O processo seguiu seu curso sob a égide de
uma PEC maximalista. Além de desdenhar os aliados do segundo turno na definição
de diretrizes da transição e do novo governo, o partido e o campo político do
presidente eleito propuseram ao Congresso uma PEC – opção já em si
politicamente custosa, pelo alto quórum necessário para aprová-la – de conteúdo
ambicioso e difícil aceitação nas condições concretas da situação financeira da
União.
Em “Sentido e limites da transição e da
transigência”, de 19 de novembro, transmiti preocupações com
o custo de uma escolha política como aquela, tanto para o equilíbrio
orçamentário do Estado, como para a qualidade das relações políticas entre
Executivo e Legislativo. Elas requerem mudança significativa de objetivos e de
métodos, após a promiscuidade imperante durante os dois anos finais do governo
atual. O maximalismo da PEC induz a barganhas ainda mais vultosas, para
corresponderem à ambição da proposta e, com isso, estimula a ampliação de
práticas intransparentes, cujo maior emblema vem sendo o orçamento secreto. Diante
da magnitude da aposta da PEC, havia no horizonte o risco de ele ser
legitimado, ou até mesmo constitucionalizado, pela negociação. Apesar do
aumento da apreensão, o tom do artigo ainda era de indagação. A articulação
política do novo governo apostaria na interdição judicial do orçamento secreto,
cozinhando Arthur Lira em banho-maria ou “num entendimento e numa negociação
política em bases mais razoáveis, com atores institucionalmente mais
responsáveis, em especial partidos políticos?” (..) A escolha posta como
questão na referida análise é sobre quem seria o interlocutor preferencial de
Lula: se o campo liberal, defensor de limites de natureza fiscal, ou a turma do
dito centrão, com seu saco de bondades. A escolha expressaria a diferença entre
uma política de coalizão e uma de captação e cooptação. Procurei, inclusive,
mensurar as possibilidades de haver, no Senado e na Câmara, espaço para essa
escolha. Com base nesses dados, opinei que havia espaço, sim, contra afirmações
de fontes da transição de que seria compulsório tratar Lira não só como interlocutor
inicial, mas como preferencial, único capaz de garantir ao novo governo recursos
emergenciais para a emergência social. E concluía que “a rota segura parece
ser apostar fundo numa negociação consistente no Senado, que ligue o varejo a
um pacto partidário e previna resvalo para más práticas políticas na Câmara”.
Isso requeria autocontenção do PT e seus tradicionais parceiros na esquerda diante
do fato de que Lula governará um país cujo eleitorado é majoritariamente
conservador. Por isso, imperativo é a coalizão. E preocupante ver que não se
caminha para ela, mas para um governo cujos pilares simbólicos tendem a ser a
crença no carisma do líder e na mística do PT. Duas apostas de difícil êxito se
se tiver em conta o perfil atual do eleitorado brasileiro.
Essa consciência realista nunca esteve ausente em falas moderadas paralelas, emitidas também de dentro da equipe de transição, como a do vice-presidente eleito - que formalmente a coordena - e mesmo as de alguns próceres petistas. O paralelismo de falas em direções distintas e a demora de atos concretos que fossem além da retórica para dissolver apreensões (ainda não havia começado a divulgação de nomes do futuro governo) motivou, duas semanas depois, um terceiro artigo da coluna sobre o mesmo assunto.
Em “A política voltou, a moderação ainda
não”, de 3 de dezembro, quando já haviam se passado quatro semanas de
transição, o foco
do novo governo seguia sendo a aprovação da sua PEC, interpretada como
caminho único. Uma discussão de meios foi artificialmente assumida como questão
de princípio. O formato da PEC e seu conteúdo vendidos como imperativos das
urnas, a configurarem compromissos eleitorais indeclináveis, quando o que era
na verdade indeclinável poderia ser atendido por distintas vias. Cada vez mais
vozes abalizadas vinham a público dizer que para cumprir seus compromissos
eleitorais o governo
não precisava de uma PEC. Aos poucos foi se erodindo, no debate público, o
consenso quase automático inicialmente dado em torno da narrativa dos
articuladores do presidente eleito. O
artigo mencionado acima analisou dois argumentos substantivos da proposta
maximalista: a urgência da fome e a inviabilidade proposta de Lei orçamentária
(LOA) enviada ao Congresso pelo atual governo e os classificou como duas meias
verdades. Afirmando como fato que a fome e a situação de miséria de muitos
brasileiros são, sim, uma prioridade emergencial, acima de qualquer outra, no
entanto, lembrou que 105 dos 175 bilhões necessários ao financiamento [do
Programa Bolsa Família] estão contemplados no projeto de LOA e indagou por que
retirá-los para tê-los fora do orçamento. Quanto ao projeto de LOA, seu caráter
problemático não anula que “não há até aqui clareza sobre o montante das
lacunas emergenciais que os cortes e manipulações causaram”.
A ignorância pública sobre as lacunas provinha
- e ainda hoje provém – do fato de que críticas recorrentes sobre a LOA não são
acompanhadas de explicitação quantitativa dos impactos negativos concretos da
irresponsabilidade do governo atual sobre as rubricas orçamentárias. Decisões sobre
prioridades de mudanças no projeto ainda não foram discutidas formalmente no
Congresso e são desconhecidas do público. No artigo de duas semanas atrás, este
colunista comentava que a equipe de transição já havia gasto com a negociação
da PEC semanas que poderiam ser usadas para avaliar o projeto de LOA e negociar
mudanças e ampliação extraordinária do teto de gastos não só para o Bolsa
Família como também para cobrir as lacunas identificadas. No início de dezembro, assim como hoje, não
cabia julgar intenções, mas constatar um cronograma político confuso, baseado numa
PEC que, tendo a ambição que tem, só teria chance de passar como está num
congresso de companheiros, o que não é o caso”. Por isso estimava que “a duas semanas do
recesso é quase certo não haver mais tempo hábil para a discussão mais
substantiva sobre quais alterações fazer no projeto de LOA (...) A
intransparência será o outro lado da moeda do improviso”.
Agora, passadas mais duas semanas, os
tempos dos verbos já precisam mudar de futuro para passado e presente.
Inexistiu discussão substantiva da LOA e a imprevisibilidade da cirurgia a que
se vai submetê-la já é fato consumado. O tempo hábil para tal discussão acabou
e só há tempo para o improviso. E a PEC – em nome da qual tudo o mais se
postergou – foi aprovada com folga e algumas alterações no Senado, mas está
emperrada na Câmara. Compreender como e por que isso está se dando é o desdobramento
que se apresenta para a continuidade da análise do mesmo processo político. O
sentido dessa discussão não é o receio de que o processo fique insolúvel. Pela
política vai acabar saindo alguma solução. O sentido é avaliar os teores de
oxigênio e gás carbônico que se acumulam do novo ambiente político.
O
reforço ainda maior da posição de barganha de Lira dá-se porque, na medida em
que entendimentos com presidentes de partidos recém-aliados como Baleia Rossi,
do MDB, Gilberto Kassab, do PSD e Carlos Luppi, do PDT (citei apenas os
maiores) e mesmo com partidos mais próximos, como PSB, PCdoB e PSOL foram
postergados por semanas enquanto Lula e seus porta-vozes abriam negociações com
o presidente da Câmara. O raciocínio pragmático óbvio que passa a imperar entre
parlamentares das bancadas desses partidos é que sob a batuta de Lira aumentam
suas chances de obter espaço no futuro governo. O resultado é Lira
apresentar-se como líder de uma centena e meia de deputados, muitos dos quais
já poderiam estar na base governista se Lula concedesse prioridade e
anterioridade ao objetivo de armar uma coalizão de fato e já partir com ela
para a negociação com Lira, numa conversa mais reta e plenamente possível, na
medida em que, na coalizão com os partidos da base, ficasse patente e fora de
barganha o apoio de todos à reeleição do presidente da Casa. Mas a
terceirização adicional da barganha em torno de outros temas - como a PEC e a
montagem do governo - em favor de um político até ontem adversário e que
preside outro Poder foi imprudência cuja explicação pode estar nos objetivos de
Lula, tema sempre sob penumbra. Mais uma vez a explicação da complicação do
jogo oscila entre intenção e erro. Além da imprudência tática (ou de objetivo
tático alternativo ao de montar governo de coalizão) pode-se notar um equívoco
estratégico, que é privilegiar parlamentares individualmente, ou mesmo
bancadas, em relação a partidos numa quadra de reestruturação da política
brasileira em que direções partidárias adquirem – por razões que não vêm ao
caso aqui – um papel de maior protagonismo.
Já
o papel dificultador que a forma e o conteúdo da PEC vêm tendo sobre a
organização e a orientação da base do futuro governo só agrava o problema
criado com o arredamento dos partidos. Cedendo menos do que poderia ter cedido
na negociação mais límpida ocorrida no Senado, o futuro governo passou a se
entender com a Câmara montado numa proposta com vários fios esgarçados. As
críticas que partem de personalidades e setores ligados, acadêmica ou
operativamente, ao campo da economia
reduzem os custos políticos de quem deseja se opor ou ao menos
desidratar bastante a PEC na Câmara, incluída aí a futura oposição de direita,
bolsonarista ou moderada. Ouvir um pouco
mais os conselhos de senadores experientes e de espirito público, como Jose
Serra, Tasso Jereissati e Simone Tebet poderia ter livrado os articuladores do
futuro governo de certos constrangimentos na Câmara. O alerta de Serra foi
preciso quando escreveu que a escolha preferencial pela interlocução com a liderança
mais conservadora do Congresso, negociando com ela antes de se entender
objetivamente sobre o mérito da coisa com qualquer outra força, daria dor de
cabeça ao futuro governo. De fato, durante essa última semana, com o
emperramento da PEC na Câmara, instalou-se uma sensação de que estamos entrando
numa roleta russa que será decidida a favor de quem for mais esperto, se Lula
ou Lira.
Dá
para ver que os dias mais recentes foram mais adversos para os planos de Artur
Lira, graças à intervenção de terceiros atores como o STF, o presidente do
Senado e segmentos da sociedade civil no desarmamento de dois petardos
desqualificadores da política, armados nos setores mais fisiológicos da Câmara,
em relação aos quais o presidente eleito teve conduta entre a ambiguidade e a
cumplicidade. Ambiguidade quanto ao orçamento secreto, cuja sobrevivência
ganhava espaço com a justificativa de que seria uma concessão inevitável dentro
da lógica de que vale (quase) tudo pela PEC. Isso, entretanto, sem descartar
que Lula estivesse ganhando tempo à espera da mão salvadora de Rosa Weber. Nem
tanto ao mar, nem tanto à terra, movimentos concatenados entre o STF e o
presidente do Senado fizeram com que um sólido voto da ministra ganhasse apoio
suficiente para ameaçar os planos de Lira e um adiamento da decisão por alguns
dias deixando pendentes os votos de dois de seus mais experientes colegas desse
tempo a que Pacheco articulasse no Senado uma Resolução que abandona o
essencial do orçamento secreto sem, contudo, dar de presente ao governo Lula 3
a simples anulação, que lhe devolveria o controle do orçamento em bases de uma
volta ao status quo da época dos lulas 1 e 2. A votação de sexta-feira
no Senado deve levar a votos conciliadores de Ricardo Lewandowski e Gilmar
Mendes no STF. Com isso vai embora boa parte da intransparência mas preserva-se
influência forte do Legislativo, uma mudança da década passada nas regras do
processo orçamentário, que veio para ficar.
No
outro tema explosivo – o desvirtuamento da Lei das estatais – a cumplicidade
flagrante das partes, no caso, a atual cúpula da Câmara e o futuro chefe do
Poder Executivo, produziu resultado legislativo instantâneo, mas o suposto
sucesso da conspiração não durou 24 horas. A difusa, intensa e negativa
repercussão na opinião pública logo mobilizou a bancada do partido de Lula no
Senado para desfazer o que a da Câmara havia feito sob bençãos do presidente
eleito, a batuta de Lira e em articulação ecumênica com quase todas as demais
bancadas. No Senado o PT entrou em sinergia com bancadas relevantes do centro,
como as do MDB e PSDB e, juntas, respaldaram a atitude do presidente Pacheco
que, também nesse episódio, agiu na contramão de Lira, jogando para diante –
espera-se que para as calendas – uma matéria que seria um seríssimo retrocesso
numa reconstrução institucional. A Lei das estatais é obra de elite política
concreta, inspiração de um centro democrático que parecia ter se formado, como
algo sólido, logo após o impeachment de Dilma Rousseff. Como se sabe,
essa expectativa mais geral não se confirmou, mas no caso do tratamento das
estatais, Governo e Congresso fizeram, em 2016, a coisa certa, mesmo estando
(ou porque estavam) sob fogo cerrado da antipolítica da Lava Jato. Essa lei foi
um dos sinais de que se começava ali a reconstruir o que se havia
desmoralizado. Uma obra de política republicana que sobreviveu à onda
desinstitucionalizante do governo Bolsonaro.
A
partir da próxima semana (a última semana útil antes da posse de Lula) parece
que serão criadas condições para afastar um terceiro problema embaraçoso para o
presidente eleito, qual seja o aumento da influência de Artur Lira na montagem
do governo. Os revezes da última semana podem levar, ou não, o poderoso
deputado a pisar mais leve nos terrenos de outros atores políticos e a
valorizar, enquanto é tempo, sua alta chance de reeleição, que se mantém. Assim
como os entraves e sobressaltos das últimas semanas podem levar, ou não, Lula a
montar, afinal, um governo de coalizão que mereça esse nome.
O
argumento do realismo político vem até aqui sendo mobilizado para justificar atalhos
em vez de alianças, improvisos espertos em vez de soluções políticas e até uma
eventual redução das relações Executivo/ Legislativo ao tipo de interação a que
elas chegaram sob Bolsonaro. Tudo isso assentado na dupla falácia de que é
inevitável ser assim e de que são recuos feitos em nome da PEC. Mudar essa rota
argumentativa não é (apenas) uma questão moral. É questão de, em vez de
perpetrar ou consentir agressão populista à política republicana em nome de uma
"verdadeira" democracia voltada aos pobres, assumir a missão
sistêmica de resolver o déficit de república que faz sofrer a nossa
ampla democracia. Já
diplomado, não dá para Lula se ater ao palanque, por mais que saibamos que
descer dele plenamente é algo que não ocorrerá, por contrariar a sua
“natureza”. Mas sempre é possível moderar os instintos.
*Cientista político e professor da UFBa.
O fato de vir pessoas sempre as mesmas do PT desilude bastante. Esperamos com excitação conhecer novos auxiliares em quem colocaremos nossas esperanças de realizações porque já sabemos tudo sobre essas caras velhas, velhas cara. Mais do mesmo? As mazelas por que já passamos e julgávamos passadas, o despertar de nova desilusão e falta de confiança sabemos nós. Por essas e outras ainda está para nascer um político confiável. Para mim, no país, só teve Itamar Franco e mais ninguém .
ResponderExcluirOs 2 governos anteriores de Lula tiveram muitos avanços e vários problemas. Parece que Lula quer reeditar o que fez antes, e já estará satisfeito se conseguir isto. Seria o suficiente pra ser MUITO MELHOR que o DESgoverno Bolsonaro, mas ainda seria pouco e decepcionaria parte significativa de quem o elegeu.
ResponderExcluirPorque falei que o Putin foi chofer de táxi e o Maduro chofer de ônibus me bloquearam, no entanto, o Lula chamou o presidente da Ucrânia de ator e não recebeu censura do Times Magazine.
ResponderExcluirQue tipo de censura é essa, que eu não entendi? Referia que a sede de poder não tem distinção e o Lula discriminou a profissão de ator quando disse que o Zelinky
Zelensky queria aparecer porque era um ator. Isso eu chamo de excesso de pudor.
ResponderExcluirÉ sempre mais do mesmo - E que artigo lonnngo,ufa!
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