segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Amazônia traz desafio imenso a projeto de Marina

O Globo

Recuperar devastação não depende apenas do Meio Ambiente, mas de áreas infiltradas pelo bolsonarismo

Já se sabia, com base em todos os dados levantados pelos satélites que esquadrinham a região, que o rastro de destruição deixado pelo governo Jair Bolsonaro na Amazônia seria imenso. O desmatamento em dezembro foi o dobro do registrado no final de 2021. É como se os madeireiros e garimpeiros que atuam na clandestinidade tivessem pressa depois da vitória do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Pelos dados do Imazon, os quatro anos de Bolsonaro produziram uma devastação de 35.193 quilômetros quadrados, maior que a área de Alagoas, ou 150% mais que nos quatro anos anteriores.

Marina Silva reassumiu o Ministério do Meio Ambiente para enfrentar uma situação muito pior do que quando chegou ao cargo pela primeira vez, em 2003. Esteve com Lula na COP27, no Egito, em novembro. Já ministra, foi com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, ao Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça. Em suas aparições internacionais, tem apresentado uma guinada radical na política ambiental brasileira. Em Davos, reafirmou o compromisso do Brasil de atingir o “desmatamento zero” até 2030. Sobre a intenção, não há dúvida, mas a realidade lhe imporá dificuldades imensas.

Marina tem dito que o Brasil precisa de auxílio externo para conservar a Amazônia, explorá-la de forma sustentável e recuperar as áreas desmatadas. “Nós podemos acabar com o desmatamento na Amazônia, mas, se o resto do mundo continuar a emitir carbono, a Amazônia será destruída da mesma forma”, disse em Davos. Para obter ajuda, ela tenta resgatar a imagem brasileira, devastada durante o governo anterior. Só não pode esquecer que a batalha mais difícil está aqui no Brasil.

Seu primeiro desafio é político. Ela propõe criar a Autoridade Climática, um órgão técnico vinculado ao Ministério do Meio Ambiente, cujo objetivo é ajudar a implementar o que ela costuma chamar de “políticas transversais” para proteção ambiental. Na prática, isso significa envolver todas as áreas do governo. Todo o Executivo federal precisará enquadrar-se no compromisso de enfrentar o aquecimento global pelo corte das emissões de gases do efeito estufa. É algo que vai além da preservação da Amazônia e depende de uma costura delicada.

Ainda no rearranjo institucional, Marina pretende constituir o Conselho Nacional sobre Mudança do Clima, com o presidente da República à frente e participação de todos os ministérios. Caberá a ela, também, reconstruir Ibama e ICMBio, órgãos fiscalizadores desmontados por Bolsonaro para abrir as portas da Amazônia a madeireiros e garimpeiros ilegais.

A região que é necessário recolocar sob a jurisdição do Estado tornou-se uma via de escoamento de drogas pelos seus rios e um espaço em que transitam organizações criminosas atraídas pelo ouro dos garimpos sem lei. A repressão aos grupos ilegais que floresceram no governo Bolsonaro tem de ser o objetivo imediato. Mas também é o mais difícil para Marina, pois não depende apenas do Ministério do Meio Ambiente. É preciso contar com a colaboração da Justiça, das forças de segurança e das autoridades locais. Será imprescindível o apoio das Forças Armadas e da Polícia Federal para restabelecer a fiscalização ambiental na Amazônia. Nunca a questão do meio ambiente se pareceu tanto com uma guerra. Vencê-la exigirá de Marina o talento político para atrair setores ainda infiltrados pelo bolsonarismo.

Cracolândias são problema grave para prefeitos e governadores de todo o país

O Globo

Otimismo do novo governo paulista não leva em conta todos os fracassos nas tentativas de acabar com elas

Antes droga de uso localizado, consumida em plena luz do dia apenas em poucas ruas do centro de São Paulo, distantes dos bairros nobres, o crack chegou ao Rio e a outras cidades. Firmou-se como problema de saúde pública e segurança que hoje desafia prefeituras e governos estaduais.

Apesar das três décadas da cracolândia original em São Paulo, o vice-governador paulista, Felício Ramuth (PSD), é otimista. Em entrevista ao GLOBO, afirmou ser possível nos quatro anos de seu mandato e do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) acabar com essa chaga urbana e reduzir a população de rua, estimada na capital paulista entre 30 mil e 40 mil pessoas, das quais de 1.500 a 3 mil consomem drogas.

Não será uma meta fácil de atingir. As cracolândias exigem colaboração entre governadores e prefeitos, nem sempre do mesmo partido, para que o atendimento médico-psiquiátrico e a manutenção da segurança nos locais de concentração de viciados e vizinhanças sejam eficientes. Vários programas já foram tentados para resolver o problema, e nenhum resolveu.

Quando Fernando Haddad foi prefeito de São Paulo, de 2013 a 2017, Geraldo Alckmin, ainda no PSDB, era governador do estado. Prefeitura e governo estadual abordaram a cracolândia com programas distintos. Alckmin lançou o Recomeço, para todo o estado, cujo objetivo era atender o viciado e sua família, com tratamento voluntário e compulsório, moradia em comunidades terapêuticas e apoio para a volta ao trabalho. Houve críticas de psiquiatras contrários à internação forçada, defensores do atendimento na rua ou onde esteja abrigado o viciado. O movimento antimanicomial é hegemônico no meio psiquiátrico.

Haddad lançou o De Braços Abertos, inspirado em experiências na Holanda e no Canadá. Depois de uma negociação inédita entre a prefeitura e os viciados, eles demoliram suas barracas e passaram a ocupar quartos de hotéis na região, recebendo três refeições por dia e uma pequena remuneração por serviços feitos em praças do centro de São Paulo. Os 400 que aceitaram as condições eram acompanhados por agentes de saúde e continuavam a consumir a droga. Não funcionou. Ao atender viciados fora da cracolândia, o programa de Haddad deixava desassistidos os que apenas passavam pelo local para obter e consumir o crack.

Em maio passado, com Rodrigo Garcia (MDB) no Palácio dos Bandeirantes, foi deflagrada a Operação Caronte contra o tráfico na cracolândia. A operação foi um desastre: viciados se espalharam pelo centro da cidade em pequenas cracolândias. O consumo da droga, antes concentrado, se tornou endêmico em várias áreas da cidade.

Para obter sucesso na iniciativa, o novo governo paulista deveria estudar em detalhes o que deu errado nos últimos anos. É preciso dosar o otimismo e ser realista na definição da nova política contra o crack. Vale a pena procurar em Brasília Haddad, Alckmin e a ministra da Saúde, Nísia Trindade, que também precisa incluir o crack entre suas preocupações, já que se trata hoje de problema nacional.

Governo tenta pôr limites à politização dos militares

Valor Econômico

Não há tutela armada sobre a democracia, à qual os militares devem servir incondicionalmente

Na democracia, a preferência política das Forças Armadas deveria ser irrelevante. A demissão do comandante do Exército, Júlio César Arruda, no sábado, mostrou outra face dessa verdade: insubordinações de militares não serão toleradas. Após o apagão total na segurança do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e da comprovação de que houve erros graves de militares nos atos que culminaram com vandalismo na Praça dos Três Poderes, Arruda não estava convencido de que algo grave ocorrera. Com a dispensa, o presidente Lula traçou uma linha democrática no chão, limite que não pode ser transpassado pelos militares, que devem obediência irrestrita a um governo civil. O então presidente Jair Bolsonaro tentou apagar as fronteiras da caserna, agora fragilmente restabelecidas.

O esquema de segurança do presidente e da sede dos Poderes deixou de existir sem qualquer explicação. Como disse o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, Lula e outras autoridades da República correram risco de vida. É preciso saber quem foram os responsáveis e puni-los. A sequência dos fatos não deixa dúvidas. O ex-presidente Jair Bolsonaro pregou durante quatro anos a inutilidade da democracia. Parte do comando militar foi sensível a essa cantilena, que ecoava o saudosismo da ditadura. Era sabido que Bolsonaro tentaria um golpe. Algo deu errado, as pistas foram deixadas à luz do dia e guiam as investigações.

Bolsonaro, difamador das urnas eletrônicas, levou militares a planejar apuração paralela nas eleições, missão que pela Constituição não lhes cabia, e a azucrinar, sem mínimo conhecimento de causa, comissão eleitoral organizada pelo STF para mostrar a lisura do pleito. Logo após as eleições, bolsonaristas radicais passaram a acampar em frente aos quartéis, pedindo intervenção militar e a destituição de Lula. Nunca esses espaços, considerados zonas de segurança nacional, haviam sido cedidos a quermesses, antidemocráticas ou quaisquer outras. O Ministério da Defesa deu-se ao trabalho de, em nota, afirmar que eram “manifestações democráticas”, avalizando dessa maneira ataques à ordem constitucional.

Os acampamentos serviram para tramóias golpistas e preparação de atentados, como comprovado pelas confissões de pessoas envolvidas na tentativa de explosão de um caminhão de combustível perto do Aeroporto de Brasília. Os comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica ameaçaram deixar seus cargos antes da posse do novo presidente. A mensagem era clara: não aceitavam seu comando, nem, talvez, o processo legítimo pelo qual se elegera. A equipe de transição deu prematuramente a luz a um ministro da Defesa, José Múcio, para apagar incêndios, que continuaram se espalhando.

Múcio, que acolheu a interpretação “democrática” dos acampamentos, se responsabilizou pela escolha de Arruda, alinhado a Bolsonaro, para o comando do Exército. A missão de Arruda era evitar problemas na posse de Lula. Deu no que deu. Uma multidão vinda de ônibus e acolhida nos acampamentos, sob guarida do Exército, marchou em direção à praça dos Três Poderes, sem qualquer obstáculo, e destruiu o que viu pela frente.

Os vândalos depois voltaram aos acampamentos. Foram perseguidos pela polícia que, no entanto, foi barrada por tanques do Exército, de chegar às barracas - a passagem só foi permitida aos golpistas que atacaram a democracia. O general Arruda argumentou que isso era necessário para preservar mulheres e crianças, que estavam onde, aliás, nunca deveriam estar.

Lula, Múcio e os comandantes das Forças Armadas se reuniram para fumar o cachimbo da paz na sexta-feira, em torno de projetos de investimentos de interesse dos militares. Arruda, no entanto, se recusou a acatar o pedido de não permitir que o ajudante de ordens de Bolsonaro, o tenente coronel Mauro Cid, suspeito de usar cartão corporativo da Presidência para pagar gastos pessoais de Bolsonaro e sua esposa, assumisse em fevereiro o comando de um batalhão em Goiânia.

Bolsonaro politizou parte do comando militar e essa parcela radicalizada se recusou a cumprir sua missão constitucional de defender o Estado e aceitar a punição de quem participou de atos contra a democracia. O presidente Lula fez o que deveria: não há tutela armada sobre a democracia, à qual os militares devem servir incondicionalmente. Há mais a fazer, ainda.

Estatismo obsoleto

Folha de S. Paulo

Governos precisam chegar a acordo para atrair capital privado ao porto de Santos

Enquanto o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) rechaça privatizações e cria incertezas sobre marcos regulatórios, como no saneamento, governadores e prefeitos indicam que vão acelerar a venda de ativos e as concessões ao setor privado na busca por investimentos.

O caso do porto de Santos é um dos mais exemplares do contraste de visões —aqui, as do ministro Márcio França, da recém-inventada pasta dos Portos e Aeroportos, e do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos).

França é contra a venda da autoridade portuária (Santos Port Authority, SPA), empresa de propriedade da União que cuida da administração do condomínio e da infraestrutura interna do terminal, embora esteja aberto à possibilidade de concessões para alguns investimentos, como o canal de ligação entre Santos e Guarujá.

Já o governador defende a estratégia definida na sua gestão como ministro da Infraestrutura, que prevê a venda da SPA e um contrato de concessão de 35 anos.

Calcula-se que a operação renderia ao menos R$ 3 bilhões imediatos para os cofres do governo federal, além de mais R$ 2,8 bilhões e 20% da receita bruta anual ao longo do período do contrato.

O compromisso de aportes privados seria próximo a R$ 20 bilhões, para dobrar a capacidade de processamento do porto e melhorar os acessos, além da necessária dragagem para viabilizar a entrada de navios de maior porte.

A diferença de visões pode comprometer tais recursos e de outros que estariam encadeados. Em tese, um acordo não é impossível.

Os terminais já são operados por empresas privadas, e não é inconcebível que a SPA estatal seja compatível com a concessão de obras. O histórico de ineficiência, contudo, não autoriza otimismo, e o fatiamento das iniciativas poderia dificultar a atração de capital privado.

A visão de França é obsoleta. Privatizada, a SPA permaneceria sujeita à regulação da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), com todas as garantias demandadas pelo poder concedente.

Felizmente, os governadores mostram mais arejamento. Tarcísio, ao que se indica, pretende avançar na modelagem de venda da Sabesp, a companhia de saneamento do estado, operação que demanda estudos detalhados.

Paraná, Rio Grande do Sul e Minas Gerais também devem ofertar ativos nas áreas de saneamento, energia e distribuição de gás. A amplitude das iniciativas pode influenciar a visão do governo federal.

A experiencia dos últimos anos nas concessões de infraestrutura tem sido bem-sucedida. O país precisa de investimentos privados e não pode se dar ao luxo de retrocessos nesse setor.

Cidade ineficiente

Folha de S. Paulo

Programa de segurança no Rio não consegue conter criminalidade e abuso policial

Toda política pública deve se basear em evidências, ter objetivos claros e produzir resultados mensuráveis que vão além de slogans eleitoreiros. Após um ano, o programa Cidade Integrada, vitrine do governo fluminense de Cláudio Castro (PL), não ostenta tais qualidades.

Buscando criar uma marca própria, o governador reeleito no ano passado prometeu expandir a ocupação policial para regiões de grande "clamor popular", segundo suas palavras. Cantagalo, Pavão-Pavãozinho e Cesarão —maior conjunto habitacional da América Latina— estão nos planos. Entretanto não se apresentou nenhum critério técnico para as escolhas.

Castro anunciou o Cidade Integrada como uma estratégia diferente das finadas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) e afirmou que não se trataria de mais um "programa para enxugar gelo"

No entanto sua implementação passou despercebida por mais da metade da população. Em abril do ano passado, quatro meses após o início do projeto, 59% dos cariocas afirmaram ao Datafolha que desconheciam o programa.

Até agora, o plano do governo não diminuiu a letalidade policial —o mínimo esperado de estratégias para segurança pública.

Na verdade, o estado registrou recordes de massacres policiais no último ano. Somente 1% dos moradores do Jacarezinho, uma das comunidades atendidas, defendem sua continuidade nos moldes atuais —em 2021, 28 pessoas foram mortas na região durante a operação mais letal da cidade.

Tampouco se conteve a criminalidade. Homicídios, roubos e furtos cresceram, enquanto abusos da PM, como invasão de casas, são denunciados por moradores.

De um lado, agentes reclamam de falta de estrutura. Do outro, investigação do Ministério Público fluminense expõe relações espúrias entre milícias, narcotráfico e funcionários do programa —alguns deles estão listados na "folha de pagamento secreta" do Centro Estadual de Estatísticas, Pesquisas e Formação de Servidores Públicos do Rio de Janeiro (Ceperj).

O governo elenca uma série de ações, que vão desde cursos profissionalizantes até reforma de escolas. Mas a realidade é que os índices de segurança não melhoraram e a população reclama da atuação da Polícia Miliar.

Esse é o problema quando políticas públicas são usadas como marketing eleitoreiro em vez de servirem às demandas da população.

O presidente exerce sua autoridade

O Estado de S. Paulo.

Ao demitir o comandante do Exército por evidente insubordinação e substituí-lo por militar comprometido com a democracia, Lula reafirma a soberania do poder civil no País

O presidente Lula da Silva, conforme as prerrogativas previstas no artigo 84 da Constituição, que lhe confere o comando supremo das Forças Armadas, demitiu o comandante do Exército, general Júlio César de Arruda, por atos de insubordinação que, nas palavras do ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, provocaram uma “fratura no nível de confiança” que o presidente deve ter em seus comandantes militares.

Lula tomou a decisão correta, no momento mais que oportuno. Caso não o fizesse, o presidente abriria um perigoso flanco para a quebra da hierarquia e restaria vulnerável, antes de completar um mês de mandato, a toda sorte de chantagens por parte de militares pouco ciosos de suas obrigações estatutárias e constitucionais.

No breve período em que esteve à frente do Exército, o general Arruda impediu que a Polícia Militar de Brasília prendesse golpistas que se homiziaram num acampamento em frente ao quartel-general do Exército após a invasão das sedes dos Poderes. A inaceitável tolerância do general Arruda com o golpismo, para dizer o mínimo, ajudou a transformar os arredores da sede do Exército em um valhacouto de sediciosos.

O ex-comandante ainda opôs resistência à exoneração, do 1.º Batalhão de Ações de Comando, do tenente-coronel Mauro César Barbosa Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro na Presidência. Houve muitos pedidos do governo Lula para que a nomeação de Cid fosse cancelada, não só por se tratar de notório bolsonarista, mas porque sobre ele recaem suspeitas de transações obscuras com o cartão corporativo da Presidência. O Palácio do Planalto, contudo, foi olimpicamente ignorado pelo general Arruda.

Além disso, Lula nutria fundada desconfiança de que, sob o comando do general Arruda, o Exército não agiu para impedir nem para repelir a intentona de 8 de janeiro. Ou seja, não havia alternativa ao presidente que não fosse a substituição imediata do comandante da Força Terrestre. Era isso ou o derretimento de sua autoridade.

Um dos mais prementes desafios de Lula é a despolitização das Forças Armadas, o que significa impedir que saiam dos trilhos da Constituição. O poder militar se submete ao poder civil, eleito pelo povo, mas durante o governo Bolsonaro esse pilar democrático foi posto à prova por uma espécie de mutualismo antirrepublicano. Bolsonaro usou os militares para ameaçar a Nação em defesa de seus interesses, com a pretensão de fazer das Forças Armadas sua guarda pretoriana; e por alguns militares Bolsonaro foi usado em troca de poder e privilégios que em nada se coadunam com a República.

Nos últimos quatro anos, alguns integrantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica se deixaram seduzir por uma ideia de ascendência sobre os rumos do País que nenhuma das três Forças tem à luz da Constituição. Eis o buraco em que o bolsonarismo nos meteu, do qual só será possível sair tendo à frente das três Forças militares inequivocamente comprometidos com os ditames da Lei Maior.

A escolha do general Tomás Miguel Ribeiro Paiva para comandar o Exército, anunciada pelo governo, parece respeitar esse imperativo. Dez dias depois da intentona golpista em Brasília, o general Tomás, em discurso para a tropa no Comando Militar do Sudeste, declarou, com todas as letras, que o resultado da eleição presidencial deve ser acatado e que o Exército, como instituição de Estado que é, deve se manter afastado das lides políticas, próprias da vida civil.

A democracia, lembrou o general, “é o regime do povo”, com “alternância de poder”. Referindo-se aos militares, disse que “nem sempre a gente gosta” do resultado da eleição, mas “tem que respeitar” – e acrescentou: “Esse é o papel da instituição de Estado, da instituição que respeita os valores da pátria. Somos Estado”. Trata-se de uma obviedade, mas, nos dias que correm, tal declaração é um alento.

Além de convicção democrática, o general Tomás demonstra ter profundo respeito ao Exército. Sob seu comando, a instituição decerto estará menos exposta à nefasta influência de Bolsonaro, alguém que antes de tudo foi um mau militar, e continuará a servir ao País nas estritas atribuições que lhe são dadas pela Constituição.

As estatais à beira do assalto

O Estado de S. Paulo.

As tentativas de Lula e do Centrão de afrouxar a governança das estatais para apadrinhar aliados são um atentado à sua maior função social: gerar empregos e bons produtos a preços justos

Notícias de Brasília dão conta de que o governo prepara um projeto de lei substitutivo para flexibilizar a Lei das Estatais, abrindo espaço para a indicação de aliados aos conselhos de administração e a cargos nas diretorias executivas.

A lei estabelece quatro requisitos para os administradores das empresas públicas, sociedades de economia mista e suas subsidiárias: reputação ilibada, notório conhecimento, experiência profissional e formação acadêmica compatível com o cargo. Também veda vagas nos conselhos ou diretorias a parlamentares, ministros de Estado, secretários estaduais ou municipais, dirigentes partidários ou sindicais e a seus parentes.

São regras elementares de governança projetadas para garantir uma gestão técnica, experiente e eficiente das empresas e blindá-las do aparelhamento e apadrinhamento político. O Estado, como proprietário ou acionista dessas empresas, é o primeiro interessado em que essas regras sejam rigorosamente observadas. Aqueles que querem borrá-las protestam que elas representam uma diminuição do poder do Executivo e “criminalizam” a política. Mas não custa lembrar que elas foram implementadas justamente como uma reação profilática aos crimes perpetrados por políticos e intervenções indevidas do governo.

A lei foi aprovada em 2016 justamente na esteira dos escândalos do petrolão protagonizados nas administrações petistas. A Petrobras não só perdeu dinheiro com investimentos controversos e esquemas que alimentavam o caixa de partidos políticos, como foi usada como instrumento de controle da inflação. Enquanto isso, o BNDES injetava anabolizantes em empresas selecionadas pelo governo – as “campeãs nacionais” – por meio de créditos generosos subsidiados com recursos do contribuinte.

A Lei das Estatais ajudou a moralizar as empresas públicas, profissionalizar sua gestão e submetê-las a critérios de governança comparáveis aos do setor privado. Na sua vigência, foi possível resgatar uma Petrobras mergulhada no vermelho – um passivo de US$ 160 bilhões legado pelas gestões petistas.

Durante o governo de Jair Bolsonaro, a lei mostrou a que veio. A sucessão de cabeças de dirigentes da Petrobras que rolaram sob as canetadas de Bolsonaro é um testemunho de que o muro de contenção contra intervenções estranhas aos interesses das empresas públicas e, logo, do Estado funcionou. O celeiro de escândalos em que foi transformada a Codevasf – cuja ingerência passa agora por uma nova rodada de barganhas entre o governo e o Centrão – mostra que a lei poderia ser ainda mais aprimorada, com regras mais rigorosas de governança e instrumentos que permitam ao público avaliar o desempenho das estatais, auxiliem a tomada de medidas corretivas e reduzam a margem para corrupção.

O presidente Lula se apresenta como defensor das estatais e justifica suas tentativas de controlá-las apelando à sua “função social”. Mas empresas estatais são antes de tudo empresas, e cumprem sua função social com uma gestão eficiente, que gere empregos e bons produtos a preços justos para o consumidor. O capitalismo de compadrio que busca aparelhar estatais ou cooptar bancos e empresas é sintomático de quem vê o mercado (sem “coração”) não como um jogo de interesses – particulares, sim, mas impessoais – negociados entre investidores, produtores, comerciantes e consumidores, mas sim como uma grande conspiração.

Na retórica ideológica, Lula e Bolsonaro se dizem antagonistas entre si, e ambos antagonizam o Centrão. Mas não por acaso todos convergem no apetite por submeter as estatais ao seu arbítrio. A meta comum de flexibilizar as regras de governança das estatais que garantem uma gestão técnica e eficiente não serve para restabelecer sua função social, mas sim para restabelecer uma espúria função política.

Coube ao Senado conter as investidas de Bolsonaro e dos deputados do Centrão. Espera-se que, ante as investidas de Lula e do mesmo Centrão para dilapidar não só esse marco, mas outros – como o do Saneamento ou a Lei de Responsabilidade Fiscal e a Lei das Agências Reguladoras –, ele faça o mesmo.

Proteger jornalistas ajuda a democracia

O Estado de S. Paulo.

É bem-vinda a iniciativa do Ministério da Justiça para monitorar violência contra jornalistas

É muito bem-vinda a iniciativa do Ministério da Justiça e da Segurança Pública de criar o primeiro Observatório Nacional da Violência contra Jornalistas. Trata-se, antes de tudo, de uma ação em defesa da democracia. Só há jornalismo livre e independente – e, consequentemente, cidadãos bem informados para tomar decisões individuais e coletivas – se os jornalistas puderem sair às ruas e exercer o ofício com o destemor que ele requer. E sem jornalismo livre e independente não há que se falar em democracia.

No plano simbólico, a medida adotada pelo governo federal também é auspiciosa, pois representa uma mudança de atitude radical diante da imprensa profissional quando comparada ao governo anterior. O governo de Jair Bolsonaro foi o centro irradiador de hostilidades contra jornalistas no País, a começar pelos muitos ataques à liberdade de imprensa perpetrados pelo expresidente em pessoa. Ao longo dos últimos quatro anos, órgãos como a Polícia Federal (PF) e a Advocacia-geral da União, além do próprio Ministério da Justiça, em total desacordo com a Constituição, foram mobilizados por Bolsonaro para perseguir ou intimidar jornalistas que ousaram publicar o que lhe aborrecia.

A bem da verdade, a desqualificação do jornalismo profissional como principal mediador do debate público vem de muito tempo. Tampouco jornalistas passaram a ser agredidos física e moralmente de uma hora para outra – os repórteres perseguidos e ofendidos por petistas que o digam. Porém, é inegável diante das evidências que a hostilidade à imprensa profissional e aos jornalistas foi alçada a política de governo por Bolsonaro. Daí a boa nova que vem de Brasília.

Desde 2019, registrou-se recorde após recorde de ataques contra jornalistas no Brasil. Entre as vítimas da tentativa de golpe no dia 8 de janeiro estavam muitos jornalistas.

De acordo com dados apresentados no dia 19 passado pelo secretário nacional de Justiça e Segurança Pública, Augusto de Arruda Botelho, a quem o Observatório estará subordinado, “as agressões contra jornalistas vêm numa escala crescente de ataques à imprensa nos quatro últimos anos, e os números demonstram isso. Em 2019, foram 208 ataques. Em 2020, o número dobrou para 428. E, em 2021, o número continuou crescendo”.

O Observatório Nacional da Violência contra Jornalistas terá a missão de acompanhar o andamento das apurações de todos os casos de agressão contra jornalistas e articulará, em âmbito nacional, as ações da PF, das polícias estaduais, do Ministério Público e do Poder Judiciário para punir os agressores.

O secretário anunciou que ainda neste mês o Observatório será instalado, com a primeira reunião plenária entre representantes do governo federal, da PF, do Ministério Público, do Poder Judiciário, da Ordem dos Advogados do Brasil e, claro, das empresas jornalísticas.

Este jornal espera que o envolvimento direto do governo federal coíba o aumento de agressões não só contra jornalistas, mas contra uma garantia fundamental da Constituição: a liberdade de imprensa. E que o Observatório tenha plena independência para atuar. Se há algo que une poderosos de todas as afiliações ideológico-partidárias é o incômodo diante de um jornalismo bem feito.

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