Valor Econômico
Ajuste fiscal, em qualquer horizonte de
tempo, desagradará a grupos específicos e consumirá capital político
A turma do “deixa disso” já entrou em
campo, mas a decisão de manter zerados os tributos federais sobre combustíveis
emitiu sinais ruins em duas áreas centrais do governo: economia e meio
ambiente. Primeiro, porque suspendeu a mais contundente iniciativa do ministro
da Fazenda, Fernando Haddad, na direção do ajuste fiscal que pretende
implementar ainda no primeiro trimestre do ano. Ele havia dito que a
desoneração não seria prorrogada. Seriam R$ 52 bilhões a mais na arrecadação.
Segundo, porque essa medida estimula o consumo de combustíveis fósseis no momento em que o Brasil tenta se recolocar no mundo como uma potência ambiental. De bônus, o corte de tributos sobre a gasolina é uma medida que beneficia a classe média e desvia dos cofres públicos recursos que poderiam ser destinados às emergências sociais.
A dúvida que ficou no ar é qual o preço
político que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva está disposto a pagar pelo
ajuste das contas públicas.
A prorrogação do benefício fiscal aos
combustíveis, que representará renúncia de R$ 25 bilhões neste ano, foi tomada
em meio a boatos de que a Petrobras estaria
preparando um reajuste nos preços dos combustíveis para o dia 1º de janeiro.
Seria um bom pretexto para críticas de bolsonaristas, que fizeram desse tema um
mote de campanha eleitoral.
Outra explicação é que a prorrogação dará
tempo para a nova diretoria da Petrobras tomar
posse. No documento explicativo enviado pelo Planalto ao Congresso Nacional, as
justificativas são: dar tempo hábil para estruturar uma política de preços e o
risco de alta da inflação.
Qualquer que seja o motivo, fica aparente
um baixo apetite do governo em tomar medidas impopulares. No entanto, não
existe alternativa se a ideia é estabelecer um horizonte previsível para a
dívida pública e, assim, resgatar a confiança dos agentes econômicos.
Uma das poucas pistas sobre o ajuste que
está sobre a mesa de Haddad aponta para um vespeiro: a dedução de despesas
médicas no Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF). O próprio Lula deu a dica,
ainda durante a transição. Falou da “injustiça” que é uma pessoa como ele fazer
exames e consultas na rede privada e abater os gastos do IR, enquanto
brasileiros com renda mais baixa não abatem porque não podem pagar plano de
saúde.
Haddad retornou ao tema ontem, em
entrevista ao site Brasil 247. Levantou a lebre da justiça social da dedução.
Enquanto isso, uma pessoa da audiência pediu que o abatimento de gastos com
saúde fosse estendido a bichos de estimação.
O ajuste fiscal, em qualquer horizonte de
tempo, desagradará a grupos específicos e consumirá capital político. A lista
de “maldades” é grande, após três décadas de enrolação no debate sobre melhoria
nos gastos públicos e de favorecimentos a setores.
O ministro já disse muitas vezes que na
administração da ex-presidente Dilma Rousseff houve exagero na concessão de
desonerações tributárias. A lista soma R$ 456 bilhões e contempla o Simples, a
Zona Franca de Manaus e vários regimes setoriais especiais. É prometido um
pente-fino nesses chamados “gastos tributários”. Grupos que tiveram força
política para instituí-los vão reagir a tentativas de corte.
Outra frente do ajuste é avaliar os gastos
públicos, para usar de forma mais eficiente o dinheiro do contribuinte. Algo
que os especialistas chamam de “spending reviews”. É uma tarefa que ficará com
Simone Tebet, ministra do Planejamento.
Estudioso do tema, o especialista em contas
públicas Leonardo Ribeiro explica que esse é um método de gestão fiscal baseado
em revisões periódicas dos gastos. No Brasil, ajudaria a abrir espaço fiscal,
trocando despesas que não dão o retorno esperado à sociedade por outras
prioridades.
É um trabalho que se alinha com a
elaboração do novo marco para as contas públicas brasileiras. Deve estar em
harmonia também com a própria elaboração do Orçamento federal.
Novamente, é uma tarefa politicamente
espinhosa. Isso porque cada centavo do Orçamento federal, de R$ 5,3 trilhões
neste ano, tem uma justificativa de mérito para estar lá. A questão é a
qualidade, a prioridade e a lisura de cada despesa dessas.
Se um “spending review” bem feito dá conta
de enfrentar as pressões políticas que determinaram esse ou aquele gasto, é uma
questão. A experiência internacional, conta Ribeiro, mostra que esse trabalho é
capturado quando não se superam quatro obstáculos: avaliações incompletas ou
enviesadas, assimetria de informações entre quem avalia e quem executa, falta
de coordenação do processo, falta de liderança qualificada.
Dá certo quando há apoio das lideranças
políticas e compatibilidade da revisão de gastos com a agenda legislativa e o
processo orçamentário, informa.
Haddad não tem receio de críticas, como
deixou claro em seu discurso de posse. Ele disse aceitar o papel de patinho
feio da Esplanada, antecipando o “fogo amigo”.
A artilharia será um pouco diferente desta
vez por causa da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição, com sua
licença de gastos extras de quase R$ 200 bilhões. Ao recompor o orçamento dos
ministérios e dirigir recursos para áreas que são prioridade de Lula, antecipou
o atendimento a demandas que afloram em inícios de governo.
A retomada do programa Minha Casa, Minha
Vida é um exemplo. O programa estava praticamente zerado. Com a PEC, a área de
habitação ganhou reforço de R$ 9 bilhões.
Outro exemplo é a pressão do funcionalismo.
Neste ano, após a PEC, há R$ 11 bilhões para acomodar aumentos salariais e R$
1,5 bilhão para novas contratações.
O conto de Hans Christian Andersen
(1805-1875) nos ensina sobre resiliência, respeito a diferenças e importância
da autoestima. Nele, não é um ato heroico, e sim o passar do tempo que cria as
condições objetivas para acabar com o sofrimento do protagonista. Na versão
brasiliense não será assim. O desfecho feliz exigirá esforço e, principalmente,
um sólido apoio político.
Excelente texto.
ResponderExcluirIsso é informação e formação.
Uma é consistente, a outra sólida.
Que continuemos tendo artigos como este.
Excelente análise! Vamos ver os próximos passos (e voos?) do patinho feio...
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