconhecer a relevância das informações
geradas pelo IBGE e por outras instituições oficiais de pesquisa e de conduzir
outras políticas públicas de maneira consistente.
A pandemia de covid-19 impediu a realização
do Censo em 2020, como deveria ter sido, pois esse levantamento é realizado a
cada 10 anos (o anterior é de 2010). Dificuldades na gestão orçamentária que
marcaram a administração de Bolsonaro não permitiram que o trabalho fosse
realizado em 2021. Mesmo no início de 2022 persistiam dúvidas se haveria, de
fato, recursos para que, afinal, o Brasil conhecesse com precisão o tamanho de
sua população e sua distribuição pelo território nacional.
O IBGE preparou-se para realizar o Censo de
acordo com os limites impostos pelas restrições orçamentárias, programando o
prazo de três meses para a conclusão dos trabalhos de campo. Iniciados em
agosto, esses trabalhos já deveriam estar encerrados. Mas dificuldades na
contratação de recenseadores em número suficiente num período em que o mercado
de trabalho mostrava uma melhora surpreendentemente intensa em algumas regiões
retardaram a pesquisa. Além disso, houve problemas no pagamento dos
recenseadores, por atraso na liberação das verbas destinadas a essa finalidade,
que resultou em paralisação parcial dos trabalhos. Assim, o Censo só deverá ser
concluído em 2023.
São problemas conjunturais que se somam aos
criados pelo modo como, desde seu início em 2019, o governo Bolsonaro
administra os recursos orçamentários, privilegiando setores de seu interesse
político e ideológico e ignorando ou desprezando as dificuldades enfrentadas
por outras unidades ou órgãos públicos, como as universidades e os centros de
pesquisa, como o IBGE.
A instituição tem prazo até 26 de dezembro
para entregar ao Tribunal de Contas da União (TCU) a população de cada
município brasileiro, pois é com base nessa informação que o órgão de contas
calcula o porcentual do FPM a que cada prefeitura terá direito quando esses
recursos forem distribuídos pela União.
Informações demográficas precisas são
indispensáveis também para o planejamento de outras ações de um governo
preocupado com as reais necessidades da população, bem como para os planos de
expansão e investimentos de empresas privadas.
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