O Globo
A confusa comunicação do governo parece
mostrar uma inadequação na sua ordem de prioridades
Nesta semana, o presidente Lula fez sua
primeira viagem internacional. Ele escolheu a Argentina e o Uruguai como
destinos, sinalizando que o momento de distanciamento do Brasil de sua
vizinhança está chegando ao fim.
Os países são nossos parceiros no Mercosul. Na década de 1990, após o fim de uma era de ditaduras, nossos países espelhavam a Europa e queriam usar o comércio para estreitar relações políticas historicamente conturbadas. O objetivo era a criação de um espaço de livre circulação de mercadorias, serviços, pessoas e capitais na nossa região.
O problema é que, enquanto na Europa o
processo evoluiu lentamente desde a livre circulação restrita a produtos como
carvão e aço até uma união monetária, o Mercosul por vezes iniciou etapas
posteriores do processo sem consolidar as anteriores.
Atualmente, o Mercosul é o que em economês
se chama de uma “união aduaneira”. Isso significa que, além de não haver
impostos de importação entre os membros, eles compartilham os mesmos impostos
de importação com países terceiros e harmonizam suas regulações para que bens
possam fluir livremente entre os países uma vez dentro do bloco.
Embora os membros do Mercosul compartilhem
impostos de importação com o resto do mundo, há muitas exceções a esta lista
compartilhada. Em geral, as exceções são utilizadas para manter impostos mais
altos que os definidos em conjunto e beneficiar empresários locais.
Há também outras barreiras que impedem a
maior integração na região. Na Europa, um caminhão cruza da França para a
Alemanha sem nem parar na fronteira. Aqui, as regulações sanitárias e técnicas
não estão completamente alinhadas, o que cria filas nas fronteiras e custos
para o intercâmbio entre os países da região.
Outra vantagem de uniões aduaneiras é a
capacidade de negociar acordos externos com maior poder de barganha. Ocorre que
na maior parte das últimas duas décadas não houve apetite no Brasil e na
Argentina para avançar na negociação externa. E, no Mercosul, o grupo só se
move adiante em qualquer decisão com aprovação unânime de todos os membros.
Por exemplo, o acordo de livre comércio
entre o Mercosul e a União Europeia se arrasta há mais de uma década. Mais
surpreendente, nos últimos anos não conseguimos nem avançar em acordos mais
profundos com outros países vizinhos que ainda não fazem parte do Mercosul,
como os da Aliança do Pacífico.
Isso tem levado a que alguns membros, como
o Uruguai, sigam seu próprio caminho. O país cisplatino está negociando um
acordo bilateral de livre comércio com a China, algo que a diplomacia
brasileira diz ser contra as regras do Mercosul.
Numa notícia que abalou a semana, na
declaração conjunta entre Lula e o presidente da Argentina, Alberto Fernández,
consta a possibilidade de criação de uma unidade de conta comum que funcione
como alternativa ao dólar no comércio entre países da região.
Neste momento, essa ideia parece se
encaixar na tendência do Mercosul de começar etapas mais avançadas de
integração antes de consolidar as etapas anteriores.
Por enquanto, há mais perguntas que
respostas, mas, com base num texto publicado ano passado por Fernando Haddad e
Gabriel Galípolo, a ideia parece ser de uma unidade de conta lastreada em
outras moedas (similar aos Direitos Especiais de Saque, a “moeda” do FMI), que
permita o comércio internacional mesmo sob escassez de dólares.
Mas se ela for lastreada em dólares, retira
poupança externa dos países da região. E se for lastreada em pesos e reais,
alguém no Brasil vai ter que segurar o risco cambial de ter pesos argentinos
entre seus ativos: ou o exportador, ou o Banco Central, ou os bancos públicos,
ou o Tesouro Nacional.
Dizer que não há risco é uma quimera. Nesse
cenário de maior risco, nem é garantido que a proposta estimule o comércio na
região. Igualmente importante, se o objetivo for simplesmente financiar
exportações brasileiras, como outros países fazem, em tese nem seria necessária
uma nova moeda. Se houver aceitação do lado argentino, essa unidade de conta
comum poderia ser… o real.
Retomar o esforço de integração regional no
continente é importante e pode render frutos políticos e econômicos. Mas a
confusa comunicação do governo parece mostrar uma inadequação na sua ordem de
prioridades. No lugar de uma proposta que, ao menos no médio prazo, parece um
pouco surreal, seria melhor apostar em resolver os muitos problemas do Mercosul
real.
Quem sabe,sabe.
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