quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

Míriam Leitão: A conspiração contra as crianças

O Globo

As crianças brasileiras de 5 a 11 anos poderiam voltar às aulas em fevereiro já vacinadas, com duas doses, mas o governo não quis e continua não querendo vaciná-las. A entrevista de ontem no Ministério da Saúde em que, derrotado, o governo teve que incluir essa faixa etária no Programa Nacional de Imunização, foi um show de hipocrisia e dissimulação. Rendidos, ainda assim os integrantes da cúpula do Ministério, Marcelo Queiroga à frente, continuavam tentando espalhar as mesmas mentiras, incutir o medo, criar exigências descabidas.

O secretário de vigilância em saúde, Arnaldo Medeiros, mostrou dados para explicar que o número de infecções em crianças caiu. Ora, caiu porque houve um aumento da vacinação na população em geral e, portanto, queda da circulação do vírus.

A secretária extraordinária de Enfrentamento à Covid do Ministério da Saúde, Rosana Leite disse que houve muitas “demandas” e por isso eles “abriram o debate". Na verdade, eles inventaram uma audiência pública que nunca ocorreu no Programa Nacional de Imunização (PNI) para protelar ao máximo a vacinação das crianças. A secretária também disse que é “imprescindível” que se consulte um médico antes de vacinar. Não exigiram porque sabiam que a Justiça derrubaria, mas ela usou estrategicamente a palavra “imprescindível”. Nesse Brasil desigual, consultar um médico é fácil para os ricos e a classe média, mas não para os pobres."

Luiz Carlos Azedo: Lula aposta no confronto com Bolsonaro, centro não se unifica

Correio Braziliense

A aliança entre setores social-democratas, liberais e conservadores comprometidos com o Estado democrático de direito hoje não se materializa, porque nenhuma liderança foi capaz de traduzi-la.

O artigo do ex-ministro da Fazenda Guio Mantega sobre a política econômica do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, publicado ontem na Folha de São Paulo, na verdade um resumo do que pensa o grupo de economistas que o assessoram, desconectou o projeto petista do colapso econômico do governo Dilma Rousseff em 2015, o que despertou grande polêmica entre analistas e economistas. Ao mesmo tempo, demarcou claramente a candidatura de Lula como um projeto de esquerda, que batizou de social-desenvolvimentista, e não de centro-esquerda.

A narrativa de Mantega emula com o discurso nacional-desenvolvimentista do candidato do PDT, Ciro Gomes; ao mesmo tempo, aparta o projeto petista dos setores que defendem uma política social-liberal e de plena integração à economia mundial, o que pode facilitar a vida dos demais candidatos que lutam por um lugar ao sol na chamada terceira via: Sergio Moro (Podemos), João Doria (PSDB), Simone Tebet (MDB), Rodrigo Pacheco (PSD) e Alessandro Vieira (Cidadania). Essa agenda conta com certo consenso entre os agentes econômicos, porém, não sensibiliza o eleitorado, porque não enfrenta o problema das políticas públicas universalistas, do desemprego, da precarização do trabalho e das injustiças sociais.

William Waack: Uma mãozinha

O Estado de S. Paulo

As circunstâncias não são ruins para os adversários de Bolsonaro e Lula, mas falta ação

A última vez em que um candidato apostou com sucesso que as várias circunstâncias o ajudariam foi Bolsonaro em 2018. Assim mesmo, ele se empenhou em empurrar as circunstâncias a seu favor (via uso das redes sociais) e teve a facada como um imponderável decisivo (a política é o campo do imponderável). Só que 2018 não se repete, é o consenso geral entre analistas e agentes políticos.

Por isso é que jogar parado como Lula faz é uma tática arriscada sobretudo contra o tempo. Aparentemente o calejado estado-maior petista acha que tudo converge para uma vitória até em primeiro turno. Os “empurrões” (a mãozinha ajudando os fatos) são absolutamente previsíveis: acenos ao difuso “centro” (via Alckmin) e o apelo à memória de tempos melhores (como se sabe, nada muda mais do que o passado).

O problema para o cálculo político dos adversários de Lula e Bolsonaro é, em primeiro lugar, estabelecer se as circunstâncias estão atrapalhando ou ajudando as diversas candidaturas. Bolsonaro se esmera em reiterar o que tem de pior em termos de imagem, e Lula o que se espera de pior em termos de falta de ideias para tirar o País da estagnação (como demonstra sua opção de porta-voz para assuntos econômicos). Mas é essa a percepção geral do eleitorado? Ou só da minúscula parcela dos que se dedicam profissionalmente à política?

José Augusto Guilhon Albuquerque*: Tem Moro na costa

O Estado de S. Paulo

Seriam as expectativas otimistas suficientes para ele ter sucesso em montar uma candidatura com reais chances de ser competitiva?

Para os portugueses da época das invasões mouriscas, a presença de mouros na costa era, evidentemente, prevista, mas como, quando e onde tentariam o desembarque era imprevisível.

Que o ex-juiz da Lava Jato, Sergio Moro, poderia retomar sua breve carreira política estava previsto. Mas não era previsível como, quando ou onde ocorreria, nem muito menos que faria tábula rasa da pré-campanha eleitoral.

O retorno de Moro provocou um choque de realidade no processo sucessório, porque mostra que nem a reeleição de Bolsonaro nem a volta de Lula estão garantidas. Alguns candidatos, partidos e “analistas” deram sinal de alívio ou de esperança, outros se mostraram desapontados ou enraivecidos.

Com base no que tenho observado e compartilhado neste espaço, a entrada de um candidato competitivo na chamada terceira via poderia desacreditar a tática da polarização e, com isso, reduzir a pulverização do espaço da de centro. Minha hipótese é de que a polarização entre os extremos, somada à pulverização dos moderados, é o que abre caminho para candidatos aventureiros.

Roberto Macedo*: Cenário do PIB em 2022 é pior que resultado de 2021

O Estado de S. Paulo

Previsão do Boletim Focus para a variação do produto deste ano vem caindo, e a queda desta semana foi bem mais forte.

O primeiro Boletim Focus, do Banco Central, de 2022, publicado na segunda-feira passada, revelou cenário mais difícil para o Produto Interno Bruto (PIB) deste ano do que o observado em 2021. O boletim é semanal e suas previsões são colhidas de analistas do mercado financeiro, na sexta-feira anterior à sua publicação.

A previsão para a variação do PIB de 2022 deste boletim é de apenas 0,36% – na semana anterior, estava em 0,42%, e há quatro semanas era de 0,51%. Ou seja, vem caindo, e esta última queda foi bem mais forte.

Quanto a 2021, a previsão é de uma taxa de 4,5%, mas é enganosa quanto ao desempenho do PIB dentro do ano. Ela é calculada usando o PIB previsto para 2021 relativamente ao de 2020, ou seja, entre esses dois anos. Como em 2020 o PIB caiu 3,9%, essa queda faz com que a comparação entre 2021 e 2020 leve a uma taxa bem mais alta do que a que ocorreria se o PIB houvesse permanecido estável em 2020. Vista de outra forma, a taxa de 4,5% é mais determinada pela queda do PIB de 2020 do que pelo seu fraco desempenho em 2021.

Everardo Maciel*: A decadência do Estado brasileiro

O Estado de S. Paulo

Planejamento governamental não há mais. Tudo é improviso de má qualidade

Nunca tivemos um estado modelar, mas tivemos sucesso, embora nem sempre duradouro, em alguns setores. 

Nos últimos tempos, entretanto, percebe-se um processo contínuo e crescente de degradação institucional. Neste artigo, aponto algumas evidências dessa degradação, para a qual concorrem fortemente o corporativismo e o arbítrio.

O poder pessoal conferido a autoridades, em órgãos de deliberação colegiada, em tudo se assemelha a um absolutismo extemporâneo. 

Decisões monocráticas permitem dar curso ou não, sem fundamentação, a processos de impeachment de autoridades, pautar votações, audiências ou julgamentos, obstruir processos judiciais, mediante desarrazoados pedidos de vista, e conceder liminares que se eternizam. Tudo isso com respaldo em regimentos que se prestam a qualquer interpretação, mesmo quando contrária à lei. 

Bruno Boghossian: Exibição controlada

Folha de S. Paulo

Ex-presidente emite poucos sinais sobre agenda, com foco em eleitor de baixa renda e na classe média

Lula apresentou um esboço das bases de seu plano econômico numa entrevista coletiva no início de outubro. "Eu quero um Estado com força para que ele seja o indutor do desenvolvimento. Um Estado que não tenha preocupação de fazer dívida para investir num ativo produtivo para este país", disse.

O PT rejeita a ideia de anunciar publicamente um assessor econômico para a candidatura de Lula, com o argumento de que o próprio ex-presidente será o responsável por esse capítulo do programa. Ele mesmo já repetiu os pilares dessa agenda em declarações feitas nos últimos meses: investimento público e ampliação de gastos sociais, com o equilíbrio fiscal em segundo plano.

Ruy Castro: Os esbirros de Bolsonaro

Folha de S. Paulo

Não confundir com espirro, esporro, esparro ou esbarro. Esbirro é jagunço, e o governo está cheio

—Às vezes falo aqui nos esbirros de Jair Bolsonaro. Já foi uma palavra comum na imprensa, mas ficou fora de moda, daí leitores me perguntarem o significado. Houve quem a confundisse com espirro, sem saber que, achando repulsivos os espirros de Bolsonaro, eu jamais macularia esse espaço com eles. Para outros, talvez eu quisesse escrever esporro, o que faria sentido —nunca houve presidente tão estúpido e dado a governar por esporros. E ainda outros arriscaram esparro e esbarro. De fato, as duas palavras têm a ver: esparro é aquele que dá um esbarro na vítima para o punguista bater-lhe a carteira. Bolsonaro fica bem nos dois papéis, de esparro e punguista.

Humberto Dantas*: Três anos da “nova governabilidade”

Valor Econômico

2022 será intenso e não se acalmará com resultado eleitoral

Bolsonaro se elegeu na onda da antipolítica. Um de seus principais alvos foram os partidos, organizações sem as quais ele dizia ser possível governar. A posição desafiou quem compreendia ser inviável aprovar a agenda presidencial sem passar pelas lideranças partidárias no Congresso. O que ocorreu a partir de então?

O conceito de “presidencialismo de coalizão” ilustra o arranjo institucional trazido, principalmente, pela Constituição de 1988. Sergio Abranches apontou que seria complexo governar: dificuldades em alta e estímulos colaborativos em baixa tornariam as relações entre Legislativo e Executivo frágeis. Em 1992, já cairia o primeiro presidente eleito sob a nova ordem. Mas Itamar Franco e o primeiro mandato de FHC indicaram um país governável. É de Argelina Cheibub Figueiredo e Fernando Limongi a ideia de que existiam elementos capazes de fazer a agenda executiva prosperar no parlamento. O presidencialismo era de coalizão, e a pactuação entre Poderes entregava o combinado, com partidos coesos e disciplinados internamente em torno do Executivo. A parceria era tão intensa que até a reeleição presidencial foi aprovada, e tivemos oito inéditos anos de um mesmo governo sob ordem democrática. Lula repetiu o feito, mas escancarou a ideia de que as bases cobravam algo que transcendia o debate moral sobre cargos, ministérios e emendas orçamentárias somadas às fortalezas legislativas do Executivo. Existia um ilícito chamado mensalão.

Mario Mesquita*: Chegou o bicentenário

Valor Econômico

O denominador comum nas trajetórias dos países que lograram superar a armadilha da renda média é a inserção no comércio internacional

O ano de 2022 marca o bicentenário do Brasil como nação independente. Sob o prisma da economia (uma ótica limitada, admito, mas que é o objeto desta coluna), a data merece mais reflexão do que ufanismo.

O Brasil de 1822 contava com 4,5 a 5 milhões de habitantes, a grande maioria no campo, sendo que cerca de um terço eram escravos. Quase metade da população estava no Nordeste, e cerca de 40% no Sudeste. As principais atividades econômicas eram a produção e exportação de açúcar, algodão e, em rápido crescimento, de café. Apesar da precariedade das bases estatísticas, os melhores estudos sobre a renda, no período inicial da vida independente, indicam que o país nasceu com patamar de renda média. As estimativas de Angus Maddison, economista da OCDE e Universidade de Groningen, com uma obra fundamental sobre a evolução da renda mundial, indicam que nossa renda per capita era pouco superior à metade da americana, e a de países afluentes da Europa Ocidental, às vésperas da independência.

O que pensa a mídia: Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

O mal que os privilégios fazem aos partidos

O Estado de S. Paulo

Acertadamente, o Congresso extinguiu em 2017 a propaganda partidária no rádio e na televisão. Sua recriação é mais um retrocesso da atual legislatura, com apoio de Jair Bolsonaro

Sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro, a Lei 14.291/22 recria a chamada “propaganda partidária gratuita”, que de gratuita não tem nada, no rádio e na televisão. É mais um retrocesso que a atual legislatura, em sintonia com o governo federal, impõe à sociedade.

Em 2017, o Congresso extinguiu a propaganda partidária no rádio e na televisão, mantendo a propaganda eleitoral, veiculada durante a campanha. A rigor, não deveria existir nenhuma modalidade de propaganda política, partidária ou eleitoral custeada pelos cofres públicos ou compulsoriamente por terceiros. Partido político é entidade privada e, se deseja promover suas propostas, deve buscar por si mesmo os meios para tanto.

A extinção da propaganda partidária em 2017 foi um passo positivo, ao reduzir benefícios artificiais, pagos de forma compulsória pelo contribuinte às legendas. Com a medida, o Congresso fez uma pequena correção, dentro de um marco legal muito benevolente com os partidos. Na verdade, o sistema é benevolente com as lideranças dos partidos.

Além do custo econômico imposto à sociedade, benefícios artificiais para as legendas são prejudiciais aos próprios partidos, uma vez que os afastam de sua missão – que é agregar pessoas em torno de ideias e projetos, fazendo a representação e a articulação política dessas propostas. Se uma legenda obtém do Estado os meios para sua manutenção, o partido acaba por receber uma espécie de autorização para estar distante de seus associados e não buscar novos associados.

Os benefícios artificiais desencadeiam todo um processo de desvirtuamento das legendas. Não se pode fechar os olhos à realidade. O alheamento dos partidos em relação à sociedade não é resultado do acaso, como se fosse uma má sorte nacional. O atual regime de privilégios às legendas, incluindo também os recursos do Fundo Partidário e do Fundo Eleitoral, é forte estímulo para que as legendas fiquem distantes da sociedade e se convertam em um negócio lucrativo para os caciques partidários.

Vale notar que, como pano de fundo desse sistema absolutamente disfuncional, há uma visão equivocada sobre a natureza dos partidos políticos. Como argumento para o acesso dos partidos a recursos públicos e a outras benesses, como a “propaganda partidária gratuita”, afirma-se que as legendas defendem o interesse público e, portanto, mereceriam ser custeadas pelos cofres públicos. Trata-se de grave equívoco conceitual. Os partidos são entidades privadas, que defendem interesses privados – os interesses de seus associados. Isso nada tem de ilegítimo ou antidemocrático. Ao contrário, é justamente na confluência democrática dos diferentes interesses privados que se poderá depois vislumbrar o interesse público. Entre outras consequências, essa realidade é um dos fundamentos para o multipartidarismo: nenhum partido, nenhuma entidade privada detém o monopólio da defesa do interesse público.

Poesia | João Cabral de Melo Neto: O Relógio

1.
Ao redor da vida do homem
há certas caixas de vidro,
dentro das quais, como em jaula,
se ouve palpitar um bicho.

Se são jaulas não é certo;
mais perto estão das gaiolas
ao menos, pelo tamanho
e quadradiço de forma.

Uma vezes, tais gaiolas
vão penduradas nos muros;
outras vezes, mais privadas,
vão num bolso, num dos pulsos.

Mas onde esteja: a gaiola
será de pássaro ou pássara:
é alada a palpitação,
a saltação que ela guarda;

e de pássaro cantor,
não pássaro de plumagem:
pois delas se emite um canto
de uma tal continuidade

que continua cantando
se deixa de ouvi-lo a gente:
como a gente às vezes canta
para sentir-se existente.