terça-feira, 3 de janeiro de 2023

Luiz Gonzaga Belluzzo* - A literatura e o Rei do futebol

Valor Econômico

O futebol trouxe ao proletário a chave ao autoconhecimento, habilitando-o a uma ascensão

Avaliada sob escrutínio dos critérios e valores da vida moderna - valores que felizmente sobrevivem aos frequentes soluços da barbárie - a controvérsia político-esportiva sempre foi travada entre a animosidade e a paixão.

Os amantes do futebol, rivais como torcedores de seus times, irmanaram-se na comoção que nos abalou. Pelé morreu? Um imortal não morre, sobrevive por mais de 15 séculos, com bem disse Andy Warhol.

Nada impressiona mais um brasileiro, nestes tempos globais, do que a expressão: isto é do Primeiro Mundo. Objetos, eventos, comportamentos, instituições são avaliados - positiva ou negativamente - conforme a maior ou menor adequação ao sedutor critério do primeiro mundismo. O Rei-Atleta que encantou nossos encantos pelo jogo bonito era de Outro Mundo ou, se preferir o leitor, era de Todos os Mundos.

Por isso, não vou cometer a ousadia de derramar sobre ele minhas pobres palavras. Entrego esse mister aos poetas e escritores brasileiros. “Sou homem e nada do que é humano me é estranho”. (Homo sum et nihil humani a me alienum). Terêncio não faria cara feia diante das homenagens literárias prestadas ao Rei do futebol. A sabedoria dos homens das letras trata a questão humano-futebolística com a paixão dos homens e mulheres.

Começo com um verso de Carlos Drummond de Andrade:

“Pelé o sempre rei republicano
o povo feito atleta na poesia do jogo mágico”.

Em outras páginas Drummond prossegue. “Do Jeca Tatu de Monteiro Lobato ao esperto Garrincha e a esse fabuloso menino Pelé, o homem humilde do Brasil se libertou de muitas tristezas. Já tem caminhos abertos à sua frente e já sabe abri-los, por conta própria, quando não é assistido pelos serviços oficiais ou de classe a que cumpre melhorar as condições de vida coletiva. O futebol trouxe ao proletário urbano e rural a chave ao autoconhecimento, habilitando-o a uma ascensão a que o simples trabalho não dera ensejo”.

Mas agora, vemos o futebol operando ou espelhando ainda maiores transformações, pois a conquista do campeonato mundial demonstrou a meu ver um maior entrosamento de forças sociais, a máquina burocrática do esporte deixando de operar suas porcas e parafusos de intriga, ambição e politicagem; consciência mais funda dos dirigentes; carta branca aos peritos para os trabalhos de formação e aprimoramento da equipe; e a contenção geral para evitar desbordamentos emocionais prévios, comprometedores do equilíbrio psíquico dos esportistas.

Tudo isso, em termos de educação nacional, é confortador, e permite alongar a vista para mais longe do campo de jogo, dá à gente um certo prazer matinal de ser brasileiro, menos por haver conquistado a Taça Jules Rimet do que por havê-la merecido. Prazer límpido, sem xenofobia: é justamente por nos sentirmos iguais a outros povos capazes de vencer campeonato que nos despimos de pretensões de superioridade ou domínio político”.

Passo a bola a Otto Lara Resende:

“Em 1958 eu morava em Bruxelas e vi o delírio que o Brasil despertava. Pelé e Garrincha eram a dupla de mais cartaz no mundo. Nem os Beatles, que eram quatro e tiveram o cuidado de aparecer depois, lhes chegavam aos pés. No Polo Norte, em 1965, vendo o sol da meia-noite, um esquimó me pulou no pescoço na maior alegria e agitação.

Só depois vim a saber a razão. Porque eu era brasileiro. “Pelé! Pelé!” - gritava ele, eufórico. O esquimó fedia um pouco a peixe, mas tudo bem. Dava gosto ser brasileiro. O futebol unia todo mundo num só grito. Rico e pobre, branco e negro, analfabeto e intelectual. Até o Kissinger gostava”.

Encerro com Nelson Rodrigues em seu artigo sobre o milésimo gol de Pelé:

“Muitos lamentam que tenha sido de pênalti. Meu Deus do céu, e daí? Na sua penetração fulminante, tinha batido toda a defesa adversária. Ia entrar com bola e tudo. E sofreu o pênalti. Não foi um companheiro, mas ele próprio quem foi derrubado. Não queria cobrar. Mas seus companheiros fizeram uma greve linda contra o pênalti. Ninguém tocaria na bola. E, então, 100 mil pessoas, na gigantesca cadência coral, começaram a exigir: - “Pelé, Pelé, Pelé!”. Uma das que mais se esganiçavam era a grã-fina das narinas de cadáver. Uma louríssima suspirou, arrebatada: “Com esse eu me casava!”.

E quando Pelé estourou as redes, o Estádio Mário Filho voou pelos ares. Desde Pero Vaz de Caminha, nenhum brasileiro recebera apoteose tamanha. De repente, como patrícios do guerreiro, cada um de nós sentiu-se um pouco coautor do feito. Pelé voou, arremessou-se dentro do gol. Agarrou e beijou a bola. E chorava, o divino crioulo. Cem mil pessoas, de pé, aplaudiam como na ópera. Depois, assistimos à volta olímpica. Pelé com a camisa do Vasco. Naquele momento éramos todos brasileiros como nunca, apaixonadamente brasileiros”.

*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. 

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