O Globo
O poder civil e as instituições
democráticas continuam de pé após o assalto concertado do 8 de Janeiro
‘Bom
dia, democracia...” Começava assim, domingo passado, o texto estampado neste
espaço da edição impressa do GLOBO. Poucas horas depois, o tal “dia” virara
chumbo, “a democracia” esperneava para manter seu norte, e nada mais no país
podia ser qualificado de “bom”. Ainda assim, repete-se aqui a saudação — não
pela sua rima fácil, mas porque o poder civil e as instituições democráticas
continuam de pé após o assalto concertado do 8 de Janeiro.
Dê-se o nome que se queira à horda de bolsonaristas que investiu às cegas contra os marcos dos Três Poderes da República, terroristas não eram. Na acepção não jurídica da palavra, “terrorismo” é a propaganda por meio do ato, a pedagogia por meio do assassinato. Suas vítimas não costumam ser as mesmas que a audiência pretendida, e seu propósito está na disseminação da mensagem do medo, não tanto na derrota do inimigo — até por se saber inferior. Um dos paradoxos clássicos do terrorismo, por sinal, está em proliferar tanto quanto possível, não triunfar em lugar algum, mas renascer sempre.
Desde tempos imemoriais, o terrorismo tem
sido assim: ao mesmo tempo meio, mensagem e fim. Exceções à parte, atentados
costumam ser praticados por grupos, não por Estados. E, mais que tudo, não
costumam ser anunciados. Nem os fundamentalistas do Estado Islâmico alardeavam
data, local e hora em que degolariam suas vítimas, nem a Al-Qaeda de Osama bin
Laden aliciou de público executores do atentado do 11 de setembro de 2001, que
reverbera até hoje.
Nosso 8 de Janeiro de destruição pode ser
fatiado em várias camadas. Todas tiveram um mesmo propósito — o golpismo
fascista. Apenas variou o grau de consciência e responsabilidade final de cada
camada. A mais ostentatória e catártica parecia nada temer ao destroçar os
prédios do Congresso, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal.
Comemoraram a quebradeira com gozo.
— Não tem Dubai, não tem Paris, não tem
viagem que eu tenha feito na vida que seja melhor que esse dia — postou a loira
Aline Magalhães, de Ribeirão Preto, direto do topo do Congresso ocupado.
— Nada foi feito. Então viemos tomar o
poder, que é nosso por direito. A gente vai ser resistência até o dia que o
Exército intervier — proclamou Fabrizio Cisneros, outro dos primeiros 88
invasores identificados em poucas horas pelo Estado de S. Paulo.
Essa turma radicalizada durante 70 dias em
frente a quartéis cansara de esperar pela volta do seu Messias. Ocuparia os
Três Poderes, e o presidente Lula,
apavorado com o caos, decretaria a intervenção do Exército no Distrito Federal.
De acordo com esse roteiro imaginário, as Forças Armadas unidas, em vez de
restabelecer a ordem, anulariam o resultado das urnas e devolveriam o comando
do país ao novato Jair Messias Bolsonaro. Faltou combinar com Luiz Inácio Lula
da Silva, que não chegou a seu terceiro mandato presidencial por acaso. Embora
tomado de assombro pelo quebra-quebra da malta — parecia ser o pior, mas era
apenas a massa de manobra —, Lula não chamou o Exército para garantir a ordem
na capital federal. Despachou para Brasília um interventor civil, Ricardo
Cappelli, da confiança do ministro da Justiça, Flávio Dino.
Todos os erros anteriores ou posteriores à
tentativa de golpe por parte do novo governo — e foram inúmeros — empalidecem
quando comparados a essa decisão inicial.
Como se viu no decorrer da semana, eram
múltiplos, e ainda são muitos, os porões graduados da conspiração. Todos eles
com algum fio conectado ao núcleo do estamento militar golpista, alimentado há
quatro anos por Bolsonaro com cargos, benesses e afagos. Na comissão de frente
da tentativa de reverter a eleição de Lula está Anderson
Torres, delegado da Polícia Federal e ex-ministro da Justiça de
Bolsonaro. Nunca deixou de ser servil ao antigo chefe, como se viu em sua
encarnação mais recente de secretário da Segurança do Distrito Federal, nomeado
pelo governador laissez-faire Ibaneis Rocha.
Torres não apenas abriu as porteiras das
forças de segurança distritais que facilitaram a marcha dos insensatos. Agora
preso, ele terá de explicar a origem, autoria e finalidade de uma minuta de
golpe apreendida em sua residência brasiliense. A minuta de três páginas e sete
artigos aguardando assinatura de Jair
Bolsonaro era uma proposta de decreto para anular a vitória de
Lula nas eleições. São muitas as impressões digitais golpistas que haverão de
emergir do emaranhado de pistas, provas, depoimentos, delações, traições e
investigações futuras.
Ao cabo desta primeira semana de golpe
interrompido, as instituições se mostraram resistentes. A Advocacia-Geral da
União, o STF, com seu ministro-xerife Alexandre de Moraes na dianteira, os 27
governadores, a Procuradoria-Geral da República acordaram para a insubordinação
bolsonarista-militar que teima em rondar o país. O recém-instalado governo Lula
não parou de funcionar, e o Brasil pôde se emocionar com as radiosas cerimônias
de posse das ministras Anielle Franco (Igualdade Racial) e Sonia Guajajara (Povos
Indígenas).
Assim, pela segunda vez, “Bom dia,
democracia”. Não haverá uma terceira vez —seja por não ser necessário, seja
porque o pior venceu.
Lula é Lula Lula Lula.
ResponderExcluirCom inteligência, sabedoria política e paciência de Jó, vai colocar todos no chinelo.
A colunista entende do riscado.
ResponderExcluir