Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
Durante todo o mandato, ele se esforçou na
performance teatral de militar durão, irremovível. Sai reduzido a um
melancólico estereótipo
Ganhou algum destaque, no vazio
pós-eleitoral do noticiário, o início da mudança dos objetos pessoais do casal
presidencial para um condomínio em Brasília. Um jornal chegou a publicar fotos
de alguns dos objetos, entre os 7,5 mil que o presidente da República recebeu
de presente durante o mandato.
No geral, expressam a mentalidade de seus
adeptos e a representação imaginária que dele têm os que o admiram. É a imagem
de um herói, embora nada conste sobre heroísmo em sua biografia.
Uma pintura retrata um Bolsonaro misto de
Dom Pedro na proclamação da Independência e de marechal Deodoro na proclamação
da República. Um outro quadro, inteiramente feito com cápsulas de balas de
revólver, anuncia uma “Aliança pelo Brasil”. Outro, ainda, é o retrato de
Bolsonaro cercado de animais de patas dianteiras juntas, em posição de oração,
olhando para os céus. Um Noé de direita cercado de bichos crentes.
Fez sucesso uma escultura de madeira, de título “Harley mito”, uma moto em tamanho natural. Objeto de difícil acomodação num palácio, de espaços amplos porém de uso restrito, específicos para as obras de identificação solene da monumentalidade do recinto do poder. A peça era exibida diante da tribuna presidencial em cerimônias oficiais.
Uma poltrona presidencial, de assento amarelo
oxidado e de encosto verde brilhante, com o mote pessoal do governante,
desafiou o bom gosto e as instituições.
Essa iconografia do poder bolsonarista tem
revelações políticas da maior importância. À luz de um mês inteiro de um
presidente abúlico, mergulhado num silêncio e numa invisibilidade suspeitos, a
tralha das doações populares que lhe fizeram é um documento. Evidencia que
Bolsonaro não é invenção de si mesmo. É uma invenção popular do crônico
autoritarismo brasileiro, à qual foi se ajustando. Ele é expressão tosca de uma
herança histórica que o país até hoje não se preocupou em remover por meio de
educação democrática e libertadora.
A curiosidade da mídia quanto à tralha da
mudança tem muito sentido. Durante todo o mandato, apesar de muitos indícios de
renúncia tácita, desde o primeiro dia Bolsonaro se esforçou na performance
teatral de militar durão, irremovível, teatralmente religioso de citações
bíblicas decoradas, catadas a dedo por assessores pentecostais e
fundamentalistas que as escolheram entre as mais frequentes no imaginário
evangélico. Um patrono das demonstrações de valentia vicária dos seus numerosos
seguidores. É verdade que se tornou, nesse teatro, dependente da coadjuvância
de familiares, de militares e mesmo de civis sem expressão. Atraiu pessoas que
reforçaram diariamente esse perfil de herói extemporâneo de uma trincheira
imaginária. Sai reduzido a um melancólico estereótipo.
Na tradição dos costumes brasileiros, os
expectadores de mudanças são atores de voyeurismo, espionagem para ver o que os
vizinhos têm, as características dos objetos de família, a cama, a mesa, o
fogão, os móveis em geral, a pequena e tosca tralha denunciadora da modéstia
das condições, o desmentido da falsa ostentação eventual. Sobretudo em casos de
mudança de proletários que se fingem de classe média, num país em que ascensão
social tem muito de teatro. Essas comparações são temas de fuxicos de
vizinhança, de conversas de família durante o jantar, maledicências da classe
média de ficção.
A movimentação de caminhões na entrada do
Palácio do Planalto e, também, na do Palácio da Alvorada e da Granja do Torto,
residências presidenciais, nestes dias, não é indício do cenário de
sociabilidade vicinal a que me refiro. Presidente da República não tem vizinhos
que possam espioná-lo, invejar-lhe os trastes, o que tem e o que deixa de ter.
Porque ele é não só inquilino dos Palácios mas também inquilino dos objetos ali
contidos. Ele próprio é um objeto do poder.
A curiosidade em relação à mudança do
presidente e sua família, provavelmente, se deve ao fato de que, desde sua
posse, deu a entender que não pretendia sair de lá. Após os resultados das
eleições de outubro, questionou-os e os vem questionando. A eleição seria
válida apenas se fosse ele o eleito.
Do lado de fora, por quem democrático é,
sua saída do Alvorada e do Planalto foi interpretada como indício da rendição
do governante à legitimidade das instituições e à soberania do voto. Ainda que
a turba seja a extensão de sua mentalidade na porta dos quartéis.
Uma coisa é o entrante. Outra coisa é quem
sai, transfigurado pelo desgaste do poder. Resta a curiosidade do frágil em
relação às pretensões do poderoso. Por trás da postura cotidiana anômala, como
é o presidente “por dentro”, no arsenal de trastes e bagulhos dos bens
pessoais, que todos temos em nossa casa?
José de Souza Martins é
sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da
Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall
(1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras.
Entre outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia A
Semana de Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022).
Belíssimo artigo
ResponderExcluirArtigo interessante. O colunista falta com a verdade sobre o histórico do GENOCIDA! Ele tem ato de heroísmo, sim! Salvou a vida de um soldado negro que se afogava, e arriscou a própria vida ao fazer isto, sendo também condecorado por tal ato. Temos que reconhecer a verdade mesmo sobre quem não gostamos.
ResponderExcluir👍🏿
ExcluirMuito bom o tema e a escrita do autor.
ResponderExcluirO artigo é um royal flush.
A mão perfeita para a análise patológica da tralha.
Quem sabe,sabe!
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