quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Instituições têm de punir os golpistas infiltrados no Estado

O Globo

Parlamentares, policiais e militares envolvidos no 8 de janeiro não devem ser protegidos por corporativismo

Não há dúvida de que os Poderes da República reagiram com rapidez, firmeza e união aos ataques golpistas perpetrados por apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro em Brasília no dia 8 de janeiro. Mas a necessária condenação ao terrorismo é o mínimo que se espera das autoridades. É preciso ir além do simples repúdio traduzido em frases de efeito. É fundamental agir para que barbárie semelhante não se repita nem se propague, investigando e punindo não só seus executores, mas também seus financiadores, autores intelectuais e incentivadores. Em particular aqueles que, detentores de mandatos populares conquistados nas urnas, usam as redes sociais para chancelar vândalos que conspiram contra a democracia.

No Congresso Nacional, uma das instituições depredadas pelos golpistas durante a infâmia brasiliense, os presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), deram demonstrações inequívocas no apoio à democracia. Precisam agora dizer o que farão em relação aos parlamentares que desonram a Casa com acenos aos vândalos ou disseminam mentiras que confundem a opinião pública e fazem o jogo do golpismo.

Ao menos três parlamentares são alvos da Procuradoria-Geral da República (PGR), acusados de incentivar os atos golpistas: os deputados federais eleitos Clarissa Tércio (PP-PE), André Fernandes (PL-CE) e Silvia Waiãpi (PL-AP). A julgar pelas postagens nas redes sociais e discursos, a lista de investigados deveria ser maior. Os deputados Gustavo Gayer (PL-GO) e Bia Kicis (PL-DF) disseminaram mentiras sobre as medidas contra os vândalos. Gayer insinuou em mensagem que havia crianças presas — a informação era falsa. Kicis usou a tribuna da Câmara para propagar uma mentira grotesca que viralizou na internet, sobre a morte de uma idosa sob custódia da Polícia Federal — fato que nunca existiu.

Da mesma forma, Forças Armadas, PMs e Bombeiros precisam punir com rigor seus integrantes que participaram de um dos mais repugnantes episódios da História do Brasil. Reportagem do GLOBO mostrou que pelo menos 15 militares, da ativa e da reserva, estão envolvidos de alguma maneira nos atos golpistas. Para instituições de Estado que não devem se submeter a motivação política ou ideológica, é inadmissível dar guarida a criminosos que se escondem sob a proteção da farda. Não será difícil identificar os suspeitos. Há fartura de imagens de câmeras de segurança e postagens nas redes com flagrantes dos crimes cometidos contra a República.

Por mais difícil que seja romper com o corporativismo que costuma imperar nesses casos, o Congresso e as forças de segurança precisam investigar e punir todos os envolvidos no golpismo. É verdade que congressistas têm imunidade, mas ela não pode ser um salvo-conduto para disseminar mentiras com o objetivo de proteger criminosos e sabotar as instituições.

Não é aceitável que parlamentares eleitos de forma democrática tentem destruir a democracia. Ao mesmo tempo, as forças de segurança têm de cumprir seu papel constitucional e não podem permitir que uma minoria ponha em risco sua imagem e sua atuação. Não pode prevalecer o corporativismo diante de fatos tão graves. O país precisa voltar urgentemente à normalidade, e a sociedade não pode ficar refém de golpistas infiltrados no próprio Estado.

Gasto com cartão corporativo da Presidência exige mais transparência

O Globo

Despesa de Bolsonaro foi menor que a dos antecessores, mesmo assim ele ainda deve explicações

Os Cartões de Pagamento do Governo Federal (CPGF) foram criados em 2001, no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, para modernizar o controle das despesas inerentes a cargos de autoridade, numa cópia do que grandes empresas faziam há tempos com seus diretores. Antes o reembolso era feito mediante apresentação de nota fiscal, método sempre sujeito a fraudes. Desde então, a divulgação de despesas com os cartões de crédito da Presidência tem repercussão garantida, derivada da curiosidade natural despertada por despesas triviais — como alimentos ou hospedagem —, necessárias à manutenção do cotidiano presidencial.

A primeira vítima da publicidade dos cartões foram justamente FH e a primeira-dama Ruth Cardoso, em razão de despesas com hotéis de luxo. No segundo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o então ministro do Esporte, Orlando Silva, ganhou manchetes por ter de reembolsar a União por R$ 8,3 pagos com o cartão oficial por uma tapioca. Aproveitou e ressarciu os cofres públicos em R$ 34.378,36, gastos entre 2006 e 2007. Negociou e pagou em três parcelas. Em fevereiro de 2008, a oposição conseguiu apoio para instaurar uma CPI dos Cartões Corporativos, que não resultou em nada.

Tal retrospecto provavelmente levou o ex-presidente Jair Bolsonaro a manter o sigilo sobre seus gastos com o cartão corporativo da Presidência. Foi necessário que a agência de dados Fique Sabendo acionasse a Lei de Acesso à Informação (LAI) para que a Secretaria da Presidência da República enfim divulgasse essas informações, já no início do novo governo.

Ficamos então sabendo nos últimos dias que Bolsonaro foi quem realizou menos gastos com o cartão corporativo presidencial, na comparação com os antecessores: R$ 31,5 milhões nos quatro anos de governo, em valores corrigidos pela inflação. As despesas realizadas no primeiro governo Dilma Rousseff chegaram a R$ 43 milhões. No segundo mandato de Lula, foram de R$ 48,5 milhões, e no primeiro, de R$ 60 milhões.

Isso não impede que alguns gastos de Bolsonaro tenham chamado a atenção. Em 26 de maio de 2019, um domingo, ele sacou o cartão presidencial para pagar na Padaria Santa Marta, em Copacabana, uma conta que hoje seria de R$ 68.900. Era o dia seguinte ao casamento de seu filho Eduardo, o Zero Dois. O presidente e a família estavam no Rio para a festa.

As informações são sempre sujeitas a uso político, mas isso não é motivo para não divulgá-las. É essencial que o contribuinte tome conhecimento em detalhes do destino dado ao dinheiro dos impostos que paga. Deveria ser compulsória a divulgação periódica dos extratos desses cartões, que também permitem saques em caixas eletrônicos. A vigilância da opinião pública ajudaria a conter excessos, e Bolsonaro não se veria na posição desconfortável de, como seus antecessores, ter de explicar gastos aparentemente sem nenhum cabimento.

Rumos da Fiesp

Folha de S. Paulo

Política gera troca de comando na entidade, ligada a anacronismo corporativista

A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo é uma associação de sindicatos patronais do ramo. Nesse aspecto, seria apenas uma organização privada de representação de seus interesses. Suas intervenções no debate público valeriam, como quaisquer outras, pela qualidade de suas propostas ou da aceitação de seu lobby, legítimo.

A Fiesp, porém, tem quase desde seus primórdios um caráter paraestatal —uma das entidades de representação corporativista desenvolvida na era Getúlio Vargas.

Parte de seus fundos, que financiam atividades de relevância social, ainda é dinheiro arrecadado pela Receita Federal para o chamado Sistema S, instituído por lei.

O peso econômico da indústria paulista de fato conferiu ainda mais força política à Fiesp, ao menos até os anos 1980. A relativa decadência do setor e o aumento da complexidade socioeconômica do país deslocaram a entidade do centro do poder nacional.

A federação decerto ainda frequenta o noticiário político. Não raro, porém, aparece como instituição partidarizada ou sujeita, nos últimos anos, a interesses de seu presidente de 2004 a 2021, Paulo Skaf, e abalada por querelas.

Três vezes candidato ao governo do estado, Skaf fez uso da Fiesp e de serviços como Sesi e Senai a fim de reforçar sua candidatura.

Em 2022, já sob o comando de Josué Gomes, a entidade assinou um manifesto pela democracia, em reação às ameaças golpistas de Jair Bolsonaro (PL). A iniciativa dividiu a entidade. Sindicatos patronais começaram a contestar a gestão de Gomes —para seus críticos, muito próximo do hoje presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

A tensão político-partidária provocou o movimento que o destituiu do cargo, nesta semana, medida ainda contestada.

Desde que cumpridas as leis, decisões e rusgas internas da federação sindical não dizem respeito ao público em geral. O episódio faz lembrar, entretanto, que a Fiesp —ou mais precisamente as organizações administradas do Sistema S— se vale de fundos parafiscais, o que constitui uma distorção.

Os sindicatos patronais ou quaisquer outros devem cuidar de si, como representantes de interesses privados que são, e financiar a si próprios, sem intervenções ou conexões estatais. Cumpre superar, de modo gradual, esse anacronismo corporativista.

Será necessário definir, ao longo do processo, o que fazer dos serviços sociais, culturais e educativos do Sistema S, uma reforma que muito tarda, e de certo modo mais uma forma de privatização.

Agora em Israel

Folha de S. Paulo

Reforma do Judiciário de Netanyahu é temerária e pode minar bases democráticas

O processo de erosão democrática é único em cada país, mas o final é sempre o mesmo: líderes eleitos minam as instituições encarregadas de controlá-los e passam a exercer o poder de forma concentrada.

Em alguns casos, o chega-se à ditadura plena, como Hugo Chávez e Nicolás Maduro na Venezuela; em outros, resulta num regime iliberal mas ainda não totalmente ditatorial, como a Hungria de Viktor Orbán e a Turquia de Recep Erdogan.

Israel, considerada a única democracia do Oriente Médio, parece trilhar o caminho iliberal. A reforma do Judiciário proposta pela coalizão de governo liderada pelo premiê Binyamin Netanyahu, se aprovada, minará substancialmente os poderes da Suprema Corte, produzindo uma grave lesão no sistema de freios e contrapesos.

A reforma tem dois eixos. Pelo primeiro, o Parlamento ganha poderes para, por maioria simples, anular decisões da Suprema Corte acerca da constitucionalidade de legislações, a menos que elas sejam tomadas pela unanimidade dos 15 juízes —o que é uma impossibilidade prática numa sociedade dividida como a israelense.

Pelo segundo, alteram-se as regras de nomeação de novos magistrados, ampliando as indicações de políticos governistas.

Consideradas isoladamente e de forma abstrata, essas medidas não seriam absurdas. Alguns países, em geral pertencentes ao Commonwealth, adotam a doutrina da soberania do Parlamento, limitando a possibilidade de revisão judicial de leis. Já em nações como Brasil e EUA, as indicações políticas de magistrados da Suprema Corte chegam à notável marca dos 100%.

Porém no contexto institucional israelense, em que a Suprema Corte desempenha papel ativo de controle do governo, essas medidas representariam um golpe contra o equilíbrio dos Poderes.

Não à toa, cerca de 80 mil israelenses, de variadas correntes ideológicas, foram às ruas de Tel Aviv no último sábado (14) para manifestar oposição ao projeto.

Netanyahu, ademais, enfrenta três processos por corrupção. As novas regras, se aprovadas, não o beneficiam diretamente, mas acredita-se que possam ser usadas para tal propósito dada a instabilidade de poder do primeiro ministro.

Nos últimos quatro anos, Israel realizou cinco eleições. Quatro delas resultaram em maiorias muito precárias. Na última, aliando-se a pequenos partidos de extrema direita e ultrarreligiosos, Netanyahu conseguiu reunir uma maioria um pouco menos volúvel, que lhe permitiu voltar ao poder do qual nunca se afasta por muito tempo.

O STF e a democracia inabalada

O Estado de S. Paulo.

É preciso reconstruir o edifício do Supremo Tribunal Federal e reafirmar sua autoridade.

A sede do Supremo Tribunal Federal (STF) foi o prédio mais atacado pela barbárie de 8 de janeiro. Os golpistas quebraram vidros, móveis e antiguidades, além de terem depredado vários ambientes e instalações. Ao assegurar a imediata reconstrução da sede do STF, a presidente do Supremo, ministra Rosa Weber, lembrou que o edifício é “patrimônio histórico dos brasileiros e da humanidade” e “símbolo do Poder Judiciário, um dos três pilares da democracia constitucional brasileira”.

A resposta do STF aos atos de 8 de janeiro, disse Rosa Weber, “passa também por difundir a mensagem de que esta Suprema Corte, assim como a defesa que a instituição faz da democracia e do Estado de Direito, seguem inabaláveis”. Nesse sentido, o Supremo lançou, no dia 17, a campanha Democracia Inabalada, que inclui vídeos na TV e publicações nas redes sociais. Segundo o tribunal, o objetivo é “chamar a atenção para o lamentável episódio, para que ele nunca seja esquecido e nem se repita, e destacar que a democracia e a Suprema Corte saem fortalecidas desses acontecimentos”.

Trata-se de iniciativa muito oportuna. É preciso comunicar a importância do STF para a democracia brasileira. Não há Estado Democrático de Direito sem uma Corte Constitucional independente. Não há proteção a direitos e garantias individuais sem um Judiciário forte e autônomo.

Covardemente atacado no dia 8 de janeiro, o STF vem sendo vandalizado há anos por ameaças e ataques a seus ministros e à Corte. Vale lembrar que não é apenas quebrando vidraças ou destruindo móveis que se ataca o STF. Nos últimos quatro anos, o bolsonarismo afrontou e enfrentou de forma reiterada a Corte e seus ministros, com ameaças, insinuações e muitíssima desinformação.

Tanto é assim que, em março de 2019, o então presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, se viu obrigado a determinar a abertura de um inquérito, com base no art. 43 do Regimento Interno do STF, a respeito de “notícias fraudulentas (...), denunciações caluniosas, ameaças e infrações revestidas de ânimo caluniante, difamante e injuriante que atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo, de seus membros e de familiares”, precisamente para proteger as prerrogativas do tribunal. Ironicamente, os atos de 8 de janeiro explicitaram, com luzes novas e aterrorizantes, a plena legalidade do inquérito, repetidamente questionada pelos bolsonaristas. Os ataques e ameaças ao Supremo não eram uma invenção, como também não eram um singelo exercício da liberdade de expressão. Eram atos criminosos com o objetivo de vandalizar o STF, deslegitimando-o aos olhos dos cidadãos.

Depois de quatro anos de desinformação contra o Supremo, é necessário reconstruir a imagem pública da Corte Constitucional. É necessário reunir novamente a população em torno da Corte Constitucional, que é aliada, e não inimiga, dos direitos e liberdades individuais. As gravações com os atos de vandalismo dentro da sede do STF podem ajudar nessa tarefa, revelando a grande falácia do bolsonarismo, com sua pretensa defesa da liberdade. Os golpistas atacam o Supremo porque querem impor sua vontade sobre os demais e sobre a própria lei. Não almejam a liberdade, mas a barbárie.

A campanha Democracia Inabalada vem, portanto, em boa hora. Ao explicitar que a reconstrução do STF é muito mais do que reerguer um edifício, ela também é alerta para todos os ministros da Corte. Há um longo trabalho de resgate da legitimidade e do prestígio do STF perante a sociedade, trabalho este que é alicerçado por decisões técnicas e fundamentadas, rigorosamente contidas dentro dos limites de competência da Corte. Essa contenção é fundamental para preservar a autoridade do STF ao longo do tempo. O Judiciário aplica a lei. No caso, o Supremo defende e aplica a Constituição, que é extensa e aborda inúmeros temas. De toda forma, isso não autoriza o STF a tomar o espaço da política ou a abraçar atribuições funcionais que não lhe competem.

O País precisa do Supremo. É urgente reconstruir seu edifício e reafirmar sua autoridade. E que os golpistas, executores e mandantes, sejam punidos.

A reforma tributária ‘neutra’ de Haddad

O Estado de S. Paulo.

Manter a carga tributária, reduzir o déficit primário e conter a trajetória da dívida são objetivos incompatíveis com a realidade fiscal brasileira. É hora de o governo apresentar sua agenda

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, disse que a aprovação de uma reforma tributária neutra é uma das prioridades do primeiro ano de governo do presidente Lula da Silva. “Se a reforma não for neutra, alguém vai perder, e a gente quer que todos ganhem”, disse ele no Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça. A disposição do ministro para defender uma reforma tributária já nos primeiros dias no cargo não deixa de ser positiva, mas chegou o momento de detalhar a agenda econômica que pretende de fato apoiar.

O sistema tributário nacional tem inúmeros defeitos. É complexo, fragmentado, cumulativo, regressivo, injusto e desigual. Cobra mais dos mais pobres, onera o consumo em detrimento da renda e do patrimônio, não estimula a eficiência e a produtividade, favorece o litígio, limita investimentos, encarece exportações, estimula a guerra fiscal e impede o crescimento econômico. A existência de múltiplas alíquotas, benefícios fiscais e regimes simplificados reduz a arrecadação, aumenta o déficit da Previdência e não se reverte em empregos formais.

São tantos, tão conhecidos e tão antigos, os problemas do sistema tributário quanto a resistência para enfrentálos. Afinal, são muitos os setores que se beneficiam dessas distorções, todos muito bem representados no Congresso. A essas velhas dificuldades é preciso somar as desonerações sem critério distribuídas pelo ex-presidente Jair Bolsonaro no auge da campanha eleitoral, ainda pendentes de reversão.

As reformas tributárias que já estão no Congresso – as Propostas de Emenda à Constituição (PECS) 45/2019 e a 110/2019 – vão na direção correta ao unificar tributos federais, estaduais e municipais sobre bens e serviços. Aprovar essa etapa é importante, mas insuficiente para resolver um problema bem mais amplo e que diz respeito ao tamanho do Estado brasileiro.

Aprovar uma reforma tributária neutra significaria manter a carga no mesmo patamar em que ela está – 33,90% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2021. Cobrar mais dos mais ricos e menos dos mais pobres, como defende Haddad, é um objetivo mais do que justo, mas não resolverá o problema do déficit primário que o ministro diz querer enfrentar. O País gasta mais do que arrecada consistentemente desde 2014. Um crescimento econômico mais vigoroso poderia elevar a arrecadação, mas as projeções do mercado mais recentes não inspiram otimismo nessa seara.

Se a intenção é manter a carga pela ótica das receitas, não se pode dizer o mesmo do lado da despesa. Com a Proposta de Emenda à Constituição da Transição, o governo conseguiu autorizar gastos muito além do nível necessário para recompor despesas com programas sociais, ampliando o déficit primário previsto para R$ 231,5 bilhões – ou 2,3% do Produto Interno Bruto. Reduzi-lo a 1% do PIB, meta que Haddad assumiu, não será possível somente com o plano que o ministro anunciou na semana passada, muito mais pautado na recuperação de receitas do que na redução de gastos.

Estabilizar a trajetória de crescimento da dívida pública, outro dos objetivos mencionados por Haddad, tampouco será possível com uma reforma tributária neutra sob o ponto de vista da arrecadação. Se a ideia é impedir que a dívida supere a proporção de 80% do PIB, é preciso gerar superávits primários para pagar, ao menos, seus juros. Qualquer deterioração no ambiente externo tem o potencial de desvalorizar o câmbio, pressionar a inflação e levar o Banco Central a elevar ainda mais a Selic, ampliando o endividamento.

Fica muito claro que manter a carga tributária no nível em que está, reduzir o déficit primário e estabilizar a trajetória da dívida são objetivos incompatíveis com a realidade fiscal brasileira. E, diante da histórica rejeição dos governos petistas a reformas estruturais que revejam a estrutura do gasto público, tudo indica que o ajuste virá do lado da receita, o que reforça a impressão de que a reforma tributária de Haddad poderá ser tudo, menos neutra. É, portanto, hora de o governo apresentar claramente sua agenda econômica, opaca desde a campanha.

Com teto e com dignidade

O Estado de S. Paulo.

Prefeitura acerta ao investir em casas modulares para sem-teto, mas iniciativa deve ser só o começo

AVila Reencontro, parte do Programa Reencontro, é um passo inicial importante adotado pela Prefeitura de São Paulo para dar condições de vida minimamente dignas aos sem-teto que se espalham pela cidade. Formada por casas modulares de 18 metros quadrados, a iniciativa representa um avanço em relação aos tradicionais abrigos. Entre outras vantagens, assegura um endereço fixo para correspondência – o que pode fazer toda a diferença para quem procura emprego. O aumento da população em situação de rua na capital, claro, requer outras providências por parte da administração municipal. Mas o modelo da Vila Reencontro caminha na direção certa.

Como noticiou o Estadão, o projeto é inspirado no conceito de Housing First (moradia primeiro), que orienta ações em países como Estados Unidos, Espanha, Canadá, Japão e França. A proposta consiste em priorizar a oferta de moradia, encarada como porta de entrada para a efetivação de direitos nas áreas de educação, saúde e trabalho, entre outras. De fato, um erro frequente em políticas públicas destinadas à população de rua é a sua incapacidade de articular iniciativas em diversas frentes – e a longo prazo. Faz sentido, então, dar ênfase à habitação digna, na medida em que isso pode levar a outros avanços.

A primeira Vila Reencontro foi inaugurada em dezembro, no Canindé. São 40 residências para famílias com crianças, com limite de quatro pessoas e prazo de permanência de dois anos. Cada unidade conta com banheiro, pia, cama, geladeira, fogão de duas bocas e guarda-roupa, além de Wi-fi e espaço coletivo para as crianças brincarem. A Prefeitura prevê entregar 2 mil casas até o fim do ano. Trata-se, evidentemente, de um passo à frente em relação aos abrigos.

Como toda política pública, o modelo é passível de aperfeiçoamento. Fará bem a Prefeitura se ouvir as recomendações de especialistas. É o caso, por exemplo, da proibição à entrada de visitantes. Entende-se que haja regras de convívio e que o acesso dos residentes se dê mediante identificação na portaria. A impossibilidade de receber visitas, no entanto, vai contra o princípio que parece guiar o projeto, isto é, de que as famílias acolhidas se sintam em casa.

Nessa linha, o padre Júlio Lancellotti, coordenador da Pastoral do Povo de Rua da Arquidiocese de São Paulo, chamou a atenção para a necessidade de maior autonomia dos moradores. A Vila Reencontro conta com uma administradora e um refeitório onde é servida a alimentação diária. Por óbvio, a preocupação em fornecer comida é bem-vinda. O ponto levantado pelo padre Lancellotti, no entanto, diz respeito à “tutela” que um “espaço institucional” acaba exercendo. Sem dúvida, o desejável é que o amparo às famílias tenha o objetivo também de fortalecer sua autonomia − inclusive para que, no futuro, possam depender menos da ajuda estatal. Eventuais ajustes não diminuem em nada o mérito da iniciativa, que representa um passo importante para acolher com dignidade uma parcela dos sem-teto em São Paulo.l

 

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