Folha de S. Paulo
Cenas da invasão aos três Poderes exprimem
urgência contra autoritarismo
A criança tem apenas 15 dias, mas parece
destinada a honrar o mote do pai: "nunca antes na história desse
país". O governo viveu ineditismo, intensidade e risco, tudo em grau
elevado, nessas suas duas semanas de vida. Foi um tobogã de emoções:
euforia, medo, alívio.
O coração subiu à boca do país todo, mas
batia em ritmos diferentes. Isso se viu nas três cenas brasilienses, a da
posse, a da invasão e a da retomada.
A da posse deu capa no New York Times e circulou o mundo, graças à foto que Bolsonaro, sem querer, produziu. Subida de rampa inédita porque o representante carregou os representados.
Parte simbolizou a maioria, o degrau de
baixo da escada social em renda, tônica perene de Lula. Outros representaram todos os enjeitados pela gestão anterior:
negros, povos indígenas, pessoas com deficiência e, indiretamente, autistas,
razão para evitar os tiros de canhão, que também assustam cachorros, lá encarnados na Resistência.
O conjunto compôs imagem de uma nação
diversa e inclusiva. A triagem de subidores da rampa agradou às duas esquerdas,
a redistributivista e a identitária.
Parecia "o reencontro do país consigo mesmo", como
Lula disse em sua primeira posse. Não foi.
Se um tanto de brasileiros festejou, outro
tanto torceu o nariz. Uma colunista do Estado de Minas expressou a parte mais
educada dos discrepantes: "índios, pretos e estropiados", embora
"compondo nosso povo", deveriam ficar fora das vistas: "colocar
essa seleção na cara da nação me pareceu uma forçada de mão."
Outros de mesmo pensamento de fato forçaram
a mão. Saíram do zap e da porta dos quartéis para mudar o enredo em Brasília.
Não precisaram das armas que cultuam, pois não encontraram resistência ou acharam
leniência. E se impuseram rampa acima, Parlamento adentro, STF abaixo.
O bando verde e amarelo tomando de assalto o Planalto foi nova
capa do New York Times. Era o mesmo cenário, a nação subidora era outra.
Nação religiosa, entoou cânticos, louvou, rezou, grata pela dádiva do golpismo
que julgava bem-sucedido. Nação avessa à alta cultura depredou obras de arte.
Nação que se proclama patriota, mas que
destruiu documentos e objetos da história nacional. Nação autoritária, que
abomina as instituições democráticas. Nação violenta, que quebrou, urinou e até defecou em símbolos
da democracia.
A primeira subida da rampa foi da esquerda
democrática, a segunda, da extrema direita autoritária. As ocasiões puseram em alto
relevo traços cruciais de cada lado: numa, a inclusão do diferente, noutra, seu
aniquilamento. Dois pedaços do país que se desprezam mutuamente.
A primeira cena é mais bonita, mas uma
terceira exprime o pragmatismo que a urgência do momento exige. É a da descida
da rampa pelos democratas de braços dados, como na campanha pelas eleições
diretas.
Unidos contra o mesmo inimigo comum, que
parecia morto e se reapresentou de corpo inteiro, o autoritarismo. De novo
juntos, resistiram à tentativa golpista e aplanaram o estrago, do qual Bolsonaro é líder omisso ou confesso.
Os que lá estavam têm ideias muito
diferentes sobre quase tudo –do aborto à política fiscal. Mas demonstraram
acordo mínimo sobre as regras do jogo que permite continuar a jogá-lo.
A foto, contudo, não será fato se os trogloditas e os que os nutrem com recursos materiais e
políticos não forem exemplarmente punidos. Sem isso, a corda fina que
sustenta a democracia estará sempre prestes a arrebentar.
*Professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento
Angela Alonso.
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