Valor Econômico
É preciso aproveitar o fortalecimento
institucional nesta conjuntura imediata para cortar a cabeça do autoritarismo
Os violentos episódios do 8 de janeiro
representam o maior ataque à sede dos Poderes constituídos de nossa história
democrática. Digo “história democrática” porque certamente, noutras quadras
(não democráticas) de nossa trajetória como nação independente, coisas piores
ocorreram, seja no atinente à ruptura institucional propriamente dita, seja nos
meios utilizados em tentativas de derrogar a ordem constituída.
A Proclamação da República, primeiro evento marcante do aventureirismo militar na política nacional, deu-se sem maior confusão e pôs termo ao Império. Pouco depois, contudo, as duas Revoltas da Armada produziram enfrentamentos bélicos em virtude de disputas políticas opondo setores das próprias Forças Armadas - a Marinha, de um lado, o Exército, de outro. Nas mãos de militares, a República brasileira nascia como uma ditadura turbulenta, cedendo depois lugar não a uma democracia, mas a um regime oligárquico liderado por magnatas do agronegócio de então.
Na sequência, a “Revolução” de 1930, que
sepultou a República Velha, também ocorreu sem maiores sobressaltos de
brutalidade. Em 1937, o autogolpe de Vargas, que instituiu o Estado Novo,
ocorreu sem necessidade de recorrer à violência. Bastou dar seguimento à ordem
autoritária de fato vigente e alterar a ordem constitucional, abolindo de jure
a separação de Poderes, o pluripartidarismo e o federalismo. Também o Estado
Novo caiu sem necessidade de recorrer à força, quando, em 1945, Vargas ruma
para São Borja e tem sua ditadura substituída pela nossa primeira democracia.
Getúlio, contudo, seguiria integrado ao novo regime, do qual foi ator central
até seu suicídio, nove anos depois.
Nesse ínterim tivemos o que talvez tenha
sido o evento histórico mais assemelhado à intentona bolsonaresca do 8 de
janeiro: o levante armado dos integralistas contra o Palácio do Catete, numa
tentativa de derrubar a ditadura getulista, substituindo-a por outra, de corte
fascista. As semelhanças estão na violência utilizada contra a sede de um Poder
de Estado (o Executivo) e na inspiração fascista que a animou; as diferenças
estão no fato de que ali se atentava contra uma ditadura, enquanto agora o
ataque ocorreu contra uma democracia, e também na condição iletrada dos
fascistas de hoje, comparada ao requinte intelectual dos líderes daquele
movimento - Plínio Salgado, Miguel Reale e Gustavo Barroso.
Depois disso, a maior violência contra as
instituições foi o golpe de 1964 e a própria ditadura militar que originou.
Novamente, nos dois casos, a incolumidade física dos três poderes foi
preservada, embora sua integridade institucional tenha sido vilipendiada por
seguidos atos institucionais e outras medidas de arbítrio - como a cassação de
mandatos de representantes eleitos do povo.
O bárbaros da intentona bolsonaresca do 8
de janeiro, embora admiradores do golpe de 1964 e de sua ditadura, fizeram o
que nem ambos foram capazes: em sua tentativa de golpe depredaram a própria
sede dos três poderes, destruindo até mesmo relíquias históricas e o patrimônio
artístico. Não devemos nos espantar, afinal, isso é mesmo coisa de bárbaros.
Contudo, assim como na intentona integralista de 1938, a tentativa de golpe
fracassou; a reação do sistema político foi rápida e contundente, impedindo que
o vandalismo patrimonial e simbólico desse lugar à subversão da ordem
constitucional.
As causas do ataque às sedes dos três
Poderes foram perscrutadas de forma clara pela antropóloga Isabela Kalil em
entrevista concedida a “O Globo” de 10 de janeiro. Jair Bolsonaro preparou o
terreno para a sublevação durante os quatro anos de sua destrutiva Presidência.
Às paulatinas destruições administrativa, institucional e de políticas públicas
de sua gestão, todas orientadas para o solapamento de nossa democracia,
seguiu-se a dilapidação física das sedes dos três Poderes e de seu patrimônio
material e imaterial. A destrutividade é inerente ao bolsonarismo: deu a tônica
de seu governo-movimento e confere sentido ao movimento sociopolítico que lhe
dá base. Não é estranho que a um governo de destruição corresponda um movimento
sociopolítico de igual caráter.
A pronta reação de atores-chave do sistema
político-institucional - Judiciário, Executivo, Legislativo e governos
estaduais - foi fundamental para sua própria preservação. Aliás, durante o
quadriênio da presidência Bolsonaro, a essa reação de agora correspondeu a
contínua resistência dos atores institucionais: governos subnacionais lutaram
pela preservação de suas competências, a cúpula do Poder Judiciário pôs freios
às invectivas autoritárias do Executivo e o Legislativo (sobretudo durante o
biênio de Rodrigo Maia na presidência da Câmara) brecou iniciativas abusivas do
presidente.
Isso não ocorreu, como bem se sabe, no caso
do procurador-geral da República, cúmplice dos abusos bolsonarescos e
corresponsável pela barbárie em Brasília. Também alguns governos subnacionais
foram aliados do projeto autoritário do presidente - o do Distrito Federal, com
Ibaneis Rocha, um deles. Contudo, no conjunto, o sistema institucional,
submetido a estresse, foi capaz de resistir - e, se não o fizesse,
comprometeria sua própria sobrevivência.
Tal resistência não ocorreu sem custos.
Pesquisa Atlas feita logo após o 8 de janeiro mostra que nada menos que 40% dos
brasileiros acreditam na hipótese tresloucada de fraude nas últimas eleições.
Contingente não desprezível deles acredita haver motivos legítimos para a
intentona bolsonaresca. Ou seja, o bolsonarismo foi bem-sucedido na tarefa de
erodir significativamente a legitimidade das instituições de nosso Estado
Democrático de Direito. E é sobre essa legitimidade que se assenta a própria
capacidade das instituições de continuarem operando.
Será que, como diria Nietzsche, o que não
nos mata, nos fortalece? No curto prazo, talvez sim. Não há motivos, contudo,
para garantir que assim continue sendo, ao menos sem uma resposta dura,
exemplar e dentro da legalidade contra a barbárie. É preciso aproveitar a força
do momento.
*Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP
O autor fez um histórico interessante, mas fugiu da pergunta do seu título e não a respondeu. Num próximo artigo, quem sabe...
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