Valor Econômico
Para Lima Barreto, havia patriotismo e
“patriotada”
Um dia após o presidente Luiz Inácio Lula
da Silva subir a rampa do Palácio do Planalto, a ala radical dos apoiadores de
seu antecessor, Jair Bolsonaro, que pedia intervenção militar para impedir a
posse do petista, levantou o acampamento diante do quartel-general em Brasília.
Muitos recolheram as armas após o choque de realidade dos últimos dias.
Na “live” de despedida, Bolsonaro jogou um
balde de água fria sobre os bolsonaristas inconformados: condenou a “tentativa
de ato terrorista” em Brasília, em alusão à bomba plantada para explodir no
aeroporto, alertou que o mundo não vai “acabar no dia 1º ” e rechaçou a ideia
de partirem para o “tudo ou nada”.
No dia seguinte, foi a vez do então presidente em exercício, Hamilton Mourão, em rede nacional de televisão, criticar as lideranças cujo silêncio contribuiu para o clima de “caos e desagregação”, em recado velado a Bolsonaro. Observou que a “alternância do poder em uma democracia é saudável” e fez um apelo à paz nacional: “tranquilizemo-nos, retornemos à normalidade da vida”.
As mensagens de Bolsonaro e Mourão
estimularam os amotinados na frente dos quartéis a se renderem à democracia. É
provável que alguns deles retornaram aos seus lares questionando os excessos de
um patriotismo superficial, marcado pelo “slogan” “Deus, pátria e família”, que
representa apenas uma parcela da sociedade.
A imagem de um grupo de apoiadores do
ex-presidente em conflito com um patriotismo notadamente desvirtuado convida a
uma viagem no tempo, ao ano de 1915, quando Lima Barreto publicou o romance
“Triste fim de Policarpo Quaresma”. A obra foi considerada pelos críticos como
a denúncia de um patriotismo “romântico e artificial” alimentado pelas elites e
da frágil democracia no começo da República.
É oportuna a menção ao romance quando
acabamos de celebrar o centenário de morte de Lima Barreto, ocorrido em
novembro de 2022. O escritor vivenciou os anos da primeira República em que as
promessas de igualdade e justiça social converteram-se em mais exclusão e
rebeliões no país.
O final do século XIX era o cenário da
jornada do Major Policarpo Quaresma, avesso a estrangeirismos, e obcecado pela
busca da língua e dos costumes verdadeiramente nacionais. Essa obsessão o
levava a situações insólitas, tal qual alguns bolsonaristas expostos ao frio e
à chuva, em nome de uma causa ilegal e antidemocrática.
Se alguém estendia a mão para
cumprimentá-lo, o Major a recolhia, desatava a chorar e a esgoelar. Alegava que
o aperto de mãos é fruto de estrangeirismos e que o cumprimento brasileiro
deveria ser como o dos tupinambás, que choravam ao rever os amigos.
Contrário ao “petit-pois”, ele substituía
as ervilhas pelo “feijão guandu”. Acreditava que a língua portuguesa era um
empréstimo dos portugueses. Por isso, enviou ofício suplicando ao Congresso que
decretasse o tupi-guarani como língua oficial. Acabou internado em um hospício.
Após uma audiência com o Marechal Floriano
Peixoto, alistou-se no Exército para lutar na Revolta da Armada contra os inimigos
da República. Ao fim, desapontou-se com a guerra, foi acusado de traição e
terminou os seus dias na cadeia, questionando o patriotismo que o inspirou e o
guiou por toda a vida.
A historiadora e escritora Lilia Schwarcz,
autora de “Lima Barreto - Triste Visionário”, ressaltou em conversa com a
coluna que não é possível comparar o patriotismo do Major Policarpo com o lema
“Deus, pátria, família” dos seguidores de Bolsonaro.
“Policarpo era um personagem que acreditava
num outro Brasil”, explica a professora da USP. “Ele imaginou que a República
traria liberdade, igualdade, mais valores brasileiros e encontrou um país
estrangeirado, como Lima Barreto costumava dizer. Um país que viveu um estado
de sítio”.
Para a historiadora, o patriotismo de
Policarpo, que também era o de Lima Barreto, era “muito positivo”. Ela sublinha
que não é contra o “patriotismo”, mas se opõe à “patriotada”, ou seja, “quando
a pátria vira um slogan, que representa apenas um grupo da sociedade, que é o
que aconteceu no Brasil de 2018 a 2022”.
Lima Barreto já nos anos de 1920 defendia
um Brasil “mais amplo e mais plural”. Criticou a discriminação racial no
período pós-abolição, era titular da coluna “não as matem”, em defesa das
mulheres, e era crítico ao “jornalismo de Estado”. Cunhou o termo “patriotada”
nos textos que assinou sobre o centenário da Independência em 1922. Afirmava
que os brasileiros foram “contaminados pelo vírus da patriotada”, ao tecer críticas
contumazes ao autoritarismo, à intolerância e ao fanatismo.
Questionada sobre o que Lima Barreto diria
sobre os grupos de patriotas radicais que seguem Bolsonaro - e que não
representam a totalidade dos apoiadores do ex-presidente -, a professora da USP
afirma que o escritor seria “um crítico do militarismo do governo Bolsonaro”.
Lilia Schwarcz viajou a Brasília para a
inauguração da exposição “Brasil Futuro: as Formas da Democracia”, no Museu
Nacional da República, da qual é uma das curadoras. Concebida para dialogar com
o governo de transição, a exposição reúne 180 obras de mais de uma centena de
artistas, como Adriana Varejão e Ailton Krenak. A mostra propõe-se a apresentar
os artistas que foram tão prejudicados “pelo desmonte da cultura e que sofreram
com a censura” no atual governo.
Um dos símbolos da exposição o óleo sobre
tela “Orixás”, da conceituada artista Djanira, que foi retirada do palácio na
gestão Bolsonaro. Os curadores da exposição encontraram “um furo na tela”,
provavelmente feito com uma caneta. “Isso mostra o desprezo que esse governo
teve aos artistas”, criticou.
Os curadores querem, com a exposição,
provocar a emoção e a reflexão sobre as várias faces da democracia. “Eu penso
como Mário Pedrosa, nos momentos de crise, o melhor a se fazer é ficar perto
dos artistas”. Pedrosa sustentava que a arte e a política são as duas formas
mais elevadas da expressão humana. Lima Barreto conciliou ambas ao narrar a
triste saga do patriota romântico Policarpo Quaresma.
Li o livro faz tempo,muito bom o texto de Lima Barreto.
ResponderExcluirA professora Julita Tavares, a brava, fez a gente ler aos 10 anos, na 4a série.
ResponderExcluirEra uma professoríssima! 👏