sábado, 15 de janeiro de 2022

Dora Kramer: Chamado às falas

Revista Veja

O diretor presidente da Anvisa deu a senha sobre a melhor maneira de combater as malfeitorias do presidente da República

Antonio Barra Torres fez mais que chamar às falas e enquadrar Jair Bolsonaro aos bons costumes ao pedir que provasse ou se retratasse das insinuações sobre os propósitos da Anvisa ao autorizar a vacinação de crianças contra a Covid. O diretor presidente da agência deu a senha sobre a melhor maneira de combater as malfeitorias do presidente da República.

Perde-se tempo, energia e a chance de celebrar uma aliança entre civilidade, boa governança e eficácia político-elei­toral ao se optar por ataques de adjetivos. Isso havendo uma enorme quantidade de razões substantivas as quais o dito adversário não consegue enfrentar.

Chamar Bolsonaro de genocida, homofóbico, racista e ir cuidar dos afazeres como se cumprida a tarefa de fazer oposição na base do insulto é jogar na arena da grosseria em que ele foi criado e treinado. Um campo onde é imbatível.

Esse filme esteve em cartaz em 2018 e já sabemos quem sobreviveu (e quem morreu) no final. Usaram-se muitas palavras em relação ao passado do então deputado, mas não se fez a contestação de conteúdo à capacidade de governar do candidato a presidente nem ao modo como iria lidar com as questões urgentes do país.

Oscar Vilhena Vieira*: Autoritarismo ou reacionarismo?

Folha de S. Paulo

Presidente buscou impor seus objetivos abusando de suas prerrogativas

Como distinguir uma ação autoritária implementada pelo governo de uma ação meramente conservadora ou reacionária? Essa difícil questão me foi colocada pela professora Maria Herminia Tavares de Almeida, em reação à série de reportagens publicadas pela excelente jornalista da Folha Renata Galf, sobre um projeto de pesquisa voltado a compreender o modo como os novos líderes populistas empregam o direito e suas instituições para concretizar seus objetivos.

A questão é relevante porque um dos pressupostos fundamentais dos regimes democráticos é que o eleitor possa, pelo voto, determinar mudanças na orientação das políticas governamentais. Nesse sentido, é tão legítimo a um presidente conservador buscar implementar políticas conservadoras, como a uma presidente progressista ou liberal cumprir suas promessas de campanha. A democracia serve para isso mesmo; para poder mudar.

Ações autoritárias constituem uma coisa distinta. Numa primeira categoria encontram-se aquelas ações que ameaçam os próprios pressupostos do Estado democrático de direito, como a integridade do processo eleitoral ou a independência dos poderes que têm a responsabilidade de elaborar ou garantir as regras do jogo; ou seja, o Legislativo e o Judiciário. Nesta mesma categoria também estão ações que violem direitos fundamentais, prejudicando o livre e igualitário exercício da cidadania, ou a dignidade das pessoas.

Demétrio Magnoli: Putin, o cálculo do fraco

Folha de S. Paulo

Com a Ucrânia, chefão do Kremlin quer evitar um exemplo para a Belarus e para os próprios russos

Cerca de 100 mil militares russos cercam a Ucrânia, ao leste, norte e sul. Gestos valem mais que palavras. A ameaça de invasão, óbvia, mas negada pela diplomacia de Moscou, vai acompanhada por um ultimato: os EUA devem oferecer, no mínimo, garantia legal de que a Ucrânia jamais será admitida na Otan. Diante da exigência impossível, assoma a pergunta: qual é o plano oculto de Putin?

Na aurora da Guerra Fria, a Finlândia firmou o tratado de 1948 com a URSS que impediu seu alinhamento geopolítico com os EUA. "Finlandização": o termo passou a descrever a neutralidade forçada de um Estado soberano. Putin exige a "finlandização" da Ucrânia, não por meio de um acordo bilateral, mas por um tratado com os EUA. A resposta negativa não surpreendeu ninguém. De outro modo, Washington estaria limitando a soberania ucraniana.

Hélio Schwartsman: Dizimando a justiça

Folha de S. Paulo

É preciso manter algum senso de proporcionalidade nas punições

Tinha razão o Montesquieu. A separação dos Poderes é fundamental. Colocando de outra forma, é um perigo deixar os juízes legislarem.

Não sou muito impressionável, mas confesso que fiquei chocado ao ler, na reportagem de Ranier Bragon sobre as cotas de fundo eleitoral para mulheres e negros, que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) baixou resoluções que preveem que uso de "candidaturas femininas fictícias" acarretará a cassação de diplomas ou mandatos de todos os candidatos da chapa partidária, "independentemente de prova de sua participação, ciência ou anuência". Pior, o dispositivo vem sendo aplicado por alguns tribunais eleitorais, ainda que não haja uniformidade nas decisões.

Bolívar Lamounier*: Uma eleição a bordo do Titanic

O Estado de S. Paulo.

Os chefes da tripulação são incapazes de perceber os riscos a que nosso País está sujeito no médio prazo

A analogia com o Titanic é correta, porque nossa embarcação, beirando os 150 milhões de eleitores, é de fato enorme e porque nada faz crer que os nossos sensores políticos sejam eficientes na função de detectar possíveis icebergs à nossa frente.

A verdade é que nosso Titanic já partiu meio avariado quando largou em Portsmouth para a viagem aos Estados Unidos. Os reparos a que foi submetido no estaleiro da sra. Dilma Rousseff não lhe foram nada saudáveis. Seus sensores são um emaranhado institucional estapafúrdio, que funciona mais pela graça de Deus que por uma intrínseca racionalidade política. As três décadas decorridas desde a promulgação da Constituição de 1988 não deixam dúvida quanto a nos termos metido numa lamentável entressafra de lideranças, causa e consequência da atual inexistência de partidos políticos. Escrevo “inexistência de partidos” porque as agremiações que vêm se registrando no Tribunal Superior Eleitoral distam muito de merecer tal denominação. Os chefes da tripulação, quero dizer, os candidatos que se irão engalfinhar em outubro, carecem da mais simples visão de conjunto, sendo, portanto, incapazes de perceber os riscos a que nosso País está sujeito no médio prazo. Por último, mas não menos importante, fomos atingidos pela pandemia, fenômeno um bilhão de vezes pior que um reles ataque de gafanhotos.

João Gabriel de Lima: A luta pelo voto evangélico

O Estado de S. Paulo.

É preciso entender as carências sociais e apresentar propostas concretas para os os evangélicos

Tabata Amaral já leu, Marcelo Freixo já leu e Lula está lendo. O livro da moda entre os políticos da centro-esquerda é Povo de Deus, do antropólogo Juliano Spyer, da Universidade de São Paulo. Trata-se de uma análise acurada, cheia de pesquisas e referências, sobre os evangélicos brasileiros.

É fácil compreender o interesse. Os evangélicos constituem 30% da população brasileira, e 2/3 deles votaram em Jair Bolsonaro em 2018. Nas contas do demógrafo José Eustáquio Diniz Alves, da Escola Nacional de Ciências Estatísticas, a diferença em favor de Bolsonaro no eleitorado evangélico foi de 11,6 milhões de votos. Um contingente que teve peso decisivo – a distância para Fernando Haddad, no segundo turno, foi de apenas 10,7 milhões de votos.

Juliano Spyer não era, originalmente, um estudioso de religião. Esbarrou no tema ao fazer pesquisas antropológicas sobre brasileiros vulneráveis – sua verdadeira especialidade. Ele parte da constatação de que o Brasil viveu nos últimos 50 anos um dos maiores movimentos migratórios da história. Os brasileiros que vieram do interior acabaram se instalando nas periferias das grandes cidades, muitas vezes em condições precárias – sem saneamento, sem segurança, sem saúde e sem educação.

Adriana Fernandes: É a política!

O Estado de S. Paulo.

Tudo se repete com gastos subestimados e lideranças do Congresso fazendo acordos “por fora”

Ninguém perde o que já não tinha. Esse é o ponto de partida para uma análise mais detalhada do que está por trás dos desdobramentos do decreto do presidente Jair Bolsonaro de transferir para o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, a execução da distribuição de recursos do Orçamento acertada pelo mundo político.

Paulo Guedes e sua equipe no Ministério da Economia já não tinham nas mãos o poder de decisão, que é política, e não financeira. Continuarão tratando de apontar os riscos fiscais e necessidade de remanejamento para recompor dotações de gastos que não podem deixar de serem feitos. Isso continua. Em 2022, tudo se repete com gastos subestimados e lideranças do Congresso fazendo acordos “por fora” via relatoria do Orçamento.

Ascânio Seleme: O Brasil de verdade

O Globo

Discussão eleitoral, que hoje gira em torno da política, vai começar quando os problemas dos candidatos derem espaço para os problemas do Brasil

Mais alguns meses e o Brasil vai começar a discutir o seu futuro. Por ora, o barulho eleitoral ocorre apenas em torno da política. O que se debate agora é se Lula vai melhor com Alckmin de vice ou se uma chapa puro sangue faz sentido (não faz). Bolsonaro testa seus generais também de olho em um vice. Ele quer alguém que meta medo. Sim, porque se Lula quer um confiável, o capitão precisa de um assustador, por isso Braga Netto entra na lista. Moro fica tateando aqui e ali enquanto Ciro e Doria permanecem esperando não se sabe bem o que. O fato é que a campanha só vai começar quando os problemas dos candidatos derem espaço para a discussão dos problemas do Brasil.

Os candidatos, que hoje apenas apontam defeitos em seus adversários, terão de mostrar como vão agir diante da série de desafios que o país terá de enfrentar depois de superada a pandemia. Todos os muitos pontos da pauta serão trazidos à luz e de nada servirá ao candidato tentar deles se afastar. Hoje, Lula foge de temas como aborto e combate à drogas de maneira a não perder votos evangélicos. Na campanha para valer ele terá de se posicionar claramente. Da mesma forma, seu principal adversário terá de falar sobre assuntos que não gosta de tratar, como sua relação íntima com a milícia, por exemplo. É assim que funciona uma campanha presidencial.

Carlos Góes: A importância do autoteste de Covid

O Globo

Para atingirmos a realidade de Europa ou EUA, esses testes teriam de estar disponíveis em abundância, de forma gratuita ou muito barata

Era 31 de dezembro. Minha família, como muitas outras, estava reunida para o fim do ano. A cada dois dias, vínhamos testando todos na casa com autotestes de Covid-19 importados. Eis que, logo no dia de réveillon, um de meus familiares testou positivo.

Posteriormente, um teste laboratorial confirmaria seu diagnóstico positivo; mas a pessoa se isolou imediatamente. Testamos o resto da família nos dias seguintes — e ninguém mais se contaminou.

Quando soube do resultado, liguei para uma pessoa que tinha sido exposta no dia anterior. Ela estava na estrada, viajando para ver sua própria família. Parou numa farmácia e fez um teste. Deu positivo. Tomou o caminho de volta e não colocou sua família em perigo.

Embora seja somente um caso particular, minha experiência ilustra o poder do acesso a testes rápidos para Covid-19. Possivelmente evitamos muitas contaminações somente por causa disso.

Carlos Alberto Sardenberg: A vacina é legal

O Globo

Os canadenses da província de Québec deram a maior bandeira: o número de vacinados com a primeira dose disparou depois que o governo local baixou a regra segundo a qual o cidadão só poderia comprar álcool e maconha apresentando o passaporte da vacina. Note-se: lá a maconha é legal até para “fins recreativos”, ou seja, para um baseado.

Não vai aqui nenhuma crítica aos moradores de Québec, mesmo porque, certamente, é a minoria que consome bebidas e a erva. Ok, pode ser uma minoria expressiva, não importa. O objetivo é mostrar como os governos pelo mundo têm sido criativos na tarefa de estimular ou mesmo forçar a vacinação.

Ainda em Québec, o primeiro-ministro François Legault avalia cobrar um imposto dos não vacinados. Argumenta que eles adoecem mais e transmitem a Covid-19 a um número maior de pessoas, tudo isso sobrecarregando a rede pública de saúde. Logo, como geram mais gasto público, devem pagar por isso.

Pablo Ortellado: Cuba condena duramente manifestantes

O Globo

A Justiça cubana está julgando e condenando com penas severas os participantes dos protestos de julho de 2021. Em 11 de julho e nos dias que se seguiram, milhares de cubanos, muitos deles bem jovens, saíram às ruas para exigir liberdade e protestar contra as condições econômicas, a escassez de medicamentos e a resposta do governo à pandemia. Organizações de direitos humanos estimam que mais de 1.300, a grande maioria manifestantes pacíficos, foram detidos. Mais de 700 continuam presos provisoriamente, entre eles 39 adolescentes. Muitos julgados dizem que nem sequer tiveram acesso a um advogado.

As acusações mais graves, de rebelião, podem resultar em sentenças de até 30 anos de prisão. O número exato dos que são julgados é desconhecido, já que o governo cubano se nega a dar qualquer informação sobre os processos, a imprensa oficial não os cobre, e a imprensa estrangeira não tem acesso aos julgamentos.

Marcus Pestana*: Terceira via: necessidade ou desejo?

As eleições majoritárias em dois turnos foram introduzidas, no Brasil, pela Constituição Federal de 1988. O primeiro objetivo era conferir ao vencedor mais legitimidade e força. O segundo, libertar o eleitor da pressão do chamado “voto útil”, permitindo que ele manifeste sua preferência por identidade com o candidato que julgue o melhor, independente das suas chances de vitória, e participe de uma correção de rumo na segunda rodada. Os profissionais de marketing político e de pesquisas de opinião dizem sempre que no primeiro turno se vota a favor, pela identificação, e no segundo, contra, pela rejeição.

A população tem as atenções na nova onda da pandemia, na inflação e no desemprego, não está preocupada com as eleições. Os números das pesquisas refletem, como virou lugar comum dizer, “uma fotografia do momento”.  Até aqui são monólogos paralelos que não interagem. Campanha é pra mudar os números. Há registros de vitórias espetaculares e inesperadas. Tudo pode acontecer, inclusive nada.

O que pensa a mídia: Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

É absurdo o corte de verbas de prevenção a flagelo das chuvas

O Globo

Saiu 2021, entrou 2022, e o cenário meteorológico do país não mudou. Cidades submersas, casas destruídas pela força das águas, estradas e pontes interditadas, deslizamentos de encostas, moradores e comerciantes tentando recomeçar a vida depois de perder tudo. No fim do ano passado, as chuvas torrenciais no Sul da Bahia mataram pelo menos 26 moradores, deixaram milhares de desabrigados e causaram prejuízos incalculáveis. Segundo o governo do estado, a região registrou os maiores volumes pluviométricos em três décadas. Neste início de ano, as tempestades também não deram trégua. Maranhão, Piauí, Tocantins, Goiás e Noroeste do Rio de Janeiro também viveram ou estão vivendo situação dramática em decorrência das chuvas. Nos últimos dias, os estragos têm se concentrado em Minas Gerais, onde pelo menos 25 pessoas já morreram e mais de 370 municípios estão em situação de emergência.

Enquanto as tempestades se tornam mais frequentes e devastadoras, governos cortam verbas para prevenção. Como mostrou reportagem do GLOBO, em 2021 a União reduziu em 76% o orçamento do Ministério do Desenvolvimento Regional para ações de prevenção a desastres naturais (de R$ 714 milhões em 2020 para R$ 171 milhões em 2021). Essas ações incluem planejamento e execução de contenção, drenagem e estudos sobre estabilização de encostas. O estratégico Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), subordinado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, também perdeu recursos. O orçamento de R$ 18 milhões no ano passado foi o menor desde a sua criação, em 2011, após a tragédia na Região Serrana do Rio, que matou quase mil moradores.

Morre o poeta que usou versos para lutar pela democracia: Thiago de Mello, aos 95 anos

Célebre poema foi traduzido e se tornou mundialmente conhecido como arma contra a ditadura

O Globo

Morreu na manhã desta sexta-feira (14) aos 95 anos, o poeta, tradutor e ensaísta amazonense Thiago de Mello, de causas naturais. Ele faleceu em casa, em Manaus. O velório ocorrerá no Palácio Rio Negro, Centro Histórico de Manaus, às 14h. Segundo a família do autor, o enterro está previsto para o sábado de manhã, em horário ainda a ser definido.

Nascido em Barreirinha, no Amazonas, em 30 de março de 1926, Mello foi um dos grandes poetas de sua geração. Traduzido em mais de 30 idiomas e com 70 anos de produção literária, ele trabalhou como editor, jornalista e diplomata.

Um de seus poemas mais famosos é "Os estatutos do homem (Ato Institucional Permanente)". Escrito após o golpe de 1964, é uma resposta ao mesmo tempo singela e poderosa ao Ato Constitucional I. O decreto tinha como objetivo afastar qualquer forma de oposição e legitimar o regime, possibilitando a cassação de mandatos legislativos, a suspensão de direitos políticos e o afastamento de servidores públicos.

Mello respondeu com um ato insitucional poético e "permanente" de 14 artigos. Já no primeiro anunciava: "Fica decretado que agora vale a verdade/ agora vale a vida,  e de mãos dadas, marcharemos todos pela vida verdadeira". E, no Artigo Final: "A partir deste instante/ a liberdade será algo vivo e transparente/ como um fogo ou um rio,/ e a sua morada será sempre/ o coração do/ homem." Traduzido por Pablo Neruda, que foi um dos grandes amigos de Mello, o poema se tornou mundialmente conhecido como arma contra a ditadura.

Após o decreto, Mello renunciou ao posto de adido cultural no Chile, cargo que ocupava na época. Ele voltaria ao Brasil para combater a ditadura em 1965, mas acabaria preso logo após descer do avião. Em novembro daquele ano, participou de uma manifestação de intelectuais em frente ao hotel Glória, no Rio, durante a abertura da II Conferência Extraordinária da Organização dos Estados Americanos (OEA), na qual falaria o presidente Castello Branco.

O ato, que ficou conhecido como "os oito da Glória", resultou na prisão de Glauber RochaCarlos Heitor Cony e Joaquim Pedro de Andrade, entre outros. Mello escapou, mas acabou se apresentando às autoridades em seguida. Ele foi libertado após um mês.

Poesia | Thiago de Mello: Para os que Virão

Como sei pouco, e sou pouco,
faço o pouco que me cabe
me dando inteiro.
Sabendo que não vou ver
o homem que quero ser.

Já sofri o suficiente
para não enganar a ninguém:
principalmente aos que sofrem
na própria vida, a garra
da opressão, e nem sabem.

Não tenho o sol escondido
no meu bolso de palavras.
Sou simplesmente um homem
para quem já a primeira
e desolada pessoa
do singular - foi deixando,
devagar, sofridamente
de ser, para transformar-se
- muito mais sofridamente -
na primeira e profunda pessoa
do plural.

Não importa que doa: é tempo
de avançar de mão dada
com quem vai no mesmo rumo,
mesmo que longe ainda esteja
de aprender a conjugar
o verbo amar.

É tempo sobretudo
de deixar de ser apenas
a solitária vanguarda
de nós mesmos.
Se trata de ir ao encontro.
(Dura no peito, arde a límpida
verdade dos nossos erros.)
Se trata de abrir o rumo.

Os que virão, serão povo,
e saber serão, lutando.