sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Vinicius Torres Freire: O novo fim de Paulo Guedes

Folha de S. Paulo

Decreto coloca ministro sob ainda mais tutela, mas Guedes já não podia quase nada

Um decreto de Jair Bolsonaro submeteu Paulo Guedes à tutela oficial de Ciro Nogueira, ministro da Casa Civil, em alguns assuntos orçamentários menores. Nogueira é senador e presidente licenciado do PP, um dos dois regentes do que sobra do governo bolsonariano: a distribuição de dinheiros que auxiliem a eleição da turma do centrão. O outro regente é Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara.

Dizem que Guedes perdeu poder. Perdeu poder de quê?

Para começar, qualquer ministro da Economia pode pouco se não há um governo com rumo e base parlamentar, para nem mencionar articulação social. O governo de Jair Bolsonaro não existe, para todos os fins humanos e positivamente práticos.

Quando se meteu em assuntos econômicos, Bolsonaro sabotou ou desmoralizou Guedes, como se o ministro ainda precisasse passar mais vergonha depois de tanta promessa de trilhão, déficit zero, da privatização da semana que vem, afora disparates e preconceitos.

Guedes não tem articulação política. Perdeu seus principais assessores. Alguns porque não conseguiam fazer nada ou não sabiam fazê-lo. Uns foram fritados por Bolsonaro. Outros saíram para não dar mais vexame ou com medo de processos, como a baciada que debandou quando chutaram o pau de teto de gastos.

Luiz Carlos Azedo: E Bolsonaro entrega a execução do Orçamento ao Centrão

Correio Braziliense

O ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, passou a dividir o poder de distribuição de recursos federais com o ministro da Fazenda, Paulo Guedes, cada vez mais enfraquecido

Os anões do Orçamento eram um grupo de parlamentares baixinhos que controlavam as emendas parlamentares e engordavam suas contas bancárias. O esquema exigia influência para aprovar as emendas e conseguir que determinada empreiteira vencesse a concorrência da obra. Depois, a empresa repassava uma parte dos recursos para o parlamentar. Uma fração era destinada à campanha eleitoral; a outra, ao enriquecimento ilícito, como é da tradição patrimonialista. Àquela época, o caixa dois eleitoral era generalizado. O que distinguia o político honesto do desonesto não era a origem do dinheiro da campanha, era a formação de patrimônio com esses recursos.

Entretanto, em 1993, o Brasil vivia sob as regras de uma nova Constituição, o presidente Fernando Collor havia renunciado para evitar o seu impeachment e, em seu lugar, o vice Itamar Franco havia assumido a Presidência. O então senador Fernando Henrique Cardoso, seu chanceler, assumira a Fazenda e preparava o Plano Real. Com a Constituição de 1988 e a autonomia do Ministério Público, a realidade institucional já era outra, incompatível com o velho modelo de financiamento das campanhas eleitorais.

Bernardo Mello Franco: Bolsonaro de 2022 será o extremista de sempre

O Globo

Nem as férias prolongadas amansaram Jair Bolsonaro. O capitão voltou a Brasília com o radicalismo de sempre. Em uma semana na capital, já atacou o Supremo, o Congresso, os governadores e o diretor da Anvisa, que ele mesmo nomeou.

Na quarta-feira, o presidente usou um site governista para despejar sua fúria. Acusou o Supremo de persegui-lo e vociferou contra os ministros Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes. “Quem esses dois pensam que são?”, desafiou.

Investigado em cinco inquéritos na Corte, Bolsonaro tentou carimbar os juízes como “defensores do Lula”. Conversa fiada. Barroso e Moraes ficaram vencidos no julgamento que derrubou a prisão em segunda instância. A depender deles, o ex-presidente ainda estaria em Curitiba.

Bruno Boghossian: E se o vice de Lula for outro?

Folha de S. Paulo

Alckmin leva ganho simbólico a candidatura do petista, mas patina em questão partidária

A equação original do PT para a escolha do vice de Lula tinha dois elementos principais. O primeiro era simbólico, uma sinalização do petista para ampliar sua base eleitoral e conquistar votos além da esquerda. O segundo era objetivo: a vaga seria usada para atrair um grande partido para a aliança do ex-presidente.

Geraldo Alckmin preencheu o primeiro critério, mas a questão partidária ficou para trás. Nos cenários traçados até aqui, o ex-tucano não agrega ganhos significativos à aliança formal de Lula. Isso porque Alckmin está em busca de um partido que sirva de barriga de aluguel para indicá-lo ao posto de vice.

Ruy Castro: O país que não lhe diz respeito

Folha de S. Paulo

Bolsonaro não se preocupa com os votos que está perdendo. Se lhe faltar urna, conta com as armas

Bahia, Minas Gerais e Goiás estão debaixo d’água. Para milhões de pessoas, a vida agora se resume ao que sobrou da lama, dos escombros de suas casas e dos cacos de seus sonhos. Nenhuma delas recebeu de Jair Bolsonaro uma palavra de solidariedade e conforto, muito menos promessa de ajuda. Suas tragédias não dizem respeito ao homem em quem muitas devem ter votado. Importante é o jet ski, as provocações e o voo em primeira classe para seus ministros.

A tragédia desses estados não se limitará às enormes perdas individuais, mas envolverá a saúde, a agricultura, a produção industrial, os serviços e a economia em geral, deles e de seus vizinhos. Bahia, Minas Gerais e Goiás são rotas de passagem e, por suas estradas, destruídas ou interditadas, milhares de caminhões deixarão de rodar pelos próximos meses. Esperam-se desemprego, revoltas de caminhoneiros e desabastecimento. Mas nada disso compete a Bolsonaro. Para ele, o problema é dos governadores e prefeitos —muitos dos quais igualmente trabalharam por sua eleição em 2018.

Eliane Cantanhêde: O Brasil é uma festa!

O Estado de S. Paulo.

Boris Johnson pode cair por uma festa na pandemia, Bolsonaro é ‘mito’ por viver de festa em festa

Esses ingleses são mesmo esquisitos. Bastou uma “festinha” de 40 pessoas nos jardins de Downing Street (sede do governo), no pico da pandemia e do lockdown, cada um levando seu próprio vinho, para os britânicos, a oposição e até parlamentares do partido se mobilizarem para pedir o afastamento do primeiro-ministro Boris Johnson.

Ok, é grave, mas isolado. E um certo presidente, além-mar, que na pandemia não toma vacina, faz churrasco na residência oficial, é filmado em uma aglomeração atrás da outra, diverte-se em atos golpistas, abraça idosos sem máscara antes das vacinas, arranca máscara de criança na rua e proíbe em palácio, descumpre as leis do DF e é processado por governos estaduais por suas motociatas?

Simon Schwartzman*: Nuestra América

O Estado de S. Paulo.

Hoje, se houver um caminho, temos de construí-lo com governos realistas que trabalhem para o bem comum

A eleição do jovem Gabriel Boric para a presidência traz a esperança de que o Chile talvez consiga escapar dos ciclos de populismo, autoritarismo, estagnação econômica e decadência institucional que estão assolando a maioria dos países da América Latina.

Desde o fim da ditadura de Pinochet, entre 1990 e 2010, o Chile foi governado pela Concertación, coalizão de partidos de centro-esquerda que conseguiram combinar a abertura da economia com políticas sociais inteligentes, reduzindo a pobreza e a desigualdade, melhorando a qualidade da educação e desenvolvendo a economia como nenhum outro país da região. Isto não foi suficiente, no entanto, para evitar que o sentimento de frustração crescesse, fazendo com que o país alternasse entre governos de esquerda e direita – Michelle Bachelet e Sebastián Piñera – que culminou com as grandes manifestações de rua de 2019, a convocação de uma assembleia constituinte e a última eleição presidencial, em que candidatos independentes tomaram o lugar dos antigos partidos políticos.

Antonio Corrêa de Lacerda*: Faltam vetores para crescer em 2022

O Estado de S. Paulo.

Não há investimento se há ociosidade na capacidade produtiva e falta perspectiva de elevação da demanda

A probabilidade de uma estagnação, ou até mesmo uma recessão, no Brasil em 2022 é maior do que a de crescimento. Há ausência de vetores que possam impulsionar a economia, a começar pela herança estatística. 2021 herdou um carregamento (carry trade) de 3,6% de 2020. Ou seja, 80% do desempenho positivo do ano, previsto em 4,5%, advém deste fator. Para este ano, o efeito estatístico do ano em curso será nulo.

Além disso, outros fatores macroeconômicos são adversos: a inflação, a política monetária, o mercado de trabalho e o investimento. A inflação derivada do choque de oferta das matérias-primas produz estragos na cadeia produtiva. A política monetária restritiva, com a elevação dos juros desestimula o consumo, que há tempos anda em falta, por estimular a poupança dos mais ricos e encarecer as dívidas das famílias e empresas.

O mercado consumidor também tem sido negativamente afetado pelo elevado desemprego em uma acepção mais ampla, considerando os desalentados e os subocupados. O fato é que mais de 30 milhões de pessoas estão fora do mercado de trabalho. A capacidade de compra das pessoas segue limitada, com a elevação do custo de vida e a insuficiência de reajuste de salários e honorários.

Fernando Abrucio*: O sentido da frente ampla brasileira

Valor Econômico

Não se sairá da enorme crise atual, a maior desde o final do regime militar, sem um pacto de reconstrução nacional

Para ganhar as eleições de 2022 e governar o país no dia seguinte, reconstruindo o que foi destruído nos últimos três anos, será necessário montar uma coalizão política e social bem maior do que a erigida pelo bolsonarismo. Essa constatação deveria ser um mantra para os que desejam vencer o presidente Bolsonaro. Por essa razão, é provável que o termo frente ampla apareça frequentemente ao longo deste ano. Tal ideia vale tanto para alianças comandadas pela esquerda em direção ao centro, quanto o agrupamento da centro-direita democrática com forças diferentes dela. Em outras palavras, não se sairá da enorme crise atual, a maior desde o final do regime militar, sem um pacto de reconstrução nacional.

Frente ampla é apenas uma das denominações mais usuais para momentos políticos que exigem grandes alianças entre grupos diferentes com o intuito não só de ganhar eleições, mas de reconstruir a ordem política e social. Isso já aconteceu em situações como o fim de uma guerra, de um regime autoritário ou quando se quer enfrentar um sistema político tradicional muito duradouro e avesso a mudanças.

O caso brasileiro tem suas peculiaridades, sendo a principal a existência de um grupo que governa o país - a aliança entre o bolsonarismo autoritário e o Centrão patrimonialista - por meio de um projeto de destruição das principais instituições e valores criados a partir da redemocratização. O resultado da distopia bolsonarista é a ausência de qualquer perspectiva positiva de futuro, seja na economia, na política, nas questões sociais e na inserção do Brasil no mundo.

José de Souza Martins*: Brasileiros e portugueses

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Chamar de lusofobia as anedotas sobre portugueses é uma simplificação

Recente artigo de Giuliana Miranda e Mayara Paixão, na “Folha de S. Paulo”, trata das repercussões, no meio acadêmico, em Portugal e no Brasil, de um livro do jornalista português Carlos Fino sobre as raízes do estranhamento entre os dois países. Diferentes pesquisadores pontuam aspectos do tema, o que mostra a dificuldade no lidar com simplificações estereotipadas a respeito da extensa diversidade de concepções, lá e cá, dos nacionais de um país em relação aos do outro.

Apelidos decorrentes da origem diferente da brasileira ou decorrente da cor são comuns aqui para designar o diferente. Não é raro que o loiro seja chamado de “Alemão”, mesmo que não tenha essa origem. Português, “Portuga”. “Japonês”, mesmo o oriental descendente de coreano ou de chinês. “Negão” para o negro.

É coisa antiga, uma forma tosca de acolhimento numa sociedade à margem do que é próprio do mundo criado pela Revolução Francesa: juridicamente iguais, mas imaginariamente desiguais. Esses tratamentos só podem ser compreendidos pelo tom da voz e pelos gestos que os acompanham. Um código linguístico subentendido.

Humberto Saccomandi: Hostilidade cresce entre os vacinados e os não

Valor Econômico

A polêmica envolvendo o tenista Novak Djokovic expôs a hostilidade crescente entre vacinados e não vacinados

A polêmica atual envolvendo o tenista Novak Djokovic expôs a tensão existente em muitos países entre a maioria de pessoas vacinadas e a minoria de não vacinados. A hostilidade mútua gerou uma torcida pró e contra o sérvio. Afinal, como deve ser a política para os não vacinados? Essa questão ameaça criar mais um cisma social numa época já de fortes polarizações.

Movimentos antivacinas existem há décadas, assim como os que rejeitam os medicamentos tradicionais. Por trás disso há posições filosóficas, religiosas e desconfiança em relação aos grandes grupos farmacêuticos ou ao capitalismo em geral. Porém, a rejeição à vacina contra a covid-19 ganhou outros dois argumentos.

O primeiro é quanto à segurança, devido ao tempo recorde em que as vacinas foram desenvolvidas, o que poderia gerar falhas e reações adversas perigosas. Cidadãos de países com regimes autoritários, como a Rússia, também desconfiam da qualidade das vacinas locais.

Conheço o caso de um jovem saudável que teve uma reação muito grave, que médicos de um dos melhores hospitais de São Paulo atribuíram com grande probabilidade a uma vacina específica. Ele felizmente se recuperou e tomou a segunda dose, de um outro fabricante.

Assis Moreira: Reforma trabalhista e a eleição na OIT

Valor Econômico

Governo de Jair Bolsonaro tende a apoiar um candidato mais identificado com os empregadores

Ao mesmo tempo em que o PT quer discutir a reforma trabalhista na campanha presidencial, o governo de Jair Bolsonaro tende a apoiar um candidato mais identificado com os empregadores para a direção-geral da Organização Internacional do Trabalho (OI) em eleição no dia 25 de março, em Genebra.

A OIT tem quatro objetivos estratégicos: promover e aplicar princípios e direitos fundamentais do trabalho; aumentar as possibilidades para homens e mulheres de obter um emprego decente; ampliar o benefício e eficácia de proteção social para todos; e reforçar o diálogo social. É a única instituição “tripartite” das Nações Unidas, ou seja, suas normas do trabalho, suas políticas e programas são elaboradas conjuntamente por representantes de governos, de empregadores e de trabalhadores.

Essa eleição ocorre em meio a grandes incertezas causadas pelo coronavírus e pelas mudanças nos sistemas econômicos resultantes das alterações climáticas, transformação tecnológica de alta velocidade e questionamentos quanto o impacto sobre o futuro do trabalho.

Há cinco candidatos para suceder o britânico Guy Ryder, de origem sindical e na direção da OIT desde 2012. Eles vêm da África do Sul, Togo, França, Austrália e Coreia do Sul. Para ser eleito, o candidato precisa receber mais da metade dos votos do conselho de administração, composto por 56 membros (28 governos, 14 empregadores e 14 trabalhadores).

Flávia Oliveira: Brasil que esperança

O Globo

Vez em quando, o ambiente de trevas que engolfa o país é riscado por raios de luz que nos devolvem ao Brasil de afeto, generosidade e talento pelo qual permanecemos, lutamos, insistimos. E esperamos. No par de anos de pandemia, brilharam Teresa Cristina em lives; Emicida em “Amarelo”; Fabiana Cozza no álbum “Dos Santos”, Nei Lopes em “Pagode black tie”, Caetano Veloso em “Meu coco”, Maria Bethânia em “Noturno”, Ney Matogrosso em “Ney 80 anos”. Teve Gilberto Gil celebrando o São-João com a sanfona de Mestrinho; Milton Nascimento cantando “Clube da esquina” com Orquestra Ouro Preto; Leci Brandão se apresentando no Trem do Samba, de Marquinhos de Oswaldo Cruz; no cinema, “Marighella” e “Medida provisória”, estreias de, respectivamente, Wagner Moura e Lázaro Ramos na direção. Iluminaram-nos os livros de Eliana Alves Cruz (“Nada digo de ti que em ti não veja”), Djamila Ribeiro (“Cartas para minha avó”), Renato Nogueira (“Por que amamos?”), Leonardo Bruno (“Canto de rainhas”), Luiz Antonio Simas (“Umbandas — Uma história do Brasil”). Participamos das campanhas humanitárias que levaram comida a quem tem fome na temporada de desassistência aos vulneráveis pelo Estado.

Apresento o rol de afagos n’alma para chegar ao recém-chegado e intensamente reconfortante “O canto livre de Nara Leão”. Nelson Motta definiu o repertório da cantora, que completaria 80 anos neste janeiro, como uma lasanha: em cada camada, um gênero musical; numa fatia, o conjunto da obra. A série documental em cinco episódios, dirigida por Renato Terra, costurada por José Bial, neto de Nara, é lasanha também. Acomoda o que a cantora fez e foi, com quem andou. Oferece sublime prato. Sacia.

O que pensa a mídia: Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Guedes de novo rebaixado

O Estado de S. Paulo.

Chefe da Casa Civil passa a mandar no Orçamento e o ministro da Economia é mais uma vez humilhado por Jair Bolsonaro

O dinheiro do contribuinte será a partir de agora manejado – oficialmente – sob a direção do chefe da Casa Civil da Presidência da República, ministro Ciro Nogueira (PP-PI), principal nome do Centrão no Executivo federal. O ministro da Economia, Paulo Guedes, ficará subordinado, de forma explícita, ao novo comandante das finanças da União. Qualquer decisão sobre custeio, investimento, transferência, orientação ou reorientação de recursos ficará “condicionada à manifestação prévia favorável” do ministro da Casa Civil, segundo decreto publicado no Diário Oficial de quinta-feira. Com essa decisão, o presidente Jair Bolsonaro rebaixou mais uma vez o ministro da Economia, ex-Posto Ipiranga, e subordinou a execução orçamentária, de forma integral e sem disfarce, à figura mais importante e mais influente do gabinete presidencial.

A nova humilhação parece ter sido bem aceita no Ministério da Economia, a julgar pela primeira reação registrada pela Agência Estado. Com a nova distribuição de poderes, ficará mais fácil “dividir o desgaste” ocasionado pelo corte de recursos, de acordo com resposta obtida pela reportagem. Segundo as mesmas fontes, o assunto foi discutido com a pasta. Confirmada essa informação, ficará evidenciada, de novo, a atitude mansa do ministro Guedes diante das investidas do presidente e de seu aliado favorito, o chefe da Casa Civil.

É piada falar de uma divisão de responsabilidade pelos cortes de gastos. Qualquer sugestão de austeridade, ou de respeito aos padrões de responsabilidade fiscal, só prevalecerá, como tem ocorrido até agora, se for compatível com os interesses do presidente Jair Bolsonaro e aceitável por seus apoiadores, sempre famintos por verbas públicas.

Poesia | João Cabral de Melo Neto: Graciliano Ramos

Falo somente com o que falo:
com as mesmas vinte palavras
girando ao redor do sol
que as limpa do que não é faca:

de toda uma crosta viscosa,
resto de janta abaianada,
que fica na lâmina e cega
seu gosto da cicatriz clara.

***

Falo somente do que falo:
do seco e de suas paisagens,
Nordestes, debaixo de um sol
ali do mais quente vinagre:

que reduz tudo ao espinhaço,
cresta o simplesmente folhagem,
folha prolixa, folharada,
onde possa esconder-se a fraude.

***

Falo somente por quem falo:
por quem existe nesses climas
condicionados pelo sol,
pelo gavião e outras rapinas:

e onde estão os solos inertes
de tantas condições caatinga
em que só cabe cultivar
o que é sinônimo da míngua.

***

Falo somente para quem falo:
quem padece sono de morto
e precisa um despertador
acre, como o sol sobre o olho:

que é quando o sol é estridente,
a contrapelo, imperioso,
e bate nas pálpebras como
se bate numa porta a socos.