Valor Econômico
O futebol trouxe ao proletário a chave ao
autoconhecimento, habilitando-o a uma ascensão
Avaliada sob escrutínio dos critérios e
valores da vida moderna - valores que felizmente sobrevivem aos frequentes
soluços da barbárie - a controvérsia político-esportiva sempre foi travada
entre a animosidade e a paixão.
Os amantes do futebol, rivais como
torcedores de seus times, irmanaram-se na comoção que nos abalou. Pelé morreu?
Um imortal não morre, sobrevive por mais de 15 séculos, com bem disse Andy
Warhol.
Nada impressiona mais um brasileiro, nestes
tempos globais, do que a expressão: isto é do Primeiro Mundo. Objetos, eventos,
comportamentos, instituições são avaliados - positiva ou negativamente -
conforme a maior ou menor adequação ao sedutor critério do primeiro mundismo. O
Rei-Atleta que encantou nossos encantos pelo jogo bonito era de Outro Mundo ou,
se preferir o leitor, era de Todos os Mundos.
Por isso, não vou cometer a ousadia de derramar
sobre ele minhas pobres palavras. Entrego esse mister aos poetas e escritores
brasileiros. “Sou homem e nada do que é humano me é estranho”. (Homo sum et
nihil humani a me alienum). Terêncio não faria cara feia diante das homenagens
literárias prestadas ao Rei do futebol. A sabedoria dos homens das letras trata
a questão humano-futebolística com a paixão dos homens e mulheres.
Começo com um verso de Carlos Drummond de Andrade:
“Pelé o sempre rei republicano
o povo feito atleta na poesia do jogo mágico”.
Em outras páginas Drummond prossegue. “Do
Jeca Tatu de Monteiro Lobato ao esperto Garrincha e a esse fabuloso menino
Pelé, o homem humilde do Brasil se libertou de muitas tristezas. Já tem
caminhos abertos à sua frente e já sabe abri-los, por conta própria, quando não
é assistido pelos serviços oficiais ou de classe a que cumpre melhorar as
condições de vida coletiva. O futebol trouxe ao proletário urbano e rural a
chave ao autoconhecimento, habilitando-o a uma ascensão a que o simples
trabalho não dera ensejo”.
Mas agora, vemos o futebol operando ou
espelhando ainda maiores transformações, pois a conquista do campeonato mundial
demonstrou a meu ver um maior entrosamento de forças sociais, a máquina
burocrática do esporte deixando de operar suas porcas e parafusos de intriga,
ambição e politicagem; consciência mais funda dos dirigentes; carta branca aos
peritos para os trabalhos de formação e aprimoramento da equipe; e a contenção
geral para evitar desbordamentos emocionais prévios, comprometedores do equilíbrio
psíquico dos esportistas.
Tudo isso, em termos de educação nacional,
é confortador, e permite alongar a vista para mais longe do campo de jogo, dá à
gente um certo prazer matinal de ser brasileiro, menos por haver conquistado a
Taça Jules Rimet do que por havê-la merecido. Prazer límpido, sem xenofobia: é
justamente por nos sentirmos iguais a outros povos capazes de vencer campeonato
que nos despimos de pretensões de superioridade ou domínio político”.
Passo a bola a Otto Lara Resende:
“Em 1958 eu morava em Bruxelas e vi o
delírio que o Brasil despertava. Pelé e Garrincha eram a dupla de mais cartaz
no mundo. Nem os Beatles, que eram quatro e tiveram o cuidado de aparecer
depois, lhes chegavam aos pés. No Polo Norte, em 1965, vendo o sol da
meia-noite, um esquimó me pulou no pescoço na maior alegria e agitação.
Só depois vim a saber a razão. Porque eu
era brasileiro. “Pelé! Pelé!” - gritava ele, eufórico. O esquimó fedia um pouco
a peixe, mas tudo bem. Dava gosto ser brasileiro. O futebol unia todo mundo num
só grito. Rico e pobre, branco e negro, analfabeto e intelectual. Até o
Kissinger gostava”.
Encerro com Nelson Rodrigues em seu artigo
sobre o milésimo gol de Pelé:
“Muitos lamentam que tenha sido de pênalti.
Meu Deus do céu, e daí? Na sua penetração fulminante, tinha batido toda a
defesa adversária. Ia entrar com bola e tudo. E sofreu o pênalti. Não foi um
companheiro, mas ele próprio quem foi derrubado. Não queria cobrar. Mas seus
companheiros fizeram uma greve linda contra o pênalti. Ninguém tocaria na bola.
E, então, 100 mil pessoas, na gigantesca cadência coral, começaram a exigir: -
“Pelé, Pelé, Pelé!”. Uma das que mais se esganiçavam era a grã-fina das narinas
de cadáver. Uma louríssima suspirou, arrebatada: “Com esse eu me casava!”.
E quando Pelé estourou as redes, o Estádio
Mário Filho voou pelos ares. Desde Pero Vaz de Caminha, nenhum brasileiro
recebera apoteose tamanha. De repente, como patrícios do guerreiro, cada um de
nós sentiu-se um pouco coautor do feito. Pelé voou, arremessou-se dentro do
gol. Agarrou e beijou a bola. E chorava, o divino crioulo. Cem mil pessoas, de
pé, aplaudiam como na ópera. Depois, assistimos à volta olímpica. Pelé com a
camisa do Vasco. Naquele momento éramos todos brasileiros como nunca,
apaixonadamente brasileiros”.
*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp.
Pelé foi vascaíno antes de ser santista.
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