sábado, 12 de março de 2022

Oscar Vilhena Vieira*: Doce indignação

Folha de S. Paulo

Margarida Genevois não parou de trabalhar, um só segundo, pela construção de uma sociedade mais justa

Margarida dificilmente termina uma frase sem um sorriso, ainda que seus olhos possam estar expressando uma profunda indignação. Nascida Bulhões Pedreira, tradicional família do Rio de Janeiro, em 10 de março de 1923, deparou-se com o analfabetismo, a desnutrição e a doença ao mudar-se com o marido, Lucien Genevois, para o interior de São Paulo. Desde então, Margarida não parou de trabalhar, um só segundo, pela construção de uma sociedade mais justa.

Nos anos 1970, combateu o arbítrio e a violência de Estado. Com suas filhas, "correu da polícia". Foi a primeira mulher a ter assento na Comissão de Justiça e Paz, que presidiu duas vezes. Ali ouviu, em primeira voz, o depoimento de quem havia sido torturado e dos familiares que buscavam desaparecidos.

Demétrio Magnoli: Tigre de papel

Folha de S. Paulo

Putin tem razão ao alegar que as promessas da Otan não foram honradas

O mapa da expansão da Otan pipocou em todos os lugares, geralmente por iniciativa dos papagaios de Putin, engajados na justificação da agressão à Ucrânia. No papel, impressiona: desde 1999, a aliança ocidental recebeu a adesão de 14 países, entre ex-integrantes do bloco soviético e as três antigas repúblicas soviéticas do Báltico.

De fato, porém, a Otan ampliada é, como diria Mao Tsé-tung, um tigre de papel.

Putin tem razão ao alegar que as promessas feitas à URSS em 1990 não foram honradas. Na hora da reunificação alemã, líderes americanos, britânicos e alemães asseguraram a Gorbachev que, com exceção da Alemanha Oriental que desaparecia, a Otan não avançaria nenhum milímetro rumo a leste.

Hélio Schwartsman: Até o estrogonofe é cancelado

Folha de S. Paulo

Em nome de combater uma violação moral, incorremos num punhado de outras

A grande surpresa na crise da Ucrânia foram a rapidez e a firmeza com que a comunidade internacional respondeu à invasão russa. Até então, o presidente Vladimir Putin vinha explorando com competência as divisões entre americanos e europeus. A mudança decorre, acredito, de uma troca de "framing" (enquadramento).

Enquanto se discutia a conveniência geopolítica de a Ucrânia integrar a Otan, a questão era tratada de forma pragmática, com abertura para divergências e a possibilidade de matizes. Mas, depois que Putin decidiu recorrer às armas para iniciar uma guerra de agressão contra um país soberano, provocando a morte de civis inocentes, a invasão passou a ser vista como uma violação moral. E isso faz toda a diferença.

Cristina Serra: Transfobia no MEC

Folha de S. Paulo

Visão do titular da pasta sobre o mundo é obscurantista e sombria

O pastor que ocupa o Ministério da Educação, Milton Ribeiro, pouco fala, mas quando abre a boca sempre provoca estupefação pela capacidade de expressar uma visão de mundo tão obscurantista e sombria.

Seu palavrório incita a discriminação, a hostilidade e a violência contra a população LGBTQIA+. Sendo titular do MEC, tudo o que fala, faz ou deixa de fazer reverbera no tecido social, tem consequências concretas. Por isso, o ministro precisa ser responsabilizado.

João Gabriel de Lima*: A ditadura explícita e a disfarçada

O Estado de S. Paulo.

Situação do Brasil não é comparável à da Rússia ou à da Hungria, mas é bom ficar de olho

É fácil se ver no meio de uma manifestação ao caminhar pelas ruas de Budapeste, a belíssima capital da Hungria. De um lado do rio Danúbio, em Buda, o partido ultraconservador Mi-hazank exibe seus símbolos patrióticos. Do outro, em Peste, militantes antivacina prestam solidariedade aos caminhoneiros canadenses. Todos os anos há uma enorme parada gay, sem repressão policial.

Parece uma democracia, mas não é. Livros de temática inclusiva são multados, uma universidade inteira acabou expulsa do país por abrigar intelectuais críticos ao governo e a

Constituição foi reescrita para permitir a reeleição eterna do Fidesz, o partido do primeiroministro Viktor Orbán.

Nas duas últimas semanas foram divulgados os resultados anuais de dois rankings de democracia, o da revista britânica The Economist e o do instituto V-dem, que é sediado em Gotemburgo, na Suécia. Tais rankings são especialmente necessários em casos como o da Hungria, em que o autocrata de plantão, Viktor Orbán, usa o manto da democracia para esconder um duro regime autoritário. Os dois estudos estão anexados à versão digital da coluna.

Bolívar Lamounier: Os dois pês (PPS) que nos globalizaram

O Estado de S. Paulo

Escusado dizer que estou me referindo à globalização engendrada pela pandemia e a agressão russa à Ucrânia

Na terça-feira passada (8/3), com sua habitual competência, o embaixador Rubens Barbosa publicou neste espaço um artigo apontando dramáticas vulnerabilidades do Brasil no tocante ao comércio exterior, a áreas estratégicas e a inovação e segurança.

Com sua vasta bagagem, Rubens Barbosa poderia ter estendido sua análise a mais umas 40 áreas. Não o fez, em parte por falta de espaço, mas em parte também porque sua boa alma não lhe permitiu empurrar os leitores para uma depressão mais profunda do que esta que já estamos vivenciando. Eu gostaria de seguir seu sábio exemplo, mas preciso me ater ao fato de havermos, agora sim, chegado à globalização. Não à globalização com que muitos sonharam, conduzida como opção e mediante critérios nossos. Escusado dizer que estou me referindo à globalização engendrada pelos dois pês (PPS), a pandemia e a agressão russa à Ucrânia. No que se refere ao Brasil, a pandemia já causou um belo estrago em nossas contas fiscais, mas teve o mérito de nos ensinar uma certa humildade, mostrando-nos que, sem o resto do mundo, muitos de nós morreriam por falta de imunizantes. A segunda, movida pelos coturnos, tanques e mísseis russos, reduziu-nos à mais completa impotência.

Ascânio Seleme: Presidente, o Estado é laico

O Globo

Alguém consegue imaginar Fernando Henrique Cardoso chorando copiosamente diante de pastores evangélicos e dizendo que conduziria o país na direção que eles desejassem? Ou Lula? Ou Michel Temer? Não, jamais. Trata-se de cenário impensável até três anos atrás. Agora, com Bolsonaro, um episódio desse não apenas é possível como de fato aconteceu. O presidente ofereceu a Nação brasileira a líderes evangélicos em cerimônia no Palácio do Planalto na terça-feira passada. E o que se viu? O Congresso reagiu com a força que a situação exigia? Não. O Supremo reagiu? Nada, ninguém se mexeu. Bolsonaro confrontou um dos princípios fundamentais da Constituição, que estabelece a laicidade do Estado, e ninguém se abalou.

Claro que Bolsonaro é um oportunista, estava fazendo campanha no horário de expediente e jamais conseguiria submeter o Estado brasileiro à vontade do grupo religioso que o abençoava com promessa de votos. Mas a simples intenção de terceirizar o poder concedido pelo eleitor é um absurdo que merecia a mais ampla desaprovação de todos. Não houve admoestação porque ninguém mais dá bola para as seguidas infrações ao bom senso e à ética e aos inúmeros crimes de responsabilidade cometidos pelo presidente. O fato, contudo, escancara uma linha de ação que Bolsonaro vem seguindo desde a sua posse e será mantida no caso da sua reeleição. E se constitui em grande problema a ser enfrentado.

Eduardo Affonso: Imagens que gritam

O Globo

A menina de 9 anos corre, nua e descalça, de braços abertos, gritando de dor, as costas queimadas por napalm. Outra menina, de uns 5 anos — a esqualidez não permite avaliar bem sua idade — , está no chão, também nua, o corpo pendido para a frente, observada de perto por um abutre. O menino de 3 anos, camiseta vermelha, calças azuis, sapatinhos bem amarrados, jaz de bruços, o rosto tocado pelas ondas.

Quem viu essas imagens não as esquecerá. Kim Phuc, vietnamita, fugia de um bombardeio, em 8 de julho de 1972. A sudanesa, cujo nome não se sabe, estava à beira da inanição e tomava fôlego, a caminho de um posto de saúde, em 11 de março de 1993. Aylan Kurdi, sírio, cruzava o Mediterrâneo numa viagem desesperada, até a madrugada daquele 2 de setembro de 2015.

As fotos não puseram fim ao horror no Vietnã, no Sudão ou na Síria, mas mostraram ao mundo a tragédia numa escala que qualquer ser humano consegue apreender. Milhões de vítimas são algo impalpável — uma criança ferida, morta ou à morte é um filho, um sobrinho, somos nós mesmos.

Pablo Ortellado: A esquerda que apoia o imperialismo

O Globo

É perturbador acompanhar o debate na esquerda sobre a invasão à Ucrânia. Logo no começo do conflito, o perfil do PT no Senado no Twitter publicou nota dizendo que “condena a política de longo prazo dos EUA de agressão à Rússia e de contínua expansão da Otan em direção às fronteiras russas”. Depois de ser criticada, a nota foi apagada, e manifestações individuais de senadores petistas contrários à invasão foram retuitadas. Mas a primeira nota ter saído mostra que forças relevantes no partido consideram a invasão justificada. A nota oficial do PT, publicada dois dias depois, reflete bem essa ambivalência, condenando uma solução militar, mas não a invasão: “Entendemos que a solução do contencioso entre Rússia e Ucrânia deve se dar de forma pacífica, utilizando todas as possibilidades de mediação em fóruns multilaterais”. Em sites de esquerda, predomina o apoio à invasão russa, em clima de torcida.

Carlos Alberto Sardenberg: É a Rússia, não a URSS, que ataca a Ucrânia

O Globo

Muita gente, lá fora e aqui, está cometendo um grande equívoco: pensar a Rússia como se fosse a União Soviética. Não é.

No tempo da URSS, Moscou tinha uma mensagem não apenas para a Europa, mas para o mundo todo. O marxismo soviético era uma construção completa: definia desde a organização da sociedade política, da produção e distribuição de riqueza até a vida cultural.

Mais importante: essa ideologia era partilhada mundo afora. Nos países já no âmbito da URSS, havia partidos, militância e apoios locais ao marxismo soviético.

Não se tratava de uma “simples” dominação externa, mas de identidade ideológica, pelo menos de parte das populações.

Mais ainda: em muitos países que estavam na órbita do Ocidente, havia partidos comunistas de sólida representação popular. Itália e França, por exemplo.

Marcus Pestana*: O peixe morre é pela boca

A sabedoria popular tem interessante forma de se expressar através de ditados, que se repetem por décadas e gerações. “O peixe morre é pela boca” aconselha administrar bem as palavras, não falar demais.  Uso o ditado popular para realçar um sábio conselho para a vida, particularmente na política, principalmente na era das frenéticas redes sociais. Mas existem outras formulações populares como “Quem fala demais, acaba dando bom dia a cavalo”, uma advertência àqueles que não sabem escutar, apenas falam, interditando o diálogo. Ou, ainda, “Em boca fechada, não entra mosquito”, recomendando prudência e ponderação nas opiniões.

Teve grande repercussão o evento envolvendo o apresentador Monark, do canal de entrevistas FLOW, um dos de maior audiência na internet, envolvendo também o deputado federal Kim Kataguiri (PODEMOS/SP). Refletindo um liberalismo ingênuo e um anarquismo radical, defenderam a possibilidade de existência de um Partido Nazista. Monark tem 31 anos e Kim, 26. Encontraram forte resistência da deputada Tábata Amaral (PSB/SP), 28 anos, que também estava no estúdio, e de forma consistente defendeu que não pode ter existência legal uma corrente que assumidamente conspira contra a democracia, defende o totalitarismo e carrega uma visão supremacista racial. Diga-se, de passagem, que nenhum dos dois defendeu ou defende o nazismo. E que o FLOW era um programa agradável, leve, inovador, descontraído. Vi várias entrevistas, era uma proposta interessante. Mas a irresponsabilidade com as palavras e o descuido com os conteúdos levaram à demissão do entrevistador e a um processo de cassação do deputado federal. Às vezes, a agressividade exagerada, a arrogância de quem acha que tudo sabe, a tentativa de ser excessivamente original, pode gerar um efeito bumerangue e abater o autor do abuso de expressão.

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Não se equilibra o mercado de petróleo no improviso

O Globo

A guerra da Ucrânia afeta o preço do petróleo e a inflação no mundo todo, mas cada país reage a seu modo. A Europa debate como reduzir a dependência da energia russa. Estados Unidos e outros países liberam seus estoques estratégicos, mas ao mesmo tempo discutem até que ponto é razoável ampliar subsídios e isenções de impostos a combustíveis fósseis — de quase US$ 1 milhão por minuto no planeta. No Brasil, a questão é outra.

Pelas postagens de políticos nas redes sociais, parece que vivemos num planeta à parte, e nosso problema se resume à política de preços da Petrobras. Depois de semanas segurando aumentos, a estatal enfim reajustou os preços nesta semana, mesmo assim aquém do patamar do mercado internacional.

Não importa. Do governista Arthur Lira ao oposicionista Luiz Inácio Lula da Silva, passando pelo presidente Jair Bolsonaro, todos os matizes do espectro ideológico parecem encarar a empresa como responsável pelos aumentos, apenas porque ela pratica os preços de mercado. É como se o histórico desastrado de intervenções e desabastecimento nada tivesse ensinado ao país.