sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

José de Souza Martins* - Mudança de presidente

Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

Durante todo o mandato, ele se esforçou na performance teatral de militar durão, irremovível. Sai reduzido a um melancólico estereótipo

Ganhou algum destaque, no vazio pós-eleitoral do noticiário, o início da mudança dos objetos pessoais do casal presidencial para um condomínio em Brasília. Um jornal chegou a publicar fotos de alguns dos objetos, entre os 7,5 mil que o presidente da República recebeu de presente durante o mandato.

No geral, expressam a mentalidade de seus adeptos e a representação imaginária que dele têm os que o admiram. É a imagem de um herói, embora nada conste sobre heroísmo em sua biografia.

Uma pintura retrata um Bolsonaro misto de Dom Pedro na proclamação da Independência e de marechal Deodoro na proclamação da República. Um outro quadro, inteiramente feito com cápsulas de balas de revólver, anuncia uma “Aliança pelo Brasil”. Outro, ainda, é o retrato de Bolsonaro cercado de animais de patas dianteiras juntas, em posição de oração, olhando para os céus. Um Noé de direita cercado de bichos crentes.

Fez sucesso uma escultura de madeira, de título “Harley mito”, uma moto em tamanho natural. Objeto de difícil acomodação num palácio, de espaços amplos porém de uso restrito, específicos para as obras de identificação solene da monumentalidade do recinto do poder. A peça era exibida diante da tribuna presidencial em cerimônias oficiais.

Uma poltrona presidencial, de assento amarelo oxidado e de encosto verde brilhante, com o mote pessoal do governante, desafiou o bom gosto e as instituições.

Essa iconografia do poder bolsonarista tem revelações políticas da maior importância. À luz de um mês inteiro de um presidente abúlico, mergulhado num silêncio e numa invisibilidade suspeitos, a tralha das doações populares que lhe fizeram é um documento. Evidencia que Bolsonaro não é invenção de si mesmo. É uma invenção popular do crônico autoritarismo brasileiro, à qual foi se ajustando. Ele é expressão tosca de uma herança histórica que o país até hoje não se preocupou em remover por meio de educação democrática e libertadora.

A curiosidade da mídia quanto à tralha da mudança tem muito sentido. Durante todo o mandato, apesar de muitos indícios de renúncia tácita, desde o primeiro dia Bolsonaro se esforçou na performance teatral de militar durão, irremovível, teatralmente religioso de citações bíblicas decoradas, catadas a dedo por assessores pentecostais e fundamentalistas que as escolheram entre as mais frequentes no imaginário evangélico. Um patrono das demonstrações de valentia vicária dos seus numerosos seguidores. É verdade que se tornou, nesse teatro, dependente da coadjuvância de familiares, de militares e mesmo de civis sem expressão. Atraiu pessoas que reforçaram diariamente esse perfil de herói extemporâneo de uma trincheira imaginária. Sai reduzido a um melancólico estereótipo.

Na tradição dos costumes brasileiros, os expectadores de mudanças são atores de voyeurismo, espionagem para ver o que os vizinhos têm, as características dos objetos de família, a cama, a mesa, o fogão, os móveis em geral, a pequena e tosca tralha denunciadora da modéstia das condições, o desmentido da falsa ostentação eventual. Sobretudo em casos de mudança de proletários que se fingem de classe média, num país em que ascensão social tem muito de teatro. Essas comparações são temas de fuxicos de vizinhança, de conversas de família durante o jantar, maledicências da classe média de ficção.

A movimentação de caminhões na entrada do Palácio do Planalto e, também, na do Palácio da Alvorada e da Granja do Torto, residências presidenciais, nestes dias, não é indício do cenário de sociabilidade vicinal a que me refiro. Presidente da República não tem vizinhos que possam espioná-lo, invejar-lhe os trastes, o que tem e o que deixa de ter. Porque ele é não só inquilino dos Palácios mas também inquilino dos objetos ali contidos. Ele próprio é um objeto do poder.

A curiosidade em relação à mudança do presidente e sua família, provavelmente, se deve ao fato de que, desde sua posse, deu a entender que não pretendia sair de lá. Após os resultados das eleições de outubro, questionou-os e os vem questionando. A eleição seria válida apenas se fosse ele o eleito.

Do lado de fora, por quem democrático é, sua saída do Alvorada e do Planalto foi interpretada como indício da rendição do governante à legitimidade das instituições e à soberania do voto. Ainda que a turba seja a extensão de sua mentalidade na porta dos quartéis.

Uma coisa é o entrante. Outra coisa é quem sai, transfigurado pelo desgaste do poder. Resta a curiosidade do frágil em relação às pretensões do poderoso. Por trás da postura cotidiana anômala, como é o presidente “por dentro”, no arsenal de trastes e bagulhos dos bens pessoais, que todos temos em nossa casa?

José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia A Semana de Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022).

 

5 comentários:

  1. Anônimo6/1/23 12:10

    Artigo interessante. O colunista falta com a verdade sobre o histórico do GENOCIDA! Ele tem ato de heroísmo, sim! Salvou a vida de um soldado negro que se afogava, e arriscou a própria vida ao fazer isto, sendo também condecorado por tal ato. Temos que reconhecer a verdade mesmo sobre quem não gostamos.

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  2. Anônimo6/1/23 12:58

    Muito bom o tema e a escrita do autor.
    O artigo é um royal flush.
    A mão perfeita para a análise patológica da tralha.

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