segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

Ignácio de Loyola Brandão* - Curtas histórias

O Estado de S. Paulo

Assim como quem tomou vacina não virou jacaré, o golpe mesmo não aconteceu

Livros registram catástrofes que nos assombraram ao longo dos tempos. Diques romperam em Brumadinho, mataram centenas de pessoas, famílias perderam tudo o que tinham, e ficou por isso. Caso nunca resolvido.

Nero incendiou Roma e ficou a tocar harpa (fake news?) enquanto o fogo comia a cidade. Uns dizem que foi capricho de uma alma atormentada. Outros, que ele tinha a intenção de culpar os cristãos (estes deviam ser a esquerda na época) e acabar com eles. Depois de uma vida conturbada, marcada por assassinatos, orgias, corrupção e desmandos, Nero foi condenado a suicidar-se.

Abiblioteca de Alexandria foi incendiada no ano de 640 a.C. por ordem do califa Omar. Os livros foram destinados às fornalhas que aqueciam as águas dos balneários da cidade. Foram 700 mil volumes queimados para deleite da elite nas saunas.

O terremoto de São Francisco de 1906 matou 3 mil pessoas. Incêndios irrompiam por toda parte e não havia água para os bombeiros. Segundo Sam Wolfe, um sobrevivente, “a rua parecia estar se movendo em ondas, como o mar. Quem conhece cinema sabe que é a esse terremoto que Gilda (Rita Hayworth) se refere no filme quando canta PuttheBl ame on Mame.

Em dois períodos, em 1921 e 1922 e em 1932 e 1933,15 milhões de pessoas morreram de fome na Ucrânia, por culpado plano de“coletivização” dos produtos agrários imposto aos produtores. Diante dos confiscos, os agricultores passaram a esconder sua produção. Mas havia denúncias e prisões. Lembram-se dos “fiscais de Sarney” em 1986, que percorriam os campos em busca de bois escondidos e multavam?

No domingo, dia 8 de janeiro, uma semana depois de Lula assumir a Presidência, quem estava vendo séries, o programa da Eliana, um filme bíblico na tevê Record ou algum jogo da liga europeia (com jogadores milionários e fracassados na nossa seleção) deu com cenas insólitas na televisão. Um bando de desatinados, escoltados pela polícia em Brasília, invadiu o Palácio do Planalto, o Supremo Tribunal Federal e a Câmara dos Deputados. Era o que Bolsonaro prometera, o golpe. Os vândalos destruíram o que puderam, de obras de arte valiosas a computadores, brasões, retratos de ex-presidentes. Assim como quem tomou vacina não virou jacaré, como o mundo não acabou com o cometa Biela, 1845, nem com o Halley, 1910, nem com o Bug do Milênio, o golpe mesmo não aconteceu. E a turma está presa e processada. Bolsonaro estava na Flórida em um hospital, com dores abdominais. Na verdade está com os pés crivados de balas. O golpe não passou de um tiro nos pés. Aliás, uma rajada. Bolsonaristas dizem que a prisão – a princípio um ginásio, sem chuva e vento como nos acampamentos – é campo de concentração. Sacrilégio com o tragédia judaica.

*É jornalista e escritor, autor de 'Zero' e 'Não verás país nenhum'

 

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