domingo, 15 de janeiro de 2023

Dorrit Harazim - Segunda vez

O Globo

O poder civil e as instituições democráticas continuam de pé após o assalto concertado do 8 de Janeiro

 ‘Bom dia, democracia...” Começava assim, domingo passado, o texto estampado neste espaço da edição impressa do GLOBO. Poucas horas depois, o tal “dia” virara chumbo, “a democracia” esperneava para manter seu norte, e nada mais no país podia ser qualificado de “bom”. Ainda assim, repete-se aqui a saudação — não pela sua rima fácil, mas porque o poder civil e as instituições democráticas continuam de pé após o assalto concertado do 8 de Janeiro.

Dê-se o nome que se queira à horda de bolsonaristas que investiu às cegas contra os marcos dos Três Poderes da República, terroristas não eram. Na acepção não jurídica da palavra, “terrorismo” é a propaganda por meio do ato, a pedagogia por meio do assassinato. Suas vítimas não costumam ser as mesmas que a audiência pretendida, e seu propósito está na disseminação da mensagem do medo, não tanto na derrota do inimigo — até por se saber inferior. Um dos paradoxos clássicos do terrorismo, por sinal, está em proliferar tanto quanto possível, não triunfar em lugar algum, mas renascer sempre.

Desde tempos imemoriais, o terrorismo tem sido assim: ao mesmo tempo meio, mensagem e fim. Exceções à parte, atentados costumam ser praticados por grupos, não por Estados. E, mais que tudo, não costumam ser anunciados. Nem os fundamentalistas do Estado Islâmico alardeavam data, local e hora em que degolariam suas vítimas, nem a Al-Qaeda de Osama bin Laden aliciou de público executores do atentado do 11 de setembro de 2001, que reverbera até hoje.

Nosso 8 de Janeiro de destruição pode ser fatiado em várias camadas. Todas tiveram um mesmo propósito — o golpismo fascista. Apenas variou o grau de consciência e responsabilidade final de cada camada. A mais ostentatória e catártica parecia nada temer ao destroçar os prédios do Congresso, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal. Comemoraram a quebradeira com gozo.

— Não tem Dubai, não tem Paris, não tem viagem que eu tenha feito na vida que seja melhor que esse dia — postou a loira Aline Magalhães, de Ribeirão Preto, direto do topo do Congresso ocupado.

— Nada foi feito. Então viemos tomar o poder, que é nosso por direito. A gente vai ser resistência até o dia que o Exército intervier — proclamou Fabrizio Cisneros, outro dos primeiros 88 invasores identificados em poucas horas pelo Estado de S. Paulo.

Essa turma radicalizada durante 70 dias em frente a quartéis cansara de esperar pela volta do seu Messias. Ocuparia os Três Poderes, e o presidente Lula, apavorado com o caos, decretaria a intervenção do Exército no Distrito Federal. De acordo com esse roteiro imaginário, as Forças Armadas unidas, em vez de restabelecer a ordem, anulariam o resultado das urnas e devolveriam o comando do país ao novato Jair Messias Bolsonaro. Faltou combinar com Luiz Inácio Lula da Silva, que não chegou a seu terceiro mandato presidencial por acaso. Embora tomado de assombro pelo quebra-quebra da malta — parecia ser o pior, mas era apenas a massa de manobra —, Lula não chamou o Exército para garantir a ordem na capital federal. Despachou para Brasília um interventor civil, Ricardo Cappelli, da confiança do ministro da Justiça, Flávio Dino.

Todos os erros anteriores ou posteriores à tentativa de golpe por parte do novo governo — e foram inúmeros — empalidecem quando comparados a essa decisão inicial.

Como se viu no decorrer da semana, eram múltiplos, e ainda são muitos, os porões graduados da conspiração. Todos eles com algum fio conectado ao núcleo do estamento militar golpista, alimentado há quatro anos por Bolsonaro com cargos, benesses e afagos. Na comissão de frente da tentativa de reverter a eleição de Lula está Anderson Torres, delegado da Polícia Federal e ex-ministro da Justiça de Bolsonaro. Nunca deixou de ser servil ao antigo chefe, como se viu em sua encarnação mais recente de secretário da Segurança do Distrito Federal, nomeado pelo governador laissez-faire Ibaneis Rocha.

Torres não apenas abriu as porteiras das forças de segurança distritais que facilitaram a marcha dos insensatos. Agora preso, ele terá de explicar a origem, autoria e finalidade de uma minuta de golpe apreendida em sua residência brasiliense. A minuta de três páginas e sete artigos aguardando assinatura de Jair Bolsonaro era uma proposta de decreto para anular a vitória de Lula nas eleições. São muitas as impressões digitais golpistas que haverão de emergir do emaranhado de pistas, provas, depoimentos, delações, traições e investigações futuras.

Ao cabo desta primeira semana de golpe interrompido, as instituições se mostraram resistentes. A Advocacia-Geral da União, o STF, com seu ministro-xerife Alexandre de Moraes na dianteira, os 27 governadores, a Procuradoria-Geral da República acordaram para a insubordinação bolsonarista-militar que teima em rondar o país. O recém-instalado governo Lula não parou de funcionar, e o Brasil pôde se emocionar com as radiosas cerimônias de posse das ministras Anielle Franco (Igualdade Racial) e Sonia Guajajara (Povos Indígenas).

Assim, pela segunda vez, “Bom dia, democracia”. Não haverá uma terceira vez —seja por não ser necessário, seja porque o pior venceu.

 

2 comentários:

  1. Lula é Lula Lula Lula.
    Com inteligência, sabedoria política e paciência de Jó, vai colocar todos no chinelo.

    ResponderExcluir
  2. A colunista entende do riscado.

    ResponderExcluir