domingo, 22 de janeiro de 2023

Muniz Sodré* - Espoliação como vício

Folha de S. Paulo

Dinheiro não é apenas valor de troca, mas incremento de fantasias de eternidade e poder

Tão logo solto, o ex-governador do Rio voltou à memória dos jornais a sua admissão pública de corrupção compulsiva, nos termos de vício em poder e dinheiro. É uma fala espantosa, porque sincera e confirmadora de um fenômeno que afeta, em escalas diferentes, a classe política no mundo inteiro. O que singulariza essa confissão é tanto o tamanho quanto a exibição pública da defraudação. "Taxa de oxigênio" era o nome debochado da propina.

Além da sofreguidão quadrilheira, mobiliza o espanto do senso comum o mecanismo do vício alegado, isto é, da insatisfação pessoal com a mera posse de milhões, donde o desejo compulsivo de ir adiante. "Eu exagerei", prosternou-se o político. Esse é, na verdade, um aspecto inerente à força corruptiva do dinheiro, mas que ressoa como amor em Mefistófeles numa obra notável da literatura russa: "É preciso tomar as pessoas como elas são...Elas amam o dinheiro, mas foi sempre assim... A humanidade ama o dinheiro, seja feito de qualquer coisa: de pergaminho, de papel, de bronze ou de ouro" ("O Mestre e Margarida", de Mikhail Bulgakov). Nisso, o economista suíço Hans Binswanger vê "uma força de atração tão imensa que pouco a pouco suga todas as áreas da vida para seu vórtice".

Dinheiro não é apenas valor de troca, mas incremento de fantasias de eternidade e poder que, não raro, beiram a loucura. Daí o vício. Mas o cerne social da questão consiste em saber como isso acontece na esfera pública, ou melhor, como é possível a continuidade da prática espoliativa, uma administração após outra. Sobre o Rio, explicações meramente políticas vinculam as linhas mestras do fenômeno a uma organização partidária dependente de fisiologismo secular. Uma chaga histórica próxima à de outras regiões nacionais.

Nada disso, entretanto, dá conta da facilidade com que administrações estaduais e municipais descambam para a corrupção, viciante como um jogo. Uma hipótese é a de que a privatização do Estado, macrofenômeno do patrimonialismo brasileiro, tenha inflexão acentuada na paisagem fluminense, onde sucessivas dinastias de famílias e clãs se ampliam por "sócios ocultos" em currais eleitorais.

Na deslavada promiscuidade territorial entre Estado e organizações criminosas floresce a violência social. Por outro lado, o mal que espreita nas sombras de toda esfera pública vive solto na buraqueira local, sob a forma de fraudes e peculato. A desenvoltura benfazeja à beira de praia é tenebrosa em sede de governo. Na encruzilhada do crime, entretanto, ainda se perfila institucionalmente o risco da penitenciária de Bangu que no verão, dizem, é quente como o inferno, com taxa de oxigênio sofrível.

*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de "A Sociedade Incivil" e "Pensar Nagô".

2 comentários:

  1. Acho que Muniz Sodré comete um erro ao generalizar (ui!) a doença da corrupção compulsiva dizendo que "afeta a classe política do mundo inteiro". Isso nos países capitalistas em geral e especialmente no capitalismo selvagem como é o brasileiro. Creio que um Sérgio Cabral da vida não vinga numa sociedade como a dos países nórdicos onde vigora a socialdemocracia que é o "capitalismo com rosto humano".

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  2. O viralata acima acha que a corrupção é endêmica por aqui e por lá as pessoas são boas per si. Meu caro, dinheiro e poder é como o economista acima descreve. Essa tese viralatista de que nos países nórdicoa não existem Sérgios Cabrais é tanto rídicula quanto ingênua. Pueril.

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