Valor Econômico
Gastança financeira versus gastança fiscal,
eis o debate
Para um homem que tem um martelo na mão,
tudo parece prego. Não é porque o Federal Reserve tem um martelo que vai sair
por aí destruindo a economia.
O parágrafo acima é do economista americano
Joseph Stiglitz, inspirado em frase do psicólogo também americano Abraham
Meslow (1908-1970). Em artigo recente, Stiglitz detonou o Fed e outros bancos
centrais que, a pretexto de domar a inflação, estão anunciando novos aumentos
de juros, insensíveis às previsões de uma possível recessão econômica global.
O aperto monetário, segundo o economista, que ganhou o Prêmio Nobel em 2001, deixará cicatrizes duradouras, causará mais sofrimento que benefícios e atingirá principalmente os pobres nos Estados Unidos e pelo mundo afora. A inflação global já está diminuindo e continuará nesse ritmo mesmo sem mais aumentos de taxas de juros. Apesar da continuidade da guerra na Ucrânia, os preços do petróleo também estão em queda e o mesmo ocorre com automóveis e outros produtos dependentes de chips fabricados nas cadeias globais de abastecimento.
Stiglitz refuta o argumento de que a
inflação de hoje se deve aos gastos excessivos com a pandemia e de que para
reduzi-la seria necessário promover recessão e desemprego. Diz que a inflação
não foi impulsionada pela demanda, porque isso só ocorre quando a demanda
agregada excede a oferta agregada potencial, o que não é o caso atual. “A pandemia
deu origem a inúmeras restrições setoriais de oferta e mudanças de demandas que
se tornaram os principais motores do crescimento dos preços.”
É bom prestar atenção nesse conflito dos
juros lá de fora porque ele certamente vai voltar em breve à pauta brasileira.
Nos últimos anos, com as taxas baixas fixadas pelo Banco Central,
principalmente no auge da pandemia, o assunto sumiu do debate. Ontem, em artigo
no Valor, o
economista André Lara Resende já deu um sinal: protestar contra gastos
autorizados pela PEC da Transição, que alguns chamam de PEC da Gastança, e
simultaneamente defender a manutenção das absurdas taxas de juros fixadas pelo
Banco Central é algo que desafia a lógica. “As despesas públicas, sejam elas
primárias ou vinculadas ao serviço da dívida, expandem a demanda agregada e
podem vir a pressionar a inflação.”
Com a autonomia recebida por lei, nos dois
últimos anos o Banco Central nadou de braçada no ambiente econômico
ultraliberal do governo Jair Bolsonaro, usando o seu martelo com liberdade
total e praticamente sem contestações. A Selic, taxa básica, foi elevada de 2%
ao ano em meados de 2020 para os atuais 13,75%.
Agora, os pregos ameaçados começam a se
precaver. O proximo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem um temperamento
moderado e civilizado, mas está longe de discordar da ideias de Stiglitz e Lara
Resende. Claro que ele e sua turma nem sonham em contestar a concessão de
autonomia ao BC, mas certamente não ficarão quietinhos em seus cantos se a
autoridade monetária se mostrar, na expressão de Stiglitz, com uma
“determinação inabalável” de manter os juros elevados enquanto a economia
caminha para a recessão.
Os juros no Brasil estão bastante altos, os
maiores do mundo. A taxa real, que o economista do Valor Robinson Moraes
calcula todas as segundas-feiras, está em 7,88% quando medida pela diferença
entre o Swap 360 (13,56%) e a previsão da mediana do IPCA (5,27%) para 12
meses. Há um ano, a taxa real era de 6,70% e há dois anos era negativa, de
-0,30%.
Preparemo-nos, portanto, para a volta do
debate acalorado sobre os juros. A ala heterodoxa, que deve dominar o novo
Ministério da Fazenda a partir da próxima semana, vai sempre achar que as taxas
estão altas demais. E o competente presidente do BC, Roberto Campos Neto, terá
dias menos tranquilos.
O jogo nessa área, em geral, é pesado. Para
Campos Neto, assim como aparentemente para os presidentes de Bancos Centrais do
mundo desenvolvido, é necessário evitar um aumento muito significativo do
consumo interno, porque a inflação continua a ameaçar a economia. A heterodoxia
pensa diferentemente. Entende que a atual política monetária brasileira
transfere impunemente trilhões de reais para bancos e rentistas e cita números.
Em 2021, por exemplo, com a alta da taxa Selic, o governo federal gastou R$
1,96 trilhão com o pagamento de juros e amortizações da dívida pública.
Sozinho, o Tesouro Nacional gasta mais que as áreas de saúde, educação,
previdência, ciência, tecnologia, e segurança juntas. Cerca de 50% do orçamento
federal foram destinados a pagar despesas a rentistas, principalmente
instituições financeiras e fundos de investimentos. Apesar disso, a dívida
pública aumentou cerca de R$ 700 bilhões, passando de R$ 6,9 trilhões para R$
7,6 trilhões.
Depois dos juros, que levam metade do
orçamento, a segunda maior despesa da União é com a Previdência Social, que
consome cerca de 19,6%. Assim, dizem os heterodoxos, o filé mignon dos recursos
da sociedade vai para o bolso dos rentistas.
Claro que essa gastança financeira incomoda
o novo governo, principalmente num momento em que precisou empenhar o capital
político adquirido nas urnas para implorar ao Congresso a aprovação de um
“extrateto” de até R$ 169 bilhões que venha a suprir despesas do Bolsa Família
e de alguns investimentos urgentes em áreas sociais.
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Nesse ponto da discussão, cabe citar duas
perguntas de Joseph Stiglitz que o professor Lauro Gonzales leu para seus
alunos na FGV: os juros mais altos aumentarão a oferta de chips ou a oferta de
petróleo? Reduzirão o preços dos alimentos? O próprio Stiglitz responde: claro
que não. Ao contrário, os juros mais altos dificultarão a mobilização de
investimentos que poderiam aliviar a escassez de oferta.
A regra vale para o Brasil. Juros altos
pouco farão para reduzir a inflação, que não é de demanda, mas serão fatais
para inibir investimentos, crescimento da produção e geração de empregos. Não
existe investimento que se justifique quando a aplicação financeira dá um
rendimento real de quase 8% ao ano. O Banco Central, acusado pela gastança
financeira, está de olho na gastança fiscal, que poderá empurrar a inflação
para longe das metas. E o BC só tem um instrumento para combatê-la, a taxa de
juros. Vai continuar usando o martelo. Os pregos e similares que se defendam.
Vem aí a nova batalha dos juros.
Lendo e aprendendo.
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