Folha de S. Paulo
Discurso hiperbólico conta pontos na arena
da concorrência política, mas tem consequências imprevistas
"E devemos nós, que somos os cônsules,
tolerar Catilina, abertamente desejoso de destruir o mundo inteiro pelo fogo e
a chacina?" Catilina urdia um golpe de Estado, não "destruir o mundo
inteiro" como discursou Cícero diante do Senado romano em 8 de novembro de
63 a.C. As Catilinárias figuram na origem de uma tradição de dois milênios de
retórica hiperbólica. O método serviu ao propósito de expor a conspiração na
Roma antiga. Não serve, contudo, para proteger a democracia no Brasil de hoje.
Atos golpistas, vandalismo ou terrorismo –o que aconteceu em Brasília no 8 de janeiro? A nota conjunta dos presidentes dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário utilizou as três classificações indiferenciadamente. A imprensa foi atrás. Mas elas não são equivalentes. Golpismo, sim, ainda que caótico: a finalidade explícita era acender a faísca de um golpe militar. Vandalismo, claro: eis uma descrição factual, que complementa a anterior. Mas terrorismo?
Na véspera do Natal, a polícia desativou um artefato
explosivo nos arredores do aeroporto da capital. Aquilo foi uma tentativa de
atentado terrorista, provando do que são capazes as franjas extremas do
bolsonarismo. Já os eventos do 8/1 não se enquadram em nenhuma das definições
teóricas de terrorismo, nem na (confusa) Lei Antiterrorismo brasileira. Por
que, então, gritar "terrorismo"?
O discurso hiperbólico conta pontos na
arena da concorrência política –e, nessa era de redes sociais, fabrica
"likes" em bolhas ideológicas. Tem, porém, consequências imprevistas
–ou, às vezes, desejadas mas propositalmente ocultadas. Quer um intercâmbio bom
para os dois lado? Acuse Bolsonaro de genocídio, não de crimes contra a saúde
pública. Você ganha urros orgiásticos de aprovação dos seus; ele terá, em
troca, a certeza da impunidade. O caso do terrorismo é similar.
Ações desarmadas de massa dirigidas contra
prédios públicos vazios que terminam com depredações de patrimônio não são
terrorismo, mesmo quando pretendem deflagrar um golpe militar. Nossa Lei
Antiterrorismo, adotada sob críticas de parte da esquerda, foi redigida de modo
a evitar sua aplicação contra movimentos sociais cujos atos que possam resultar
em danos patrimoniais. O único jeito de enquadrar as hordas de vândalos
bolsonaristas no tipo criminal seria reescrever a lei segundo as propostas
sugeridas, lá no início, pela direita.
Foram presos, às centenas, os bagrinhos
estúpidos que protagonizaram as destruições em Brasília. Se acusados de
terrorismo, nenhum deles experimentará a condição de réu. Vale o mesmo para os
peixes maiores, ainda leves e soltos: incentivadores, articuladores e
financiadores dos atos golpistas. A proteção da ordem democrática exige escalar
a ladeira da punição judicial, colocando-os atrás das grades. Esqueça a
catilinária: isso demanda a acusação certa.
O Brasil ama o esporte da conciliação por
cima: a tal "união nacional". Luís Roberto
Barroso falou, claro, em "terrorismo", para em
seguida, indagado sobre a conexão entre Bolsonaro e o 8/1, alertar: "Não
vamos atirar pedras". É o roteiro da punição dos bagrinhos por vandalismo,
o crime menor, e da impunidade para os peixões.
O maior dos peixes estava fora da cena
geográfica do crime. Ao que tudo indica, também não estava na cena operacional.
Contudo, a acusação correta o coloca na cena política dos atos golpistas:
Bolsonaro criou, ao longo de seu (des)governo, a trama narrativa que culminaria
no 8/1. O caminho que conduz à eventual responsabilização criminal do
ex-presidente parte daí e requer uma investigação eficaz sobre seus laços com
os coordenadores e financiadores da investida contra a ordem democrática.
Sem a punição legal dos peixões, o golpismo
sobreviverá em estado de latência. Nossos Cíceros, porém, preferem a oratória
grossa e vazia à ação judicial certeira.
Perfeito!
ResponderExcluirDemétrio defende que o empresário que tentou explodir 60 mil litros de gasolina de avião praticou uma tentativa de terrorismo. Mas nega que os patriotários do dia 08 de janeiro tenham praticado terrorismo. Pois eu acho que o dano que o empresário terrorista causaria seria menor que o dano causado pelos vândalos caso eles tivessem tido sucesso em seu empreendimento. Os patriotários não atacaram "prédios públicos vazios". Atacaram os três pilares nos quais se apoiam nossa democracia. E o que os patriotários e crentes adoradores do bezerro de ouro queriam? ditadura, tortura, AI-5, mortes aos milhares (o boçal disse que os gorilas de 64 tinham que ter matado 30 mil pessoas, inclusive FHC). O que está faltando é a justiça brasileira encarar tudo como um movimento só, animado pelo boçal. O mesmo pessoal que levou o empresário a tentar explodir 60 mil litros de gasolina levou os otários de ônibus para Brasília. Quem forneceu a bomba relógio? E o fulano que a polícia federal capturou com um fuzil de longo alcance? E o que faziam familiares de generais entre os que pediam golpe de estado na frente de quarteis? Resumindo todo esse movimento tem que ser abrangido pela justiça e seus responsáveis presos inclusive o animador disso tudo apesar da mediocridade pessoal dele.
ResponderExcluirMuito bom! A questão não é comparar danos e sim ter pegada jurídica para punir esses peixões que conspiram contra a democracia e financiam atos de vandalismo golpista. É disso que trata o artigo.
ResponderExcluirNão sei se é terrorismo,mas que parece parece.
ResponderExcluirUm movimento para derrubar uma democracia e instalar um regime que censura, sequestra, prende, tortura, mata e esconde ou destrói cadáveres é puro terrorismo.
ResponderExcluirIsto não torna "terrorista" a dona de casa que frequenta o acampamento ou o aposentado que entrou num dos palácios depois do quebra-quebra e só se fotografou lá dentro (sem nada ter destruído). Muitos daqueles golpistas cometeram outros crimes, sim, e deverão ser julgados por isto, mas é evidente que nem todos são (e provavelmente nem a maioria é) "terrorista(s)".
ResponderExcluirÉ necessário INDIVIDUALIZAR os crimes de cada invasor!
ResponderExcluirAlgum dos ilustres comentaristas pode , por favor, citar um caso concreto em que houve um ataque aberto e em massa (cerca de 4 mil pessoas) de "terroristas"? Se é assim, os brasileiros revolucionam a história, e em vez de Revolução Russa, de "Tomada do Palácio de Inverno", vão falar em "ataque terrorista" ao Palácio de Inverno ...
ResponderExcluirQuando uma quadrilha de quatro membros matam uma pessoa. Os quatro vão ser investigados por homicídio. Da mesma forma que os milhares de patriotários devem ser investigados por terrorismo. E da mesma forma que na quadrilha dos quatro há "divisão de trabalho": um foi o autor intelectual outro foi o motorista e outro foi o que fez o disparo que matou a vítima. Entre os milhares de patriotários tem os autores intelectuais, os profissionais do terrorismo propriamente dito e até a velhinha sexagenária vertida de bandeira do Brasil que já foi presa por vender crack. E uma perguntinha sobre o Palácio de Inverno os que invadiram o palácio fizeram um quebra-quebra com as obras de arte que devia ter lá também? E na Rússia os bolcheviques queriam Pão, Paz e Terra e os patriotários queriam AI5, tortura e ditadura militar. E foram financiados pelos nazilatifundiários.
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